Os intérpretes se consideram semideuses ou
semidivas, já que estão à vista dos governantes e representantes e delegados
substitutos dos governantes e representantes e delegados substitutos e todos
estes se desdobram por eles, melhor dizendo, por sua presença e trabalho. Em
todo caso é inegável que podem ser divisados pelos dirigentes do mundo, o que
os leva a andar sempre muito bem-vestidos dos pés à cabeça, e não é raro vê-los
através do vidro pintando os lábios, penteando-se, ajustando melhor a gravata,
arrancando pelos com pinças, soprando poeiras do terno ou aparando as costeletas
(todos sempre com o espelhinho à mão). Isso cria mal-estar e rancor entre os
tradutores de texto, escondidos em suas salas compartilhadas e sórdidas, é
verdade, mas com um sentido da responsabilidade que os faz considerarem-se
infinitamente mais sérios e competentes do que os mimados intérpretes com suas
bonitas cabines individuais, transparentes, insonorizadas e até aromatizadas
conforme os casos (há favoritismos). Todos se desprezam e se detestam, mas no
que todos somos iguais é em que nenhum de nós sabe nada sobre esses temas tão
cativantes dos quais já mencionei alguns exemplos. Reproduzi esses discursos ou
textos de que falei antes, mas não me lembro de uma só palavra do que diziam;
não porque tenha passado o tempo e a memória tenha sua cota de informação
conservável, mas porque no mesmo momento de traduzir aquilo já não me lembrava
de nada, isto é, já então não me dava conta do que o orador estava dizendo nem
do que eu dizia em seguida ou, como se supõe que acontece, simultaneamente. Ele
ou ela dizia e eu dizia ou repetia, mas de um modo mecânico que nada tem a ver
com a intelecção, mais ainda, é incompatível com ela: só se você não compreende
nem assimila em absoluto o que está ouvindo pode voltar a dizer com mais ou
menos exatidão (sobretudo se recebe e solta sem pausa)...
Javier Marias (1951...)
Coração tão branco. Tradução de Eduardo
Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p 54-5
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