domingo, 27 de maio de 2018

Cooperação


Chama-se cooperação a forma de trabalho em que muitos trabalham juntos, de acordo com um plano, no mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes mas conexos.
O poder de ataque de um esquadrão de cavalaria ou o poder de resistência de um regimento de infantaria difere essencialmente da soma das forças individuais de cada cavalariano ou de cada infante. Do mesmo modo, a soma das forças mecânicas dos trabalhadores isolados difere da força social que se desenvolve quando muitas mãos agem simultaneamente na mesma operação indivisa, por exemplo, quando é mister levantar uma carga, fazer girar uma pesada manivela ou remover um obstáculo. O efeito do trabalho combinado não poderia ser produzido pelo trabalho individual, e só o seria num espaço de tempo muito mais longo ou numa escala muito reduzida. Não se trata aqui da elevação da força produtiva individual através da cooperação, mas da criação de uma força produtiva nova, a saber, a força coletiva. Pondo de lado a nova potência que surge da fusão de muitas forças numa força comum, o simples contato social, na maioria dos trabalhos produtivos, provoca emulação entre os participantes, animando-os e estimulando-os, o que aumenta a capacidade de realização de cada um, de modo que uma dúzia de pessoas, no mesmo dia de trabalho de 144 horas, produz um produto global muito maior do que 12 trabalhadores isolados, dos quais cada um trabalha 12 horas, ou de um trabalhadore que trabalhe 12 dias consecutivos. É que o homem, um animal político segundo Aristóteles, é por natureza um animal social.
[...] A cooperação é a forma fundamental do modo de produção capitalista. Na sua feição simples constitui o germe de espécies mais desenvolvidas de cooperação, e continua a existir ao lado delas.

Marx, Karl (1818-1883)

O Capital, Livro Primeiro, volume 1. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971, p 374-375 e 385

Impregnação


Mas quando exercemos uma profissão durante décadas, e a exercemos com prazer, ficamos mais impregnados por ela que por todo o resto.

Klemperer, Victor (1881-1960)

LTI, La langue Du III Reich, Paris: Éditions Albin Michel, 1996. p 34. Tradução minha.

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Sem pobres, quem faria o trabalho?


Onde quer que a propriedade esteja suficientemente protegida, seria mais fácil viver sem dinheiro do que sem pobres, pois [do contrário] quem faria o trabalho? [...] Assim como se deve cuidar para que os trabalhadores não morram de fome, também não se lhes deve dar nada que valha a pena ser poupado. Se aqui e ali alguém de classe mais baixa, mediante um esforço incomum e apertando o cinto, consegue elevar-se acima das condições em que se criou, ninguém deve impedi-lo: sim, não se pode negar que o plano mais sábio para cada pessoa privada, para cada família na sociedade, é ser frugal; mas é do interesse de todas as nações ricas que a maior parte dos pobres jamais esteja inativa e, no entanto, gaste continuamente o que ganha.[...] Os que ganham a vida com o seu trabalho diário [...] não têm nada que os estimule a serem serviçais senão suas necessidades, que é prudente mitigar mas insensato curar. A única coisa que pode tornar diligente o homem trabalhador é um salário moderado. Um pequeno demais o torna, a depender de seu temperamento, desanimado ou desesperançado; um grande demais o torna insolente e preguiçoso. [...] Do que expusemos até aqui segue que, numa nação livre, em que escravos não sejam permitidos, a riqueza mais segura está numa multidão de pobres laboriosos. Além de constituírem uma inesgotável fonte de homens para a marinha e o exército, sem eles não haveria qualquer satisfação e nenhum produto de nenhum país seria valorizável. Para fazer feliz a sociedade e satisfazer ao povo mesmo nas circunstâncias mais adversas, é necessário que a grande maioria permaneça tão ignorante quanto pobre. O conhecimento expande e multiplica nossos desejos e quanto menos um homem deseja, tanto mais facilmente se podem satisfazer suas necessidades.

 Mandeville, Bernard (1670-1733)

The fable of the bees, 5 ed, Londres, 1728, citado por Karl Marx. O Capital, livro1. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. p 692-3

