domingo, 30 de junho de 2019

A solidão do cientista

Embora altamente satisfatória, uma carreira científica está longe de ser fácil. Experimentei muitos momentos de intenso prazer ao longo desse percurso e meu dia a dia é maravilhosamente revigorante do ponto de vista intelectual. Mas a diversão da atividade científica é explorar domínios do conhecimento que são relativamente inexplorados. Como todo aquele que se aventura no desconhecido, senti-me algumas vezes sozinho, inseguro e sem uma trilha aberta para percorrer. A cada vez que embarcava numa nova direção, pessoas bem-intencionadas, tanto do meu círculo social como colegas da comunidade científica, me aconselhavam a não fazê-lo. Tive que aprender desde o início a me sentir confortável numa situação insegura e a confiar no meu próprio julgamento.
[...] A decisão mais difícil que tive que tomar em relação à minha carreira foi abandonar a segurança potencial de uma prática em psiquiatria pela incerteza da pesquisa.


Kandel, Eric (1929 -)

Em busca da memória: o nascimento de uma nova ciência da mente. Tradução de Rejane Rubino. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p 449-50.






quarta-feira, 12 de junho de 2019

Trabalhador do mar


Mess Lethierry, o homem notável de Saint-Sampson, era um marinheiro terrível. Tinha navegado muito. Foi grumete, gageiro, timoneiro, contramestre, mestre de equipagem, piloto, arrais. Agora era armador. Ninguém conhecia o mar como ele. Era intrépido para salvar gente. Quando havia temporal Lethierry ia passear à praia, com os olhos no horizonte. Que é aquilo lá ao longe? É alguém que está em perigo. É um barco de Weymouth, ou de Aurigny, ou de Courseull, é um iate de um lorde, de um inglês, um francês, um pobre, um rico, é o diabo, fosse quem fosse, ele saltava dentro da lancha, chamava dois ou três homens valentes, dispensava-os quando não tinha, equipava ele só, desatava a amarra, travava do remo, fazia-se ao largo, subia e descia nas cavas das ondas, mergulhava no furacão, ia ao perigo. Viam-no assim de longe, no meio das lufadas do vento, de pé sobre a embarcação, gotejante de chuva, confundido com os relâmpagos, face de leão e juba de espuma. Passava assim às vezes um dia inteiro no perigo, e nas vagas à saraiva e ao vento, costeando os navios que soçobravam, salvando homens, salvando cargas, disputando com a tempestade. Voltava à noite para casa, e tecia um par de meias.
Passou esta vida cinquenta anos, desde os dez até os sessenta, enquanto foi moço. Aos sessenta anos, viu que já não podia levantar com um braço a bigorna da forja de Varclin; pesava aquela bigorna trezentas libras; foi atacado repentinamente de reumatismo. Teve de deixar o mar. Passou da idade heróica à idade patriarcal. Já não era mais do que um bonachão.



Hugo, Victor (1802-1885)

Os trabalhadores do mar. Tradução de Machado de Assis. Rio de janeiro: Ediouro. p.37.