Sebastião Salgado (1944-) |
Coletânea de excertos sobre as várias faces do trabalho, escolhidos a partir de muitas e prazerosas leituras de textos literários e afins (com algumas ilustrações)
quarta-feira, 30 de maio de 2018
domingo, 27 de maio de 2018
Cooperação
Chama-se cooperação a forma de trabalho em
que muitos trabalham juntos, de acordo com um plano, no mesmo processo de
produção ou em processos de produção diferentes mas conexos.
O poder de ataque de um esquadrão de
cavalaria ou o poder de resistência de um regimento de infantaria difere
essencialmente da soma das forças individuais de cada cavalariano ou de cada
infante. Do mesmo modo, a soma das forças mecânicas dos trabalhadores isolados
difere da força social que se desenvolve quando muitas mãos agem
simultaneamente na mesma operação indivisa, por exemplo, quando é mister
levantar uma carga, fazer girar uma pesada manivela ou remover um obstáculo. O efeito
do trabalho combinado não poderia ser produzido pelo trabalho individual, e só o
seria num espaço de tempo muito mais longo ou numa escala muito reduzida. Não se
trata aqui da elevação da força produtiva individual através da cooperação, mas
da criação de uma força produtiva nova, a saber, a força coletiva. Pondo de
lado a nova potência que surge da fusão de muitas forças numa força comum, o
simples contato social, na maioria dos trabalhos produtivos, provoca emulação
entre os participantes, animando-os e estimulando-os, o que aumenta a
capacidade de realização de cada um, de modo que uma dúzia de pessoas, no mesmo
dia de trabalho de 144 horas, produz um produto global muito maior do que 12
trabalhadores isolados, dos quais cada um trabalha 12 horas, ou de um trabalhadore
que trabalhe 12 dias consecutivos. É que o homem, um animal político segundo
Aristóteles, é por natureza um animal social.
[...] A cooperação é a forma fundamental do
modo de produção capitalista. Na sua feição simples constitui o germe de espécies
mais desenvolvidas de cooperação, e continua a existir ao lado delas.
Marx, Karl (1818-1883)
O Capital, Livro Primeiro, volume 1. Tradução
de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971, p
374-375 e 385
Impregnação
Mas quando exercemos uma profissão durante
décadas, e a exercemos com prazer, ficamos mais impregnados por ela que por
todo o resto.
Klemperer, Victor (1881-1960)
LTI, La langue Du III Reich, Paris: Éditions
Albin Michel, 1996. p 34. Tradução minha.
sábado, 26 de maio de 2018
sexta-feira, 25 de maio de 2018
Sem pobres, quem faria o trabalho?
Onde quer que a propriedade esteja
suficientemente protegida, seria mais fácil viver sem dinheiro do que sem
pobres, pois [do contrário] quem faria o trabalho? [...] Assim como se deve
cuidar para que os trabalhadores não morram de fome, também não se lhes deve
dar nada que valha a pena ser poupado. Se aqui e ali alguém de classe mais
baixa, mediante um esforço incomum e apertando o cinto, consegue elevar-se
acima das condições em que se criou, ninguém deve impedi-lo: sim, não se pode
negar que o plano mais sábio para cada pessoa privada, para cada família na
sociedade, é ser frugal; mas é do interesse de todas as nações ricas que a
maior parte dos pobres jamais esteja inativa e, no entanto, gaste continuamente
o que ganha.[...] Os que ganham a vida com o seu trabalho diário [...] não têm
nada que os estimule a serem serviçais senão suas necessidades, que é prudente
mitigar mas insensato curar. A única coisa que pode tornar diligente o homem
trabalhador é um salário moderado. Um pequeno demais o torna, a depender de seu
temperamento, desanimado ou desesperançado; um grande demais o torna insolente
e preguiçoso. [...] Do que expusemos até aqui segue que, numa nação livre, em
que escravos não sejam permitidos, a riqueza mais segura está numa multidão de
pobres laboriosos. Além de constituírem uma inesgotável fonte de homens para a
marinha e o exército, sem eles não haveria qualquer satisfação e nenhum produto
de nenhum país seria valorizável. Para fazer feliz a sociedade e satisfazer ao
povo mesmo nas circunstâncias mais adversas, é necessário que a grande maioria
permaneça tão ignorante quanto pobre. O conhecimento expande e multiplica
nossos desejos e quanto menos um homem deseja, tanto mais facilmente se podem
satisfazer suas necessidades.
Mandeville, Bernard (1670-1733)
The fable of the bees, 5 ed,
Londres, 1728, citado por Karl Marx. O Capital, livro1. São Paulo: Boitempo Editorial,
2013. p 692-3
O trabalhador perfeito
No quarteirão da fábrica, portas se abriam
de todos os lados e logo ele era um dentre uma multidão que avançava
furiosamente na escuridão. Quando atravessou o portão da fábrica o apito soou novamente.
Deu uma olhada para o leste. Contra um rude horizonte de tetos e casas uma pálida
luz principiava a brotar. Isso foi tudo que viu no dia enquanto lhe voltava as
costas e reunia-se à sua turma de trabalho.
Tomou o seu lugar em uma das muitas longas
filas de máquinas. À sua frente, sobre um coche cheio de pequenas bobinas,
havia grandes bobinas girando com rapidez. Nestas, ele enrolava os novelos de
juta das bobinas menores. O trabalho era simples. Tudo que era preciso era
velocidade. As bobinas pequenas se esvaziavam tão rapidamente e havia tantas
bobinas grandes fazendo isso que não lhe sobravam momentos de ócio.
