quarta-feira, 23 de maio de 2018

Os intérpretes


Os intérpretes se consideram semideuses ou semidivas, já que estão à vista dos governantes e representantes e delegados substitutos dos governantes e representantes e delegados substitutos e todos estes se desdobram por eles, melhor dizendo, por sua presença e trabalho. Em todo caso é inegável que podem ser divisados pelos dirigentes do mundo, o que os leva a andar sempre muito bem-vestidos dos pés à cabeça, e não é raro vê-los através do vidro pintando os lábios, penteando-se, ajustando melhor a gravata, arrancando pelos com pinças, soprando poeiras do terno ou aparando as costeletas (todos sempre com o espelhinho à mão). Isso cria mal-estar e rancor entre os tradutores de texto, escondidos em suas salas compartilhadas e sórdidas, é verdade, mas com um sentido da responsabilidade que os faz considerarem-se infinitamente mais sérios e competentes do que os mimados intérpretes com suas bonitas cabines individuais, transparentes, insonorizadas e até aromatizadas conforme os casos (há favoritismos). Todos se desprezam e se detestam, mas no que todos somos iguais é em que nenhum de nós sabe nada sobre esses temas tão cativantes dos quais já mencionei alguns exemplos. Reproduzi esses discursos ou textos de que falei antes, mas não me lembro de uma só palavra do que diziam; não porque tenha passado o tempo e a memória tenha sua cota de informação conservável, mas porque no mesmo momento de traduzir aquilo já não me lembrava de nada, isto é, já então não me dava conta do que o orador estava dizendo nem do que eu dizia em seguida ou, como se supõe que acontece, simultaneamente. Ele ou ela dizia e eu dizia ou repetia, mas de um modo mecânico que nada tem a ver com a intelecção, mais ainda, é incompatível com ela: só se você não compreende nem assimila em absoluto o que está ouvindo pode voltar a dizer com mais ou menos exatidão (sobretudo se recebe e solta sem pausa)...

Javier Marias (1951...)

Coração tão branco. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p 54-5

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