O trabalhador perfeito


No quarteirão da fábrica, portas se abriam de todos os lados e logo ele era um dentre uma multidão que avançava furiosamente na escuridão. Quando atravessou o portão da fábrica o apito soou novamente. Deu uma olhada para o leste. Contra um rude horizonte de tetos e casas uma pálida luz principiava a brotar. Isso foi tudo que viu no dia enquanto lhe voltava as costas e reunia-se à sua turma de trabalho.
Tomou o seu lugar em uma das muitas longas filas de máquinas. À sua frente, sobre um coche cheio de pequenas bobinas, havia grandes bobinas girando com rapidez. Nestas, ele enrolava os novelos de juta das bobinas menores. O trabalho era simples. Tudo que era preciso era velocidade. As bobinas pequenas se esvaziavam tão rapidamente e havia tantas bobinas grandes fazendo isso que não lhe sobravam momentos de ócio.
Trabalhava mecanicamente. Quando uma bobina pequena se esvaziava, usava sua mão esquerda para pará-la, parando a bobina grande e, ao mesmo tempo, com o polegar e o indicador, alcançar a ponta do novelo de juta que se debatia. E, também ao mesmo tempo, com sua mão direita alcançava a ponta solta de uma bobina pequena. Esses vários atos eram realizados simultaneamente por ambas as mãos a toda velocidade. Aí elas se lançavam à frente como dois raios enquanto levantava o laço e soltava a bobina. Não havia nada de difícil nesses laços. Uma vez se gabara de que poderia atá-los até durante o sono. Aliás, ele às vezes o fazia, suando longos séculos numa única noite, atando uma sucessão infinita de laços de juta.
[...] Era o trabalhador perfeito. Sabia disso. Assim tinham-lhe dito, inúmeras vezes. Era um lugar-comum e, além disso, parecia não significar mais nada para ele. De trabalhador perfeito evoluíra para tornar-se a máquina perfeita. Quando seu trabalho ia mal, é porque ocorria com ele o mesmo que com uma máquina, era devido a material defeituoso. Era tão plausível um cortador de unhas perfeito cortar unhas imperfeitas quanto ele cometer um erro.
E não há por que se espantar. Jamais houvera um tempo em que não tivesse vivido em íntimas relações com máquinas. As máquinas quase tinham sido criadas dentro dele, de qualquer modo, ele tinha sido criado junto delas.

                        London, Jack (1876-1916)


                        De vagões e vagabundos, memórias do submundo. Porto Alegre: L&PM Editores, 1985. p 15-16
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O maestro

Não existe expressão mais clara e nítida do poder que a atividade do maestro. Cada detalhe de sua conduta pública é característico; tudo que ele faz serve para lançar luz sobre a natureza do poder. Quem nada soubesse a respeito do poder, poderia deduzir suas propriedades, uma após outra, a partir da observação atenta de um maestro. Para que isto nunca tenha sido feito há um motivo muito convincente: a música que o maestro dirige parece ser a coisa principal, e é geralmente aceito que as pessoas vão aos concertos para ouvir sinfonias. O próprio maestro é a pessoa que está mais convencida disso; sua regência, acredita ele, está a serviço da música e deve transmiti-la com exatidão e nada mais.
O maestro acredita ser o primeiro servidor da música. Ele se encontra tão tomado por ela que simplesmente não lhe pode ocorrer a idéia de um segundo sentido, extramusical, de sua atividade. Ninguém ficaria mais surpreso do que ele a respeito da interpretação que se segue.
O maestro está de pé. A posição ereta de um homem tem significado inclusive na lembrança de muitas representações de poder. Ele está de pé sozinho. Em torno dele está sentada a sua orquestra; atrás dele estão sentados os ouvintes; chama atenção o fato de ser ele o único a estar de pé. Está de pé num plano elevado e é visível tanto pela frente como pelas costas. Pela frente seus movimentos agem sobre a orquestra; por trás, sobre os ouvintes. As disposições, as ordens propriamente ditas, ele as transmite apenas com a mão ou com a batuta. Com um movimento mínimo, ele desperta repentinamente para a vida esta ou aquela voz, e quem ele quer que se cale, cala-se. Desta forma ele tem poder sobre a vida e a morte das vozes. Uma voz, que durante muito tempo tenha estado morta, pode ressuscitar em função de uma ordem sua. As diferenças entre os instrumentos correspondem às diferenças entre os homens. A orquestra é como uma reunião de todos os seus tipos principais. Sua disposição à obediência permite que o maestro os transforme numa unidade, que ele então representa para eles, sendo publicamente visível.
A obra que executa, sempre de natureza complexa, exige sua máxima atenção. Presença de espírito e rapidez estão entre as suas principais qualidades. Ele deve atingir como um raio todos os infratores da lei. As leis são colocadas na sua mão sob forma de partitura. Os outros também as têm e podem controlar o seu cumprimento, mas somente ele decide, e somente ele julga no ato qualquer coisa a respeito das falhas. Que isto suceda publicamente, à vista de todos em cada um dos seus detalhes, dá ao maestro uma consciência peculiar de si mesmo. Ele se habitua a ser visto sempre, e cada vez lhe é mais difícil abrir mão disto.
O fato de os ouvintes estarem sentados em silêncio faz parte das intenções do maestro, como a obediência da orquestra. Os ouvintes são obrigados a permanecer imóveis. Antes da chegada do maestro, antes do concerto, eles conversam e se movimentam em desordem. A presença dos músicos não causa preocupação em ninguém na platéia; praticamente não se dá atenção a eles. Aparece o maestro. Faz-se silêncio. Ele se coloca em posição; pigarreia; se coloca em posição; ergue a batuta; todos emudecem e ficam rígidos. Enquanto ele rege ninguém deve se movimentar. Assim que acaba de reger todos devem aplaudi-lo. Todo desejo de movimento, despertado e aumentado ainda mais pela música, deve ser contido até o final; depois, porém, explode. O maestro se inclina diante das mãos que o aplaudem. Por causa delas ele retorna várias vezes, quantas vezes essas mãos o quiserem. A elas, apenas a elas, ele está entregue; é para elas que ele realmente vive. É a antiga aclamação do vencedor que desta forma lhe é dada. A magnitude da vitória se expressa na medida do aplauso. Vitória e derrota tornam-se a forma pela qual ele organiza sua própria economia espiritual. Nada fora disso tem importância; tudo o que mais existe na vida dos outros se transforma para ele em vitória e derrota.
Durante a execução, o maestro é o guia para a multidão presente na sala. Ele se encontra na cabeça, na ponta desta multidão e vira as costas para ela. É a ele que a multidão segue, pois é ele que dá o primeiro passo. Mas em vez de avançar com o pé ele avança com a mão. O andamento da música, que é provocado pela mão, está no lugar do caminho que os pés seguiriam. Ele arrebata a multidão presente na sala. Durante a peça inteira, a multidão jamais lhe vê o rosto. Ele é implacável e não permite um momento sequer de descanso. Suas costas se erguem diante dele como se fossem a meta. Se ele se virasse, nem que fosse apenas uma vez, o feitiço estaria quebrado. O caminho que percorrem já não seria mais um caminho e, decepcionados, se encontrariam sentados numa sala imobilizada. Mas pode-se ter confiança: ele não se vira. Porque, enquanto eles o seguem, ele tem diante de si um pequeno exército de músicos profissionais que deve ser dominado. Também neste caso a mão auxilia, porém ela não serve apenas para indicar os passos como paras as pessoas que se encontram atrás dele, mas para transmitir ordens.
Seu olhar, sempre o mais intenso possível, abrange a orquestra inteira. Cada um dos integrantes se sente observado por ele; e, mais ainda sente-se ouvido por ele. As vozes do instrumento são as opiniões e as convicções às quais ele presta a maior atenção. Ele é onisciente, pois ao passo que os músicos têm diante de si apenas suas próprias vozes, ele tem a partitura toda na cabeça, ou sobre a estante. Ele sabe com toda a exatidão o que é permitido a cada um dos integrantes a qualquer instante. O fato de prestar atenção a todos em conjunto, confere-lhe o prestígio da onipresença. Por assim dizer, ele está na cabeça de todos e de cada um. Ele sabe o que cada um deve fazer, e também o que cada um faz. Ele, a somatória viva das leis, atua de ambos os lados da vida moral, pelo mandato da sua mão dispõe o que ocorre e evita o que não pode ocorrer. Seus ouvidos exploram o ar à procura do que é proibido. Para a orquestra o maestro representa assim, de fato, a peça inteira na sua simultaneidade e seqüência; e, como durante a execução o mundo não pode consistir em qualquer outra coisa que não seja a peça, durante esse tempo ele é o senhor do mundo.

