domingo, 20 de maio de 2018

O trabalho na ilha da Utopia


A agricultura é a arte comum a todos os utopianos, homens e mulheres, e a atividade em que todos são igualmente peritos e hábeis. São nela instruídos desde a juventude: aprendendo-a nas escolas, em teoria, e praticando-a nos campos vizinhos da cidade, aonde os levam em passeio e recreação, não só para observarem o trabalho agrícola, como para nela exercitarem as forças físicas.
Além da agricultura, que, como referi, é conhecida e praticada por todos, cada um deles aprende outro ofício como profissão própria. Normalmente, ou se dedicam à tecelagem da lã e do linho, ou aprendem o ofício de pedreiro, ferreiro ou carpinteiro. Nenhuma outra profissão, além destas, é tão usual que mereça aqui menção especial. O vestuário tem a mesma e invariável forma para toda a ilha, salvo a distinção entre o vestuário masculino e o feminino e a diferenciação pelo traje de solteiros e casados. O vestuário é cômodo, agradável, elegante, facilitando os movimentos do corpo, adequado paras todas as estações. Cada família confecciona o seu próprio vestuário. Tanto os homens quanto as mulheres aprendem forçosamente um dos ofícios acima mencionados. As mulheres, por serem de natureza mais frágil, são encarregadas das tarefas mais leves como a tecelagem da lã e do linho, estando reservados aos homens os trabalhos mais pesados.
Na maior parte dos casos, os indivíduos são iniciados na profissão paterna, pois habitualmente a ela são predispostos pela natureza. No entanto, se alguém se sentir atraído por outro ofício, entra adotivamente numa família que exerça a profissão que o atrai. Tanto o pai como os magistrados providenciarão para que dê entrada numa família respeitável e honesta. Se um indivíduo, embora tendo já uma profissão, queira aprender outra, é-lhe lícito fazê-lo. Na posse de ambas as profissões, pode escolher a que preferir, a menos que a cidade tenha mais necessidade de uma que da outra.
A função principal e quase única dos sifograntes é velar para que ninguém se entregue à ociosidade, e para que todo o indivíduo exerça a sua profissão diligentemente, não querendo isto dizer que tenha que trabalhar sem descanso, do nascer ao por-do-sol, como bestas de carga. Isso seria pior que a miserável e desgraçada condição de escravo, embora seja essa a vida dos trabalhadores e artífices, por toda parte, fora da Utopia.
Nesta ilha divide-se o dia e a noite em 24 horas exatas e destinam-se ao trabalho apenas seis horas: três antes do meio-dia, com intervalo para o jantar, duas de descanso, seguindo-se mais três horas de trabalho e ceia. Às oito da noite vão para a cama, dando oito horas de sono.
O tempo livre entre o trabalho, as refeições e o sono é ocupado livremente por cada indivíduo, como melhor o entender. Não com o fim de que se possam entregar à preguiça e ao esbanjamento, mas para que, libertos das suas ocupações, se ocupem e empreguem a sua atividade variadamente na arte ou na ciência que mais lhe agrade.
É um costume muito apreciado haver diariamente cursos públicos, de madrugada, a que apenas são obrigados a assistir os indivíduos escolhidos e destinados ao estudo. No entanto, grande número de pessoas, mulheres e homens, frequentam estes cursos, escolhendo a matéria para que sentem mais inclinação. Porém, se alguém preferir empregar o seu tempo livre na sua própria profissão, como acontece com muitos cujo espírito não se satisfaz nas ciências especulativas, não o censuram por isso, nem o impedem, antes o louvam, pois assim se torna igualmente útil à comunidade.
Depois do jantar ocupam uma hora em divertimentos: no verão, no jardim, no inverno, nas grandes salas onde tomam as refeições em comum. Praticam a música ou distraem-se conversando. [...]
Mas aqui, com perigo de vos enganardes, deveis reparar atentamente numa coisa. Pensareis, talvez que são insuficientes para produzir o necessário as seis horas que ocupam no trabalho, e que são frequentes as carências de bens úteis. Mas assim não acontece. Este curto tempo de trabalho é mais do que suficiente para produzir a abundância, e mesmo o excedente de todas as coisas necessárias à subsistência e ao bem-estar. O que facilmente compreendereis se tiverdes em conta a enorme quantidade de ociosos que existem nos outros países. Em primeiro lugar, as mulheres, que são metade da população. E quando as mulheres trabalham, os homens deixam, por seu turno, de trabalhar. Além disso, a numerosa multidão de padres e religiosos que nada produzem. Acrescentai todos os ricos, especialmente os proprietários, que vulgarmente se chamam nobres ou fidalgos. Juntai-lhes ainda seus criados, esse bando de desordeiros, os mendigos robustos e válidos, que disfarçam a preguiça sob a capa de enfermidades ou aleijões. Descobrireis, em suma, que o número dos que trabalham para prover aos bens necessários à vida de gênero humano é bem menor do que pensáveis. Considerai, agora, como dos poucos que já trabalham menos ainda se ocupam em tarefas necessárias e úteis. Já que o dinheiro é o senhor absoluto, uma imensa quantidade de ocupações frívolas e supérfluas se multiplicam, destinando-se apenas a manter o luxo e os prazeres desonestos. Se o mesmo número de trabalhadores que hoje executam a produção de tais bens fosse distribuído pelas reduzidas profissões úteis, de modo a produzir com abundância o que o consumo exige, sem dúvida alguma o preço da mão-de-obra diminuiria de tal modo que os operários não poderiam viver de seu trabalho. Ademais, se todos os que se dedicam a ocupações frívolas e improdutivas, acrescidos dos que nada fazem, além de consumirem e desperdiçarem o que daria para sustentar dois operários laboriosos, se todos estes, repito, se ocupassem em profissões necessárias, compreenderíeis então como seria breve o tempo útil para satisfazer as necessidades e produzir as reservas das coisas essenciais à vida, ao conforto e ao prazer, bem entendido, ao prazer natural e verdadeiro.
[...] É assim que ocupando-se todos em ofícios úteis e dado que poucos trabalhadores bastam para executar determinada atividade, reinando a abundância, grande número de habitantes são mandados a reparar as estradas necessitadas de conserto. Outras vezes, quando não há necessidade desta atividade, é proclamado um decreto que determina que se ocupem menos horas de trabalho. Os magistrados não pretendem fatigar os cidadãos, ocupando-os em tarefas desnecessárias. Para que fazê-lo? O objetivo das instituições sociais é unicamente que o tempo que se poupe, além das ocupações e misteres necessários à comunidade, seja aproveitado por todos os cidadãos para se libertarem da escravidão do corpo, cultivando livremente o espírito. Nisto consiste, para os Utopianos, a felicidade da vida.

More, Thomas (1478-1535)

A Utopia. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Editora Martin Claret, 2005. p. 59- 64.



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