domingo, 20 de maio de 2018

Garis

As luvas fazem falta em todas as circunstâncias. Não obstante, lembramo-nos delas especialmente quando entramos em contato direto com o lixo a ser recolhido. Em determinada oportunidade, tivemos de entornar o conteúdo de caixas de papelão molhadas –repletas de lixo revirado- dentro de recipientes mais apropriados. O contato da nossa pele com o lixo foi inevitável. Inevitáveis também foram todas as sensações disparadas a partir daí: entorpecedoras. Sentia como se o corpo estivesse sendo corroído, como se não pudesse tocar em nada, em ninguém, nem em mim mesmo. Sentia como se não bastasse lavar as mãos. O que conteria aquele lixo? Como se livrar daquilo?
Muitas vezes, improvisamos alternativas: um saco de lixo limpo, por exemplo, pode vestir as mãos e servir como proteção, mas atrapalha o serviço. Para o fedor terrível, no entanto, ainda não foi possível inventar nenhum dispositivo que amenizasse o mal-estar. Nessas tarefas, nunca experimentamos que nossos “clientes” tenham levado em consideração que a limpeza do lixo por eles deixado vai ser conduzida por pessoas, pessoas que, como todas, podem ferir-se, exaurir-se, enjoar-se, contaminar-se. Uma experiência reiterada de invisibilidade, de desprezo público.


Costa, Fernando Braga da (1975-...)

Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. 3 reimpressão. São Paulo: Globo, 2010. p191

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