Canetti, Elias (1905-1994)


Massa e poder. Tradução de Rodolfo Krestan. São Paulo: Melhoramentos; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1983. p 439-442

Se ficar...

Laerte Coutinho ( 1951-)

Isegoria

A liberdade do dinheiro exige trabalhadores presos no cárcere do medo, que é o cárcere mais cárcere de todos os cárceres. O deus do mercado ameaça e castiga; e bem o sabe qualquer trabalhador, em qualquer lugar. Hoje em dia, o medo do desemprego, que os empregadores usam para reduzir seus custos de mão de obra e multiplicar a produtividade, é a mais universal fonte de angústia. Quem está a salvo de ser empurrado para as longas filas dos que procuram trabalho? Quem não teme ser transformado em um “obstáculo interno”, isso para usar as palavras do presidente da Coca Cola, que há um ano e meio explicou a demissão de milhares de trabalhadores dizendo “eliminamos os obstáculos internos”?
E uma última pergunta: diante da globalização do dinheiro que divide o mundo entre domadores e domados, seremos capazes de internacionalizar a luta pela dignidade do trabalho? Haja desafio... 

Galeano, Eduardo (1940-2015)

O teatro do bem e do mal.L&PM Pocket, 2002. p 93-94


quinta-feira, 24 de maio de 2018

Os camponeses


Os camponeses, que trabalham mais do que todos os outros, jamais empregam a palavra “trabalho”.


                                                                                                                   
 Tchékhov, Anton (1860-1904)


Carnet des notes. Paris: Calmann-Levy Éditeurs, p 206. Tradução minha.

