quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Tu nasceu para vaqueiro

_Você ainda se lembra da primeira topada sua, Raymundão?

_Ah, seô Major, foi um boi retaco, que caminhava na gente por gosto e investia de olho aberto e cabeça alteada, feito vaca...O senhor sabe, esse é o pior que tem, para se escorar...Meu pai, que era vaqueiro mestre, achou que era o dia de experimentar minha força...Dei certo, na regra, graças a Deus....

_Você pensou alguma coisa na hora, Raymundão? Que foi que você sentiu?

_Só, na horinha que o bicho partiu em mim, eu achei que ele era grande demais, e pensei que, de em-antes, eu nunca tinha visto um boi grande assim, no meio dos outros...Mas isso foi assim num átimo, porque depois as mãos e o corpo da gente mexem por si, e eu acho que até a vara se governa...quando dei fé, a festa tinha acabado, e meu pai estava me dando um cigarro, que ele mesmo tinha enrolado para mim, o primeiro que eu pitei na vista dele...E foi falando:_ “Meu filho, tu nasceu para vaqueiro, agora eu sei”...

_Velho inteiro! E a bambeza, depois?

_Não tive, seô Major. Só fome muita, isso sim. O pior foi que eu piscava, e afundei a cabeça n’água fria, mas sem valer, porque fiquei o dia com aquele boi nas minhas vistas, que nem um retrato, que doía até...Era um caraúno caralarga, espácio, com sete anos de idade, com os cinco anéis no pé do chifre...

 

 

Guimarães Rosa, João (1908-1967)

 

 

 

Sagarana. O burrinho pedrês. João Guimarães Rosa Ficção completa, Volume 1, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995. p 223.