sexta-feira, 25 de maio de 2018

O maestro

Não existe expressão mais clara e nítida do poder que a atividade do maestro. Cada detalhe de sua conduta pública é característico; tudo que ele faz serve para lançar luz sobre a natureza do poder. Quem nada soubesse a respeito do poder, poderia deduzir suas propriedades, uma após outra, a partir da observação atenta de um maestro. Para que isto nunca tenha sido feito há um motivo muito convincente: a música que o maestro dirige parece ser a coisa principal, e é geralmente aceito que as pessoas vão aos concertos para ouvir sinfonias. O próprio maestro é a pessoa que está mais convencida disso; sua regência, acredita ele, está a serviço da música e deve transmiti-la com exatidão e nada mais.
O maestro acredita ser o primeiro servidor da música. Ele se encontra tão tomado por ela que simplesmente não lhe pode ocorrer a idéia de um segundo sentido, extramusical, de sua atividade. Ninguém ficaria mais surpreso do que ele a respeito da interpretação que se segue.
O maestro está de pé. A posição ereta de um homem tem significado inclusive na lembrança de muitas representações de poder. Ele está de pé sozinho. Em torno dele está sentada a sua orquestra; atrás dele estão sentados os ouvintes; chama atenção o fato de ser ele o único a estar de pé. Está de pé num plano elevado e é visível tanto pela frente como pelas costas. Pela frente seus movimentos agem sobre a orquestra; por trás, sobre os ouvintes. As disposições, as ordens propriamente ditas, ele as transmite apenas com a mão ou com a batuta. Com um movimento mínimo, ele desperta repentinamente para a vida esta ou aquela voz, e quem ele quer que se cale, cala-se. Desta forma ele tem poder sobre a vida e a morte das vozes. Uma voz, que durante muito tempo tenha estado morta, pode ressuscitar em função de uma ordem sua. As diferenças entre os instrumentos correspondem às diferenças entre os homens. A orquestra é como uma reunião de todos os seus tipos principais. Sua disposição à obediência permite que o maestro os transforme numa unidade, que ele então representa para eles, sendo publicamente visível.
A obra que executa, sempre de natureza complexa, exige sua máxima atenção. Presença de espírito e rapidez estão entre as suas principais qualidades. Ele deve atingir como um raio todos os infratores da lei. As leis são colocadas na sua mão sob forma de partitura. Os outros também as têm e podem controlar o seu cumprimento, mas somente ele decide, e somente ele julga no ato qualquer coisa a respeito das falhas. Que isto suceda publicamente, à vista de todos em cada um dos seus detalhes, dá ao maestro uma consciência peculiar de si mesmo. Ele se habitua a ser visto sempre, e cada vez lhe é mais difícil abrir mão disto.
O fato de os ouvintes estarem sentados em silêncio faz parte das intenções do maestro, como a obediência da orquestra. Os ouvintes são obrigados a permanecer imóveis. Antes da chegada do maestro, antes do concerto, eles conversam e se movimentam em desordem. A presença dos músicos não causa preocupação em ninguém na platéia; praticamente não se dá atenção a eles. Aparece o maestro. Faz-se silêncio. Ele se coloca em posição; pigarreia; se coloca em posição; ergue a batuta; todos emudecem e ficam rígidos. Enquanto ele rege ninguém deve se movimentar. Assim que acaba de reger todos devem aplaudi-lo. Todo desejo de movimento, despertado e aumentado ainda mais pela música, deve ser contido até o final; depois, porém, explode. O maestro se inclina diante das mãos que o aplaudem. Por causa delas ele retorna várias vezes, quantas vezes essas mãos o quiserem. A elas, apenas a elas, ele está entregue; é para elas que ele realmente vive. É a antiga aclamação do vencedor que desta forma lhe é dada. A magnitude da vitória se expressa na medida do aplauso. Vitória e derrota tornam-se a forma pela qual ele organiza sua própria economia espiritual. Nada fora disso tem importância; tudo o que mais existe na vida dos outros se transforma para ele em vitória e derrota.
Durante a execução, o maestro é o guia para a multidão presente na sala. Ele se encontra na cabeça, na ponta desta multidão e vira as costas para ela. É a ele que a multidão segue, pois é ele que dá o primeiro passo. Mas em vez de avançar com o pé ele avança com a mão. O andamento da música, que é provocado pela mão, está no lugar do caminho que os pés seguiriam. Ele arrebata a multidão presente na sala. Durante a peça inteira, a multidão jamais lhe vê o rosto. Ele é implacável e não permite um momento sequer de descanso. Suas costas se erguem diante dele como se fossem a meta. Se ele se virasse, nem que fosse apenas uma vez, o feitiço estaria quebrado. O caminho que percorrem já não seria mais um caminho e, decepcionados, se encontrariam sentados numa sala imobilizada. Mas pode-se ter confiança: ele não se vira. Porque, enquanto eles o seguem, ele tem diante de si um pequeno exército de músicos profissionais que deve ser dominado. Também neste caso a mão auxilia, porém ela não serve apenas para indicar os passos como paras as pessoas que se encontram atrás dele, mas para transmitir ordens.
Seu olhar, sempre o mais intenso possível, abrange a orquestra inteira. Cada um dos integrantes se sente observado por ele; e, mais ainda sente-se ouvido por ele. As vozes do instrumento são as opiniões e as convicções às quais ele presta a maior atenção. Ele é onisciente, pois ao passo que os músicos têm diante de si apenas suas próprias vozes, ele tem a partitura toda na cabeça, ou sobre a estante. Ele sabe com toda a exatidão o que é permitido a cada um dos integrantes a qualquer instante. O fato de prestar atenção a todos em conjunto, confere-lhe o prestígio da onipresença. Por assim dizer, ele está na cabeça de todos e de cada um. Ele sabe o que cada um deve fazer, e também o que cada um faz. Ele, a somatória viva das leis, atua de ambos os lados da vida moral, pelo mandato da sua mão dispõe o que ocorre e evita o que não pode ocorrer. Seus ouvidos exploram o ar à procura do que é proibido. Para a orquestra o maestro representa assim, de fato, a peça inteira na sua simultaneidade e seqüência; e, como durante a execução o mundo não pode consistir em qualquer outra coisa que não seja a peça, durante esse tempo ele é o senhor do mundo.

Canetti, Elias (1905-1994)


Massa e poder. Tradução de Rodolfo Krestan. São Paulo: Melhoramentos; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1983. p 439-442

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