O guardador de porcos

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Paul Gauguin  ( 1848-1903)

Porto em Belém

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Pierre Verger (1902-1996)

Pesca em Itapuã

Pierre Verger ( 1902-1996)

Regresso de um proprietário

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 Debret, Jean Baptiste (1768-1848)

quarta-feira, 23 de maio de 2018

O trabalho das índias


Vê-se que para a mulher tupi a vida de casada era de contínuo trabalho: com os filhos, com o marido, com a cozinha, com os roçados. Isto sem esquecermos as indústrias domésticas a seu cargo, o suprimento d’água e o transporte de fardos. Mesmo grávida a mulher índia mantinha-se ativa dentro e fora de casa, apenas deixando de carregar às costas os volumes extremamente pesados . Mãe, acrescentava às suas muitas funções a de tornar-se uma espécie de berço ambulante da criança; de amamentá-la, às vezes até aos sete anos; de lavá-la; de ensinar as meninas a fiar algodão e a preparar a comida.
E eram trabalhos de suas próprias mãos os utensílios de que se servia para fazer a comida, para guardá-la, para pisar o milho ou o peixe, moquear a carne, espremer as raízes, peneirar as farinhas; os alguidares, as urupemas, as cuias, as cabaças de beber água, os balaios.

Freyre, Gilberto (1900-1987)


Casa-Grande & Senzala. 6 Edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora. 1950, p 259-260


Escravos


Sem escravos não se produziria o açúcar. E escravos em grande número; para plantarem a cana; para a cortarem; para colocarem a recoltada entre as moendas impelidas à roda d’água - nos engenhos chamados d’água, e por giro de besta ou de boi, nos chamados almanjarras ou trapiches; limparem depois os sumos nas caldeiras de cocção; fazerem coalhar o caldo; purgarem e branquearem o açúcar nas formas de barro; destilarem a aguardente. Escravos que se tornaram literalmente os pés dos senhores: andando por eles, carregando-os de rede ou de palanquim. E as mãos- ou pelo menos, as mãos direitas; as dos senhores se vestirem, se calçarem, se abotoarem, se limparem, se catarem, se lavarem, tirarem os bichos dos pés. De um senhor de engenho pernambucano conta a tradição que não dispensava a mão do negro nem para os detalhes mais íntimos da toilette; e de ilustre titular do Império refere Von den Steinen que uma escrava é que lhe acendia os charutos passando-os já acesos à boca do velho. Cada branco de casa-grande ficou com duas mãos esquerdas, cada negro com duas mãos direitas. As mãos do senhor só servindo para desfiar o rosário no terço da Virgem; para pegar nas cartas de jogar; para tirar rapé das bocetas ou dos corriboques; para agradar, apalpar, amolegar os peitos das negrinhas, das mulatas, das escravas bonitas dos seus haréns.

Freyre, Gilberto ( 1900-1987)

Casa-Grande & Senzala. 6 Edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1950. p 699

Trabalhos


Enquanto não se acabar quem trabalhe, não se acabarão os trabalhos.

Saramago, José (1922 -2010)


Memorial do Convento, 14 edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p 243

Os intérpretes


Os intérpretes se consideram semideuses ou semidivas, já que estão à vista dos governantes e representantes e delegados substitutos dos governantes e representantes e delegados substitutos e todos estes se desdobram por eles, melhor dizendo, por sua presença e trabalho. Em todo caso é inegável que podem ser divisados pelos dirigentes do mundo, o que os leva a andar sempre muito bem-vestidos dos pés à cabeça, e não é raro vê-los através do vidro pintando os lábios, penteando-se, ajustando melhor a gravata, arrancando pelos com pinças, soprando poeiras do terno ou aparando as costeletas (todos sempre com o espelhinho à mão). Isso cria mal-estar e rancor entre os tradutores de texto, escondidos em suas salas compartilhadas e sórdidas, é verdade, mas com um sentido da responsabilidade que os faz considerarem-se infinitamente mais sérios e competentes do que os mimados intérpretes com suas bonitas cabines individuais, transparentes, insonorizadas e até aromatizadas conforme os casos (há favoritismos). Todos se desprezam e se detestam, mas no que todos somos iguais é em que nenhum de nós sabe nada sobre esses temas tão cativantes dos quais já mencionei alguns exemplos. Reproduzi esses discursos ou textos de que falei antes, mas não me lembro de uma só palavra do que diziam; não porque tenha passado o tempo e a memória tenha sua cota de informação conservável, mas porque no mesmo momento de traduzir aquilo já não me lembrava de nada, isto é, já então não me dava conta do que o orador estava dizendo nem do que eu dizia em seguida ou, como se supõe que acontece, simultaneamente. Ele ou ela dizia e eu dizia ou repetia, mas de um modo mecânico que nada tem a ver com a intelecção, mais ainda, é incompatível com ela: só se você não compreende nem assimila em absoluto o que está ouvindo pode voltar a dizer com mais ou menos exatidão (sobretudo se recebe e solta sem pausa)...

Javier Marias (1951...)

