segunda-feira, 21 de maio de 2018

Trabalho bem feito

Observei com freqüência em alguns companheiros meus (às vezes até em mim mesmo) um fenômeno curioso: a ambição do “trabalho bem feito” está tão enraizada que impele a “fazer bem” mesmo trabalhos adversos, nocivos aos seus e à sua parte, tanto que é preciso um esforço consciente para executá-los “mal”. A sabotagem do trabalho nazista, além de ser perigosa, comportava inclusive a superação de resitências internas atávicas. O pedreiro de Fossano que me salvou a vida, e que descrevi em É isto um homem? e em “Lilith”, detestava a Alemanha, os alemães, sua comida, sua maneira de falar, sua guerra: mas, quando o puseram para erguer muros de proteção contra as bombas, fazia-os corretamente, sólidos, com tijolos bem assentados e com toda a argamassa que era necessária; não em reverência às ordens, mas por dignidade profissional.
[...] Em Um dia na vida de Ivan Denissovitch, Soljenitsin descrve uma situação quase idêntica: Ivan, o protagonista, condenado sem nenhuma culpa a dez anos de trabalho forçado, se compraz em erguer uma parede com perfeição, constatando depois que foi bem sucedido [...] quem assistiu a um célebre filme, A ponte do rio Kwai, recordará o zelo absurdo com que o oficila ingles prisioneiro dos japoneses se obstina em construir para eles uma audaciosíssima ponte de madeira, e se escandaliza quanndo se dá conta de que os sapadores ingleses a minaram. Como se vê, o amor pelo trabalho bem feito é uma virtude fortemente ambígua. Animou a Michelangelo até seus últimos dias; mas também Stangl, o diligentíssimo carniceiro de Treblinka, replica com irritação à sua entrevistadora: “tudo aquilo que fazia por minha livre vontade tinha de fazer da melhor forma que podia. Fui criado assim.” Da mesma virtude se orgulhava Rudolf Höss, o comandante de Auschwitz, quando narra o trabalho criativo que o induziu a inventar as câmaras de gás.

Levi, Primo (1919-1987)

Os afogados e os sobreviventes. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. 3edição. Rio de Janeiro/São Paul: Paz&Terra, 2016. p 99-100

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