segunda-feira, 21 de maio de 2018

Trabalho nos campos de concentração


Nos primeiros Lager, quase contemporâneos da conquista do poder por Hitler, o trabalho era puramente persecutório, praticamente inútil para fins produtivos. Mandar gente desnutrida remover turfa ou quebrar pedra só servia como objetivo terrorista. De resto, para a retórica nazista e fascista, herdeira nisso da retórica burguesa, “o trabalho enobrece”, e, portanto, os ignóbeis adversários do regime não são dignos de trabalhar no sentido usual do termo. Seu trabalho deve ser aflitivo, não deve abrir espaço para a competência profissional. Deve ser aquele dos animais de carga, puxar, empurrar, levar peso, vergar sobre a terra. Também esta, uma violência inútil: talvez útil apenas para quebrar as resistências atuais e punir as resistências passadas. As mulheres de Ravensbrück narram jornadas intermináveis transcorridas durante o período de quarentena (ou seja, antes do enquadramento das brigadas de trabalho em fábrica) a remover areia das dunas: em círculos, sob o sol de julho, cada deportada devia deslocar a areia de seu monte para o monte da vizinha da direita, num circuito sem meta nem fim, uma vez que a areia voltava para o lugar de onde era retirada.
Mas é duvidoso que esse tormento do corpo e do espírito, mítico e dantesco, tivesse sido imaginado para prevenir a formação de núcleos de autodefesa ou de resistência ativa: os SS dos Lager eram antes brutos obtusos do que demônios sutis. Tinham sido educados para a violência: a violência corria em suas veias, era normal, óbvia. Transbordava de seus rostos, de seus gestos, de sua linguagem. Humilhar, fazer o “inimigo“ sofrer era seu ofício de cada dia: não raciocinavam sobre isso, não tinham segundas intenções: a intenção era aquela. Não quero dizer que fossem feitos de uma substância humana perversa, diferente da nossa (entre eles também havia os sádicos, os psicopatas, mas eram poucos): simplesmente tinham sido submetidos por alguns anos a uma escola em que a moral corrente fora invertida. Num regime totalitário, a educação, a propaganda e a informação não encontram obstáculos: têm um poder ilimitado, uma ideia da qual dificilmente pode fazer quem nasceu e viveu num regime pluralista.

 Levi, Primo (1919-1987)

Os afogados e os sobreviventes. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. 3 edição. Rio de Janeiro/São Paul:Paz&Terra, 2016. p 98-99

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