Coração tão branco. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p 54-5

terça-feira, 22 de maio de 2018

O semeador

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François Millet - 1850

Mulher com ancinho


Vincent Van Gogh  ( 1853-1890)


A sesta

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Vincent Van Gogh ( 1853-1890)

Raspadores de assoalho

Os Raspadores de Assoalho

Gustave Caillebotte, 1875

Café



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Cândido Portinari  ( 1903-1962)



A balconista


[A balconista] velha guarda, com pelo menos dez anos de experiência na loja, torna-se ou uma revoltada sempre descontente, ou uma balconista inteiramente acomodada no emprego. Em qualquer dos casos, é a espinha dorsal da equipe de vendedoras, a pedra fundamental sobre a qual a loja se sustenta. Quando se revolta, não investe contra si mesma ou as mercadorias, mas contra a loja: é contra seus métodos de venda, contra o resto do pessoal, e muitas vezes lança seu rancor e sarcasmo sobre o freguês. Muitas balconistas dizem detestar a loja e os fregueses; a revoltada tem prazer em odiá-los e, de fato, vive desse ódio, embora esteja pronta para defender a loja diante de um freguês. A maioria das balconistas desse tipo é formada de mulheres mais idosas que trabalharam em todas as seções. “Naquele tempo os fregueses eram quase todos senhoras e cavalheiros distintos, realmente diferentes desses novos-ricos que vêm aqui diariamente vindos de todos os cantos. Esbravejam contra a mercadoria e o serviço e eu simplesmente ignoro-os com um olhar glacial e um rosto impassível. Não me apresso em atendê-los. Estou farta de ouvi-los. Estou farta também de ouvir falar de regras e regulamento; estou cansada da comida meio crua que eles nos jogam na lanchonete após uma fila de vinte minutos, enquanto os outros não se decidem o que vão mastigar na sua ração de meio dia. Sim, as coisas estão mudadas aqui, mas nada é realmente novo: são sempre as mesmas velhas regras e a mesma conversas de maneiras de vender e tipos de fregueses, conversa antiga mas com palavras diferentes, novos ângulos, novos chefes. Todos os chefes que tive aqui sempre me aborreceram, de modo que agora estou acostumada”. “O chefe da seção simplesmente me detesta, mas estou aqui há tanto tempo que ele não pode fazer nada. Enquanto meu volume de vendas continuar alto- e sempre foi muito bom- eles só podem me criticar por coisas de menor importância. Nunca me dei bem com os chefes, e já vi muitos delese entrar e sair do magazine. Uma hora eles querem isso, outra aquilo, daqui a pouco é tudo diferente, sempre criticando por uma coisa ou outra. Às vezes duvido se eles realmente acreditam no que querem...Fico irritada com suas “novas técnicas de venda” e outra idiotices. Após dezessete anos nessa casa não preciso de conselhos ou instrução sobre como devo vender. Eles não me enganam: conheço o jogo deles há muitos anos [...] O senhor pergunta: então porque fico aqui. Não tenho certeza de poder fazer outra coisa. Levanto, tomo banho, visto-me e tomo café, arrumo minhas coisas e vou para o Macy’s. É uma sequência quase automática; muitas vezes faço o mesmo aos domingos e um dia fui à estação antes de cair em mim e perceber que era domingo. Apenas um velho cavalo de aluguel atento à campainha, não passo disso.”

Wright Mills, Charles (1916-1962)

A nova classe média. Tradução de Vera Borda, 2 edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. p 196


segunda-feira, 21 de maio de 2018

Trabalho concreto e trabalho abstrato

O duplo caráter do trabalho materializado na mercadoria

A mercadoria apareceu-nos, inicialmente, como duas coisas: valor-de-uso e valor-de-troca. Mais tarde, verificou-se que o trabalho também possui duplo caráter: quando se expressa como valor, não possui mais as mesmas características que lhe pertencem como gerador de valores de uso. Fui quem, primeiro, analisou e pôs em evidência essa natureza dupla do trabalho contido na mercadoria. Para compreender a economia política é essencial conhecer essa questão, que, por isso, deve ser estudada mais de perto.

 [...] Todo trabalho é, de um lado, dispêndio de força humana de trabalho, no sentido fisiológico, e, nessa qualidade de trabalho humano igual ou abstrato, cria o valor das mercadorias. Todo trabalho, por outro lado, é dispêndio de força humana de trabalho, sob forma especial, para um determinado fim, e, nessa qualidade de trabalho útil e concreto, produz valores-de-uso *.

* [nota da 4 edição: a língua inglesa tem a vantagem de possuir duas palavras distintas para designar esses dois aspectos diferentes do trabalho. O trabalho que gera valores-de-uso e se determina qualitativamente, chama-se de “work”, distinguindo-se, assim, de “labour”, o trabalho que cria valor e que só pode ser avaliado quantitativamente].

Marx, Karl (1818-1883)


O Capital, Livro Primeiro, volume 1. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971, p 48; 54;55

Escrevendo um currículo


O que é preciso?
É preciso fazer um requerimento
e ao requerimento anexar um currículo.

O currículo tem que ser curto
mesmo que a vida seja longa.

