Narrarei agora a história que me forneceu a
primeira idéia e a ocasião para escrever este tratado “das doenças dos
artífices”. Nesta cidade que, por sua extensão é bastante populosa e tem as
suas casas apinhadas e muito altas, é costume esvaziar de três em três anos as
cloacas de cada uma das casas que se estendem pelas ruas, e como tal trabalho
se fizesse em minha casa, observei que um dos operários, naquele antro de
Caronte, trabalhava açodadamente, ansioso por terminar; apiedado de seu labor
tão impróprio, interroguei-o por que trabalhava tão afanosamente e não agia com
menos pressa, para que não se cansasse demasiadamente, com o excessivo esforço.
Então, o miserável, levantando a visa e olhando-me desse antro, repondeu:
“ninguém que não tenha experimentado poderá imaginar quanto custaria permanecer
neste lugar durante mais de quatro horas, pois ficaria cego.” Depois que ele
saiu da cloaca, examinei seus olhos com atenção e os notei bastante inflamados e
enevoados; em seguida, procurei saber que remédio os cloaqueiros usavam para
essas afecções, o qual respondeu-me que usaria o único remédio que era ir
imediatamente para casa, fechar-se em um quarto escuro, permanecendo até o dia
seguinte, e banhando constantemente os olhos com água morna, como único meio de
aliviar a dor dos olhos. Perguntei-lhe ainda se sofria de algum ardor na
garganta e de certa dificuldade para respirar, se doía a cabeça enquanto aquele
odor irritava as narinas e se sentia náuseas. “Nada disso” respondeu ele,
sómente os olhos são atacados e se quisesse prosseguir nesse trabalho muito
tempo, sem demora perderia a vista, como tem acontecido aos outros. Assim ele,
atendendo-me, cobriu os olhos com as mãos e seguiu para casa. Depois, observei
muitos operários dessa classe quase cegos ou cegos completamente mendigando
pela cidade. Não me causou espanto, porém, que exalação tão perniciosa
irritasse a delicada estrutura dos olhos. O vil mister de limpar cloacas foi
incluído antigamente na condição de castigo, como dissemos no princípio com
respeito aos condenados a manipular metais. Disse Plínio que o Imperador
Trajano ordenava em uma carta que, se os condenados não deviam ser libertados
antes de dez anos, cumprissem sua pena; porém que os mais velhos condenados a
mais de dez anos fossem admitidos nesses misteres, que não diferiam muito de um
castigo. Costumavam, pois, destinar réus à limpeza dos balneários ou das
cloacas.
Ramazzini, Bernardino (1633-1714)
As doenças dos trabalhadores. Tradução de Raimundo
Estrela. São Paulo: Fundacentro, 2000. p 47-50.
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