segunda-feira, 21 de maio de 2018

Vendedor de jornal

O vendedor de jornais é o tipo mais despreocupado e alegre do mundo.
Tem uma alma de pássaro.
Claro está que nos não referimos ao carrancudo portugues que, em meio de uma chusma de folhas metodicamente expostas, passa os dias sentado, com as pernas cruzadas, no ponto de reunião da Rua do Ouvidor com o Largo de São Francisco, na Brahma, nas portas dos cafés da Avenida, em toda a parte. Não aludimos tampouco ao grave italiano de bigodeira espessa nem ao “carcamano” que, de bolsa a tiracolo, apregoa uma algaravia “à la diable”, a Nôtizia e o Zêculo.
Queremos falar do pequenino garoto de dez anos, o brasileirito trêfego, ativo, tagarela como uma pega, travesso como um tico-tico.
Está sempre a rir, sempre a cantar. Canta o dia inteiro, num tom arrastado, apregoando as revistas que vende.
Por aqui, por alí, vai, vem corre, galopa, atravessa as ruas com uma rapidez de raio, persegue os veículos, desliza entre os automóveis como uma sombra. Parece invulnerável.
É assim uma espécie de pensionista do público – arrebata as pontas de charuto que se jogam à rua e surrupia, para revender, os jornais que se deixam esquecidos nos bancos dos passeios. Se pode à socapa, deita a mão a alguma dessas pirâmides de frutos que sedutoramente se elevam às portas das mercearias.
É extraordinária a velocidade com que ele se transporta de um lugar para outro. Anuncia no Leme, na Tijuca, em Niterói, um jornal que a gente pensa ainda estar no prelo; dir-se-ia que tem asas.
Fuma, bebe aguardente, praqueja, solta pilhérias torpes, pisca os olhos maliciosamente à passagema das mulheres, canta trovas obcenas com a música de “cabocla de Caxangá”.
Torna-se importuno às vezes, quando, a correr pelas plataformas dos bondes, fazendo reviravoltas de símio para escapar à sanha de algum condutor rabugento, nos atordoa os ouvidos com estupendos gritos estridentes.
Nada lhe empana a limpidez de espírito, nada. Está tão habituado a anunciar todos os dias “um grande atentado, um pavoroso incêndio, a prisão do célebre bandido Fulano”, que afinal acaba por encarar todos esses fatos indiferentemente.
Tem gestos próprios e expressões peculiares. Para ele um assassínio ou um suicídio é simplesmente uma “encrenca”. Um conflito é um “roubo”. Sua interjeição predileta é uê, que, aliás, é usada por toda gente carioca.
Parece que desconhece hierarquias e vaidades tolas, porque não empresta título a nenhum nome. Diz: “o partido do Pinheiro, discursos do Ruy Barbosa, o governo do Nilo Peçanha” como se todos os cabecilhas da República fossem apenas vendedores de jornais.
Fala sobre política, conhece o valor de nossos parlamentares, discute os principais episódios da conflagração européia, critica os atos do poder e emprega imoderadamente esses vistosos adjetivos que figuram nos cabeçalhos dos artigos importantes para engodar o público incauto.
Detesta a monotonia dos tempos de paz. Gosta das revoluções, dos motins, das grossas “mixórdias” que lhe proporcionam ocasiões de ver todas as folhas arrebatadas, sem que haja necessidade de ele gritar como nos dias ordinários.
Não é somente o jornalista que explora vantajosamente os crimes- ele, o garoto endiabrado, também sabe tirar partido das mais insignificantes perturbações da ordem, revestindo todos os fatos de acessórios que lhe dão proporção extraordinária. Parece que tem o dom de por um grande vidro de aumentar em cima dos acontecimentos.
É astucioso, impostor, velhaco.
Com uma finura de comerciante velho, emprega artimanhas de mestre, complicados ardis, artifícios que são uma obra prima de sutilieza, tudo para embair os transeuntes. Mente apregoando sedutoras notícias fantásticas.
Enfim, sob certos pontos de vista, o pequeno garoto vendedor de jornais é uma espécie de jornalista em miniatura...

 

Graciliano Ramos (1892-1953)


Linhas tortas. 14 edição. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1989. p 28-30

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