Obrigatória a concisão e seleção dos fatos.
Trocam-se as paisagens pelos endereços
e a memória vacilante pelas datas imóveis.

De todos os amores basta o casamento,
e dos filhos só os nascidos.

Melhor quem te conhece do que o teu conhecido.
Viagens só se for para fora.
Associações a quê, mas sem por quê.
Distinções sem a razão.

Escreva como se nunca falasse consigo
e se mantivesse à distância.

Passe ao largo de cães, gatos e pássaros,
de trastes empoeirados, amigos e sonhos

Antes o preço que o valor
e o título que o conteúdo.
Antes o número do sapato que aonde vai
esse por quem você se passa.

Acrescente uma foto com a orelha de fora.
O que conta é o seu formato, não o que se ouve.
O que se ouve?
O matraquear das máquinas picotanto papel.

Wislawa Szymborska (1923- 2012)

Poemas. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.p 81-2

A refinaria de Cimpina

Na refinaria, os fogos não se apagam nunca. Pois a atividade não pára nem um instante. E as altas chaminés, que de perto parecem gigantescas, vomitam ondas ininterruptas de fumaças. Os imensos reservatórios alinhados ao longo da parede do pátio recolhem todo o petróleo extraído das entranhas da terra, por centenas de poços, que cobrem as colinas das vizinhanças. Ele é negro, espumoso, impetuoso. As bombas dele se apossam, fazem-no correr em inúmeroas tubulações; depois, os mecanismos complicados da refinaria o fazem ferver, torturam-no e tiram dele tudo o que se pode tirar: a gasolina, o óleo de lamparina, a parafina...até que restem apenas resíduos cujo cheiro empesta as ruas de Cimpina.
Diante de cada grupo de caldeiras, um cartaz adverte sobre o perigo. Perigo de fumar, perigo de se aproximar, perigo de mexer. Perigo de morte. Perigo de ser carbonizado. E entretanto, homens trabalham entre todos esses perigos, eles abrem e fecham válvulas, vigiam o inferno das máquinas.
Mas este atrevimento é tão extenuante que, de noite, estes homens descem titubeantes as escadas em caracol, embrutecidos pelo calor, pelo barulho e pela tensão excessiva de seus nervos.
Com estes homens, com seu tormento e sua vida não sonham nenhum dos imbecis que se envaidecem com “a maior refinaria da Europa”.

Geo Bogza  (1908-1993)


Années de Ténèbres. Bucarest: Éditions Le Livre, 1995. p 62. Tradução minha

Disponibilidade

Não acredito que a palavra improvisação tenha a menor ligação com o processo de criação artística. É um termo absolutamente inadequado e até irritante. Não falarei de uma improvisação mas de uma disponibilidade. Diria que é necessário ficar disponível para a coisa que está nascendo e que ainda é informe, magmática, não definida, e que o criador, que é chamado para materializar, definir, propor por um certo mundo confuso, um certo sentimento que pertence a uma certa dimensão, que é chamado a pintar esse quadro, a compor essa ópera, a escrever esse livro, a fazer esse filme, deve conservar uma certa disponibilidade. Eis a palavra. Ficar disponível para tudo que esse fantasma, essa criatura que começa a aparecer sugere. Não se entorpecer na pretensão de querer criar exatamente tal como se imaginou, segundo os esquemas, os parâmetros de sua própria cultura, de sua própria ignorância, de sua própria ideologia, política ou estética, mas se entregar, confiante, às sugestões que a criatura pode fazer, mesmo através de incidentes - a doença de um ator que desaparece, com o qual não podemos mais contar, uma desavença ainda mais violenta com o produtor, o fato de você mesmo cair doente - tudo pode ser interpretado em seguida como pausas, contrariedades necessárias, porque você não teria pensado nisso se não tivesse tido essa disponibilidade, esse ouvido, esse olho atento ao processo que se define dia após dia. Como já disse seguidamente, nas duas primeiras semanas sou eu que dirijo o filme, em seguida é o filme que me dirige. Acredito profundamente nisso, apesar dos limites que impõe, e de que tenho consciência. É um pouco paradoxal, mas é o que penso.

 Federico  Fellini (1920-1993)


Eu sou um grande mentiroso, entrevista a Damien Pettigrew. Tradução de Fernanda Borges e Roberto Paulino. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. p 77.


