segunda-feira, 21 de maio de 2018

Disponibilidade

Não acredito que a palavra improvisação tenha a menor ligação com o processo de criação artística. É um termo absolutamente inadequado e até irritante. Não falarei de uma improvisação mas de uma disponibilidade. Diria que é necessário ficar disponível para a coisa que está nascendo e que ainda é informe, magmática, não definida, e que o criador, que é chamado para materializar, definir, propor por um certo mundo confuso, um certo sentimento que pertence a uma certa dimensão, que é chamado a pintar esse quadro, a compor essa ópera, a escrever esse livro, a fazer esse filme, deve conservar uma certa disponibilidade. Eis a palavra. Ficar disponível para tudo que esse fantasma, essa criatura que começa a aparecer sugere. Não se entorpecer na pretensão de querer criar exatamente tal como se imaginou, segundo os esquemas, os parâmetros de sua própria cultura, de sua própria ignorância, de sua própria ideologia, política ou estética, mas se entregar, confiante, às sugestões que a criatura pode fazer, mesmo através de incidentes - a doença de um ator que desaparece, com o qual não podemos mais contar, uma desavença ainda mais violenta com o produtor, o fato de você mesmo cair doente - tudo pode ser interpretado em seguida como pausas, contrariedades necessárias, porque você não teria pensado nisso se não tivesse tido essa disponibilidade, esse ouvido, esse olho atento ao processo que se define dia após dia. Como já disse seguidamente, nas duas primeiras semanas sou eu que dirijo o filme, em seguida é o filme que me dirige. Acredito profundamente nisso, apesar dos limites que impõe, e de que tenho consciência. É um pouco paradoxal, mas é o que penso.

 Federico  Fellini (1920-1993)


Eu sou um grande mentiroso, entrevista a Damien Pettigrew. Tradução de Fernanda Borges e Roberto Paulino. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. p 77.


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