sexta-feira, 29 de novembro de 2019

O princípio do iceberg


Entrevistador: Como se apresenta em sua mente a concepção de um conto? O tema, o enredo, algum personagem muda conforme vais escrevendo?
Hemingway: Às vezes sei a história. Às vezes vou compondo conforme escrevo e nem tenho ideia de como vai ficar. Tudo muda conforme o desenrolar. É isso que faz o movimento, que faz a história. Às vezes o movimento é tão lento que parece que não há movimento algum. Mas sempre há mudança e sempre há movimento.
[...] Faço uma relação de títulos depois que termino o conto ou o livro, à vezes chega a uns cem. Então, começo a eliminar alguns, às vezes todos.
[...] Se o escritor deixa de observar, está acabado. Mas ele não tem que observar conscientemente, nem pensar como isso vai ser útil. Talvez seja assim no início. Mas depois, tudo que ele vê passa a fazer parte da grande reserva de coisas que ele conhece ou já viu. Se é que isso pode ter algum interesse, sempre escrevo segundo o principio do iceberg. Só se vê um oitavo, os outros sete estão debaixo d’água. Tudo o que você sabe e pode eliminar só fortalece o iceberg. Agora, se o escritor omite alguma coisa porque não sabe o que é, então fica um buraco na história.




Hemingway, Ernest (1899-1961)



Os escritores 1: as históricas entrevistas da Paris Review. Tradução de Alberto Alexandre Martins e Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.


sexta-feira, 15 de novembro de 2019

O mel de Deus

 A group of beekeepers tending to their hives in the off-season while the bees are getting ready to start pollinating flowers. The group is led by Professor Russel Armin Balan, who has been certified by a course in producing organic honey. Tínun, Mexico, 2018.
Nadia Shira Cohen  (1977-)

Colheita

předchozí najedujici por Wladyslaw Slewinski (1856-1918, Polônia) |  Reproduções de arte em museus Wladyslaw Slewinski |  WahooArt.com
Wladyslaw Slewinski ( 1856-1918)

Leonardo da Vinci trabalhando


Matteo Bandello, autor do romance de Romeu e Julieta em que Shakespeare baseou sua peça, testemunhou com freqüência Leonardo empenhado na pintura da Última Ceia, no refeitório do mosteiro em que o tio do escritor era prior. Aqui está um relato fascinante do que ele viu: “Ele aparecia no convento muitas vezes ao amanhecer; e isso eu testemunhei pessoalmente. Subindo depressa pelo andaime, trabalhava diligentemente até que as sombras do final da tarde o obrigavam a parar, jamais se lembrando de comer, de tão absorvido no trabalho. Em outras ocasiões, ele passava três ou quatro dias sem mexer na pintura, aparecendo apenas por poucas horas para ficar parado na sua frente, de braços cruzados, contemplando as figuras como se as criticasse. Às vezes, ao meio-dia, quando o calor do sol em seu zênite esvaziava todas as ruas de Milão, eu o via sair apressado da cidade, onde estava modelando o seu cavalo colossal [o monumento equestre Sforfa], sem procurar qualquer sombra, seguindo pelo caminho mais curto até o convento, onde acrescentava um toque ou dois e voltava no instante seguinte”.


            Wasserman, Jack (1921-)


            Leonardo da Vinci. São Paulo: Record, 1984. p.92

Inaptidão

Acho que foi a minha inaptidão para o diálogo que gerou o poeta. Sujeito complicado, se vou falar, uma coisa me bloqueia, me inibe, e eu corto a conversa no meio, como quem é pego defecando e o faz pela metade. Do que eu poderia dizer, resta sempre um déficit de oitenta por cento. E os vinte por cento que eu consigo falar não correspondem senão ao que eu não gostaria de ter dito, o que me deixa um saldo mortal de angústia. Mesmo desde guri, no colégio, descobri essa barreira em mim, que não posso vencer. Sou um bom escutador e um vedor melhor. Mas só trancado e sozinho é que consigo me expressar. Assim mesmo, sem linearidade, por trancos, por sugestões, ambíguo,  como requer a poesia.


Manoel de Barros (1916-2014)



           Gramática expositiva do chão (poesia quase toda).
            2 Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.

Ditar


Ditar não é apenas mais cômodo, mais favorável à concentração, mas tem além disso uma vantagem objetiva. O ditado torna possível ao escritor, nas fases iniciais do processo de produção, colocar-se na posição do crítico. O que ele aí estabelece não é obrigatório, é provisório, simples material a ser elaborado; entretanto uma vez transcrito isto lhe aparecerá como algo dele alienado e, em certa medida, objetivo. Ele não precisa ter medo de fixar alguma coisa que não permaneça, pois não é ele quem tem que escrevê-lo: por responsabilidade ele prega uma peça nesta última. O risco de formular toma primeiro a forma inofensiva de um ligeiro memorando que lhe é apresentado, depois, de um trabalho efetuado sobre algo já existente, de tal modo que já não percebe mais sua própria audácia. Face à dificuldade de cada enunciado teórico- que pode chegar a proporções desesperadoras- esses estratagemas tornam-se uma bênção. Eles são meios técnicos auxiliares do procedimento dialético, que faz asserções para depois retirá-las e, no entanto, mantê-las. Mas quem anota o ditado merece agradecimentos, se por contradição, ironia, nervosismo, impaciência ou falta de respeito, tira o escritor do seu sossego no momento certo. Ele atrai sobre si a raiva, e essa cólera é derivada da má consciência armazenada, com que o autor desconfia de seu próprio produto e que o incita a agarrar-se com unhas e dentes, com obstinação cada vez maior, ao texto que presume sagrado. O afeto que é dirigido com ingratidão ao incômodo ajudante tem um efeito purificador sobre a relação com a coisa tratada.

                        Adorno, Theodor (1903-1969)


                        Mínima Moralia. Tradução de Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática, 1992.p 186.

Sobre Anna Akmatova


Ela (Anna Akmatova) me contou que nunca usava lápis e papel ao elaborar os seus poemas. Trabalhava em cada verso durante muito tempo; mas só os anotava depois de o poema ter chegado a sua forma final, às vezes até uma ou duas semanas depois de já o ter recitado em público para seus amigos. Dizia que o processo de escrever, de segurar uma caneta na mão, lhe parecia cansativo e, por isso, não gostava de escrever cartas. Sua letra era laboriosa e desajeitada, como acontece com as pessoas que não estão acostumadas a escrever. Lembro-me de que, uma vez, lhe pedi que pusesse dedicatórias em dois livros que me tinha dado. A primeira ela já fez bem curtinha; mas quando chegou na segunda, já cansada, limitou-se a assinar seu nome. Era muito típico de sua maneira de ser, essa peculiaridade de memorizar o poema por longo tempo, antes de confiá-lo ao papel. Com que atenção ela deve ter ouvido a música interior das palavras, com que modo incorruptivelmente terno deve tê-las carregado consigo, através de sua longa vida, até a morte.



Wladimir Weidlé (1895-1979)
                        
Ana Akhmatova, poesia 1912-1964. Introdução de Wladimir Weidlé. Seleção, tradução e notas de Lauro Machado Coelho, L&PM, 1991.