Vendedor de jornal

O vendedor de jornais é o tipo mais despreocupado e alegre do mundo.
Tem uma alma de pássaro.
Claro está que nos não referimos ao carrancudo portugues que, em meio de uma chusma de folhas metodicamente expostas, passa os dias sentado, com as pernas cruzadas, no ponto de reunião da Rua do Ouvidor com o Largo de São Francisco, na Brahma, nas portas dos cafés da Avenida, em toda a parte. Não aludimos tampouco ao grave italiano de bigodeira espessa nem ao “carcamano” que, de bolsa a tiracolo, apregoa uma algaravia “à la diable”, a Nôtizia e o Zêculo.
Queremos falar do pequenino garoto de dez anos, o brasileirito trêfego, ativo, tagarela como uma pega, travesso como um tico-tico.
Está sempre a rir, sempre a cantar. Canta o dia inteiro, num tom arrastado, apregoando as revistas que vende.
Por aqui, por alí, vai, vem corre, galopa, atravessa as ruas com uma rapidez de raio, persegue os veículos, desliza entre os automóveis como uma sombra. Parece invulnerável.
É assim uma espécie de pensionista do público – arrebata as pontas de charuto que se jogam à rua e surrupia, para revender, os jornais que se deixam esquecidos nos bancos dos passeios. Se pode à socapa, deita a mão a alguma dessas pirâmides de frutos que sedutoramente se elevam às portas das mercearias.
É extraordinária a velocidade com que ele se transporta de um lugar para outro. Anuncia no Leme, na Tijuca, em Niterói, um jornal que a gente pensa ainda estar no prelo; dir-se-ia que tem asas.
Fuma, bebe aguardente, praqueja, solta pilhérias torpes, pisca os olhos maliciosamente à passagema das mulheres, canta trovas obcenas com a música de “cabocla de Caxangá”.
Torna-se importuno às vezes, quando, a correr pelas plataformas dos bondes, fazendo reviravoltas de símio para escapar à sanha de algum condutor rabugento, nos atordoa os ouvidos com estupendos gritos estridentes.
Nada lhe empana a limpidez de espírito, nada. Está tão habituado a anunciar todos os dias “um grande atentado, um pavoroso incêndio, a prisão do célebre bandido Fulano”, que afinal acaba por encarar todos esses fatos indiferentemente.
Tem gestos próprios e expressões peculiares. Para ele um assassínio ou um suicídio é simplesmente uma “encrenca”. Um conflito é um “roubo”. Sua interjeição predileta é uê, que, aliás, é usada por toda gente carioca.
Parece que desconhece hierarquias e vaidades tolas, porque não empresta título a nenhum nome. Diz: “o partido do Pinheiro, discursos do Ruy Barbosa, o governo do Nilo Peçanha” como se todos os cabecilhas da República fossem apenas vendedores de jornais.
Fala sobre política, conhece o valor de nossos parlamentares, discute os principais episódios da conflagração européia, critica os atos do poder e emprega imoderadamente esses vistosos adjetivos que figuram nos cabeçalhos dos artigos importantes para engodar o público incauto.
Detesta a monotonia dos tempos de paz. Gosta das revoluções, dos motins, das grossas “mixórdias” que lhe proporcionam ocasiões de ver todas as folhas arrebatadas, sem que haja necessidade de ele gritar como nos dias ordinários.
Não é somente o jornalista que explora vantajosamente os crimes- ele, o garoto endiabrado, também sabe tirar partido das mais insignificantes perturbações da ordem, revestindo todos os fatos de acessórios que lhe dão proporção extraordinária. Parece que tem o dom de por um grande vidro de aumentar em cima dos acontecimentos.
É astucioso, impostor, velhaco.
Com uma finura de comerciante velho, emprega artimanhas de mestre, complicados ardis, artifícios que são uma obra prima de sutilieza, tudo para embair os transeuntes. Mente apregoando sedutoras notícias fantásticas.
Enfim, sob certos pontos de vista, o pequeno garoto vendedor de jornais é uma espécie de jornalista em miniatura...

 

Graciliano Ramos (1892-1953)


Linhas tortas. 14 edição. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1989. p 28-30

Ociosidade


A tradição bíblica ensina-nos que a felicidade do primeiro homem antes da queda consistia na ausência de trabalho, isto é, na ociosidade. O gosto da ociosidade manteve-se no homem réprobo, mas a maldição divina continua a pesar sobre ele, não só por ser obrigado a ganhar o pão de cada dia com o suor de seu rosto, mas também porque a sua natureza moral o impede de encontrar satisfação na inatividade. Uma voz secreta diz ao homem que ele é culpado de se abandonar à preguiça. E, no entanto, se o homem pudesse achar um estado em que se sentisse útil e em que tivesse o sentimento de que cumpria um dever, embora inativo, nesse estado viria a encontrar uma das condições da sua felicidade primitiva. Esta condição de ociosidade imposta e não censurável é aquela em que vive toda uma classe social, a dos militares. Em tal ociosidade está e estará o principal atrativo do serviço militar.


