Nos primeiros Lager, quase contemporâneos da conquista do poder por Hitler, o
trabalho era puramente persecutório, praticamente inútil para fins produtivos. Mandar gente desnutrida remover turfa ou quebrar pedra só servia como objetivo
terrorista. De resto, para a retórica nazista e fascista, herdeira nisso da
retórica burguesa, “o trabalho enobrece”, e, portanto, os ignóbeis adversários
do regime não são dignos de trabalhar no sentido usual do termo. Seu trabalho
deve ser aflitivo, não deve abrir espaço para a competência profissional. Deve
ser aquele dos animais de carga, puxar, empurrar, levar peso, vergar sobre a
terra. Também esta, uma violência inútil: talvez útil apenas para quebrar as
resistências atuais e punir as resistências passadas. As mulheres de
Ravensbrück narram jornadas intermináveis transcorridas durante o período de
quarentena (ou seja, antes do enquadramento das brigadas de trabalho em
fábrica) a remover areia das dunas: em círculos, sob o sol de julho, cada
deportada devia deslocar a areia de seu monte para o monte da vizinha da
direita, num circuito sem meta nem fim, uma vez que a areia voltava para o
lugar de onde era retirada.
Mas é duvidoso que esse tormento do corpo e
do espírito, mítico e dantesco, tivesse sido imaginado para prevenir a formação
de núcleos de autodefesa ou de resistência ativa: os SS dos Lager eram antes brutos obtusos do que demônios sutis. Tinham sido
educados para a violência: a violência corria em suas veias, era normal, óbvia.
Transbordava de seus rostos, de seus gestos, de sua linguagem. Humilhar, fazer
o “inimigo“ sofrer era seu ofício de cada dia: não raciocinavam sobre isso, não
tinham segundas intenções: a intenção era aquela. Não quero dizer que fossem
feitos de uma substância humana perversa, diferente da nossa (entre eles também
havia os sádicos, os psicopatas, mas eram poucos): simplesmente tinham sido
submetidos por alguns anos a uma escola em que a moral corrente fora invertida.
Num regime totalitário, a educação, a propaganda e a informação não encontram
obstáculos: têm um poder ilimitado, uma ideia da qual dificilmente pode fazer
quem nasceu e viveu num regime pluralista.
Levi, Primo (1919-1987)
Os afogados e os sobreviventes. Tradução de Luiz
Sérgio Henriques. 3 edição. Rio de Janeiro/São Paul:Paz&Terra, 2016. p
98-99
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