As empregadas dormiam na cozinha. Por mais
amplo que fosse o apartamento- e nas antigas casas de aldeia não era raro os
membros da família terem dez ou doze quartos à disposição- a cozinheira e a
arrumadeira dormiam na cozinha, onde cozinhavam e lavavam o dia todo. De manhã,
lavavam-se na torneira da cozinha, e pelo mesmo ralo escoavam também a água
suja. Por conta disso, na maioria das cozinhas burguesas pairava um odor de
água parada, por mais que a ventilassem durante o dia. Era uma situação
repulsiva e incompreensível, mas ninguém se ocupava dela, a sociedade se
organizara assim, os senhores moravam em cinco, oito ou dez quartos, nos
quartos havia pianos, enfeites de bronze, cortinas de renda, estantes repletas
de livros, pratas e porcelana, e tudo brilhava, as empregadas tiravam pó na casa
o dia todo e perseguiam “os bacilos” com espanadores, punham a mesa limpa e bem
cuidada, a comida servida era saborosa e preparada com dedicação especial - porém
as empregadas se coziam e se assavam a vida inteira em meio aos vapores de
comida da cozinha, a emanação dos corpos se misturava com o sabor e o aroma dos
alimentos, que depois acabavam na mesa “distinta”. Ninguém pensava nisso. A
“condição social” da empregada na família húngara que se aburguesava no início
do século era das mais singulares. Ela não pertencia ao “proletariado”- na
época o conceito só se veiculava nos escritórios do partido-, não era uma
“trabalhadora consciente”, sobre sua condição no mundo ela sabia muito pouco.
Era simplesmente uma empregada. Pagavam-na muito mal – pior que a qualquer
trabalhador, mais vergonhosamente que às diaristas-, exploravam-na, e na
primeira discussão punham-na para fora, armava-se uma “demissão em duas
semanas”, ainda que ela trabalhasse havia vinte anos no mesmo lugar. Em troca,
“tinham tudo”, como diziam as donas de casa burguesas, “casa e comida”, de que
mais precisavam? A casa delas era o caixote com gavetas na cozinha, cheio de “roupas
de cama de empregada”, vermelhas e listradas- de noite tiravam a tampa do
caixote, abriam a gaveta de baixo e nela dormiam-, a qualidade da alimentação,
é claro, variava, mas, mesmo na fartura húngara anterior à guerra, na maioria
dos lugares “dava-se” para a empregada, contabilizavam-se os pedaços consumidos
dos restos dos pratos, cortava-se para elas a fatia diária de pão, media-se o
leite, o café- evidentemente, as empregadas só ganhavam do misturado com
cevada-, e contavam-se os cubos de açúcar que os acompanhavam. Na maioria dos
lugares as despensas ficavam fechadas. Quando demitia a empregada, a dona de
casa verificava, no último minuto, os pertences daquela que saía, conduzia uma
verdadeira revista corporal, examinava detidamente a trouxa embrulhada,
conferia toalhas e colheres de prata, porque era sabido que “toda empregada
roubava”. A revista, a dona de casa conscienciosa também levava a cabo se a
“demissionária” doméstica tivesse servido na casa durante uma década, e sob seu
olhar nem uma agulha se perdia. As próprias empregadas não opunham resistência
ao exame humilhante, achavam-no natural. A boa dona de casa com frequência
tinha de fato razão quando desconfiava das “inimigas assalariadas” – as
empregadas roubavam de bom grado, em especial lenços, meias, toalhas. De toda
forma, as inimigas assalariadas causavam muitos problemas...
Márai,
Sandor
(1900-1989)
Confissões de um burguês. Tradução
de Paulo Schiller. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p 50-51
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