Tolstoi, Leon (1828-1910)


Guerra e Paz. Tradução de João Gaspar Simões. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1976. p 837

Psiquiatra

Sempre me fascinaram as explorações do mundo intrapsíquico. Foi com a intenção de fazer sondagens nesse mundo que estudei atentamente o desconexo palavreado dos esquizofrênicos; que observei sua mímica, seus gestos, seus atos, quer estivessem inativos quer na prática de atividades; que me debrucei sobre as imagens por eles livremente pintadas. (...) Um dos caminhos menos difíceis que encontrei para o acesso ao mundo interno do esquizofrênico foi dar-lhe a oportunidade de desenhar, pintar ou modelar com toda a liberdade. Nas imagens assim configuradas teremos auto-retratos da situação psíquica, imagens muitas vezes fragmentadas, extravagantes, mas que ficam aprisionadas no papel, tela ou barro. Poderemos sempre voltar a estudá-las. Foi observando-os e às imagens que configuravam, que aprendi a respeitá-los como pessoas, e desaprendi muito do que havia aprendido na psiquiatria tradicional. Minha escola foram esses ateliês.

Nise da Silveira (1905-1999)


O mundo das imagens. São Paulo: Editora Ática, 1992.


O trabalho mais difícil


Os oleiros regressavam já de noite, esgotados, extenuados e passavam todo o verão atirando à cara dos demais que eram eles que faziam o trabalho mais difícil. Segundo parece, era essa a sua consolação.


Dostoiévski, Fiódor M.(1821-1881)

            Memórias da Casa dos Mortos
 Fiodor Dostoiévski, Obras Completas, vol II.
            Rio de Janeiro: Companhia Aguilar Editora, 1963.

Trabalho bem feito

Observei com freqüência em alguns companheiros meus (às vezes até em mim mesmo) um fenômeno curioso: a ambição do “trabalho bem feito” está tão enraizada que impele a “fazer bem” mesmo trabalhos adversos, nocivos aos seus e à sua parte, tanto que é preciso um esforço consciente para executá-los “mal”. A sabotagem do trabalho nazista, além de ser perigosa, comportava inclusive a superação de resitências internas atávicas. O pedreiro de Fossano que me salvou a vida, e que descrevi em É isto um homem? e em “Lilith”, detestava a Alemanha, os alemães, sua comida, sua maneira de falar, sua guerra: mas, quando o puseram para erguer muros de proteção contra as bombas, fazia-os corretamente, sólidos, com tijolos bem assentados e com toda a argamassa que era necessária; não em reverência às ordens, mas por dignidade profissional.
[...] Em Um dia na vida de Ivan Denissovitch, Soljenitsin descrve uma situação quase idêntica: Ivan, o protagonista, condenado sem nenhuma culpa a dez anos de trabalho forçado, se compraz em erguer uma parede com perfeição, constatando depois que foi bem sucedido [...] quem assistiu a um célebre filme, A ponte do rio Kwai, recordará o zelo absurdo com que o oficila ingles prisioneiro dos japoneses se obstina em construir para eles uma audaciosíssima ponte de madeira, e se escandaliza quanndo se dá conta de que os sapadores ingleses a minaram. Como se vê, o amor pelo trabalho bem feito é uma virtude fortemente ambígua. Animou a Michelangelo até seus últimos dias; mas também Stangl, o diligentíssimo carniceiro de Treblinka, replica com irritação à sua entrevistadora: “tudo aquilo que fazia por minha livre vontade tinha de fazer da melhor forma que podia. Fui criado assim.” Da mesma virtude se orgulhava Rudolf Höss, o comandante de Auschwitz, quando narra o trabalho criativo que o induziu a inventar as câmaras de gás.

Levi, Primo (1919-1987)

Os afogados e os sobreviventes. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. 3edição. Rio de Janeiro/São Paul: Paz&Terra, 2016. p 99-100

A tarefa taylorista


Talvez a mais importante lei, pertencente a este tipo de relação com a administração científica, é o efeito que a ideia da tarefa exerce sobre a eficiência do trabalhador. Isto, de fato, tornou-se elemento tão importante no funcionamento da administração científica que este sistema vem sendo conhecido como “administração das tarefas”.
Não há, absolutamenente nada de novo na idéia da tarefa. Cada um de nós há de lembrar-se que pessoalmente esta idéia nos foi aplicada com bom êxito nos tempos do colégio. Nenhum professor eficiente pensa em dar à classe uma lição indefinida. Todos os dias uma tarefa limitada é entregue pelo professor ao aluno, na qual aquele determina o que deve ser estudado em cada matéria e somente por este meio é que se pode obter progresso conveniente e sistemático por parte dos discípulos. O estudante médio iria muito devagar, se em vez de lhe ser dada uma tarefa, deixassem-no fazer o que pudesse ou o que quisesse. Todos nós somos crianças grandes e é iqualmente certo que o operário médio trabalha com maior satisfação para si e para seu patrão quando lhe é dada, todos os dias, tarefa definida para ser realizada em tempo determinado e que representa um dia de serviço para um bom trabalhador. Isto proporciona ao operário uma medida precisa, pela qual pode, no curso do dia, apreciar seu próprio progresso, e este conhecimento traz-lhe grande satisfação.


Taylor, Frederick Winslow (1856-1915)


Princípios da Administração Científica. Tradução de Arlindo Vieira Ramos. São Paulo: Atlas, 1982, p 110