domingo, 20 de maio de 2018

Cloaqueiros


Narrarei agora a história que me forneceu a primeira idéia e a ocasião para escrever este tratado “das doenças dos artífices”. Nesta cidade que, por sua extensão é bastante populosa e tem as suas casas apinhadas e muito altas, é costume esvaziar de três em três anos as cloacas de cada uma das casas que se estendem pelas ruas, e como tal trabalho se fizesse em minha casa, observei que um dos operários, naquele antro de Caronte, trabalhava açodadamente, ansioso por terminar; apiedado de seu labor tão impróprio, interroguei-o por que trabalhava tão afanosamente e não agia com menos pressa, para que não se cansasse demasiadamente, com o excessivo esforço. Então, o miserável, levantando a visa e olhando-me desse antro, repondeu: “ninguém que não tenha experimentado poderá imaginar quanto custaria permanecer neste lugar durante mais de quatro horas, pois ficaria cego.” Depois que ele saiu da cloaca, examinei seus olhos com atenção e os notei bastante inflamados e enevoados; em seguida, procurei saber que remédio os cloaqueiros usavam para essas afecções, o qual respondeu-me que usaria o único remédio que era ir imediatamente para casa, fechar-se em um quarto escuro, permanecendo até o dia seguinte, e banhando constantemente os olhos com água morna, como único meio de aliviar a dor dos olhos. Perguntei-lhe ainda se sofria de algum ardor na garganta e de certa dificuldade para respirar, se doía a cabeça enquanto aquele odor irritava as narinas e se sentia náuseas. “Nada disso” respondeu ele, sómente os olhos são atacados e se quisesse prosseguir nesse trabalho muito tempo, sem demora perderia a vista, como tem acontecido aos outros. Assim ele, atendendo-me, cobriu os olhos com as mãos e seguiu para casa. Depois, observei muitos operários dessa classe quase cegos ou cegos completamente mendigando pela cidade. Não me causou espanto, porém, que exalação tão perniciosa irritasse a delicada estrutura dos olhos. O vil mister de limpar cloacas foi incluído antigamente na condição de castigo, como dissemos no princípio com respeito aos condenados a manipular metais. Disse Plínio que o Imperador Trajano ordenava em uma carta que, se os condenados não deviam ser libertados antes de dez anos, cumprissem sua pena; porém que os mais velhos condenados a mais de dez anos fossem admitidos nesses misteres, que não diferiam muito de um castigo. Costumavam, pois, destinar réus à limpeza dos balneários ou das cloacas.

Ramazzini, Bernardino (1633-1714)
As doenças dos trabalhadores. Tradução de Raimundo Estrela. São Paulo: Fundacentro, 2000. p 47-50.

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