domingo, 20 de maio de 2018

O escritor

...Quem imagina que um escritor é capaz de rebentar caras, meter-se em espalhafatos, nunca viu de perto um desses homens. São as criaturas mais pacatas do mundo. O sujeito que se habitua a compor livros compõe livros - e não passa daí. Diante do papel é tudo: pinta o sete, mata, esfola. Tirem-lhe a pena e o tinteiro- desarmam-no.
Vejam o exercício a que ele se dedica. Senta-se e curva o espinhaço, encosta o nariz à mesa, afasta-se da realidade. Move a mão direita. De longe em longe a esquerda se mexe para levar o cigarro à boca. Se se levanta, é para ir à estante olhar um volume.
Pode o menino chorar lá dentro: ele não ouve: podem matar gente ali perto: ele não sabe. Se estiver terminando um período e a apoplexia chegar, certamente a apoplexia esperará até que ele acabe o período.
Olha o mundo naturalmente, mas vive fora dele: para bem dizer está no mundo da lua.

Graciliano Ramos (1892-1953)

 Linhas tortas. 14 edição. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1989. p 99-100

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