Trabalhava mecanicamente. Quando uma bobina
pequena se esvaziava, usava sua mão esquerda para pará-la, parando a bobina
grande e, ao mesmo tempo, com o polegar e o indicador, alcançar a ponta do
novelo de juta que se debatia. E, também ao mesmo tempo, com sua mão direita
alcançava a ponta solta de uma bobina pequena. Esses vários atos eram
realizados simultaneamente por ambas as mãos a toda velocidade. Aí elas se lançavam
à frente como dois raios enquanto levantava o laço e soltava a bobina. Não
havia nada de difícil nesses laços. Uma vez se gabara de que poderia atá-los
até durante o sono. Aliás, ele às vezes o fazia, suando longos séculos numa
única noite, atando uma sucessão infinita de laços de juta.
[...] Era o trabalhador perfeito. Sabia
disso. Assim tinham-lhe dito, inúmeras vezes. Era um lugar-comum e, além disso,
parecia não significar mais nada para ele. De trabalhador perfeito evoluíra
para tornar-se a máquina perfeita. Quando seu trabalho ia mal, é porque ocorria
com ele o mesmo que com uma máquina, era devido a material defeituoso. Era tão
plausível um cortador de unhas perfeito cortar unhas imperfeitas quanto ele
cometer um erro.
E não há por que se espantar. Jamais
houvera um tempo em que não tivesse vivido em íntimas relações com máquinas. As
máquinas quase tinham sido criadas dentro dele, de qualquer modo, ele tinha sido
criado junto delas.
London,
Jack (1876-1916)
De
vagões e vagabundos, memórias do submundo. Porto Alegre: L&PM Editores,
1985. p 15-16
.
O maestro
Não existe expressão mais clara e nítida do
poder que a atividade do maestro. Cada detalhe de sua conduta pública é
característico; tudo que ele faz serve para lançar luz sobre a natureza do
poder. Quem nada soubesse a respeito do poder, poderia deduzir suas propriedades,
uma após outra, a partir da observação atenta de um maestro. Para que isto
nunca tenha sido feito há um motivo muito convincente: a música que o maestro
dirige parece ser a coisa principal, e é geralmente aceito que as pessoas vão
aos concertos para ouvir sinfonias. O próprio maestro é a pessoa que está mais
convencida disso; sua regência, acredita ele, está a serviço da música e deve
transmiti-la com exatidão e nada mais.
Canetti, Elias (1905-1994)
O maestro acredita ser o primeiro servidor
da música. Ele se encontra tão tomado por ela que simplesmente não lhe pode
ocorrer a idéia de um segundo sentido, extramusical, de sua atividade. Ninguém
ficaria mais surpreso do que ele a respeito da interpretação que se segue.
O maestro está de pé. A posição ereta de um homem tem significado inclusive
na lembrança de muitas representações de poder. Ele está de pé sozinho. Em torno dele está sentada a
sua orquestra; atrás dele estão sentados os ouvintes; chama atenção o fato de
ser ele o único a estar de pé. Está de pé num plano elevado e é visível tanto pela frente como pelas costas. Pela
frente seus movimentos agem sobre a orquestra; por trás, sobre os ouvintes. As
disposições, as ordens propriamente ditas, ele as transmite apenas com a mão ou
com a batuta. Com um movimento mínimo, ele desperta repentinamente para a vida
esta ou aquela voz, e quem ele quer que se cale, cala-se. Desta forma ele tem
poder sobre a vida e a morte das vozes. Uma voz, que durante muito tempo tenha
estado morta, pode ressuscitar em função de uma ordem sua. As diferenças entre
os instrumentos correspondem às diferenças entre os homens. A orquestra é como
uma reunião de todos os seus tipos principais. Sua disposição à obediência
permite que o maestro os transforme numa unidade, que ele então representa para
eles, sendo publicamente visível.
A obra que executa, sempre de natureza
complexa, exige sua máxima atenção. Presença de espírito e rapidez estão entre
as suas principais qualidades. Ele deve atingir como um raio todos os
infratores da lei. As leis são colocadas na sua mão sob forma de partitura. Os
outros também as têm e podem controlar o seu cumprimento, mas somente ele
decide, e somente ele julga no ato qualquer coisa a respeito das falhas. Que
isto suceda publicamente, à vista de todos em cada um dos seus detalhes, dá ao
maestro uma consciência peculiar de si mesmo. Ele se habitua a ser visto sempre, e cada vez lhe é mais
difícil abrir mão disto.
O fato de os ouvintes estarem sentados em
silêncio faz parte das intenções do maestro, como a obediência da orquestra. Os
ouvintes são obrigados a permanecer imóveis. Antes da chegada do maestro, antes
do concerto, eles conversam e se movimentam em desordem. A presença
dos músicos não causa preocupação em ninguém na platéia; praticamente não se dá
atenção a eles. Aparece o maestro. Faz-se silêncio. Ele se coloca em posição;
pigarreia; se coloca em posição; ergue a batuta; todos emudecem e ficam
rígidos. Enquanto ele rege ninguém deve se movimentar. Assim que acaba de reger
todos devem aplaudi-lo. Todo desejo de movimento, despertado e aumentado ainda
mais pela música, deve ser contido até o final; depois, porém, explode. O
maestro se inclina diante das mãos que o aplaudem. Por causa delas ele retorna
várias vezes, quantas vezes essas mãos o quiserem. A elas, apenas a elas, ele
está entregue; é para elas que ele realmente vive. É a antiga aclamação do
vencedor que desta forma lhe é dada. A magnitude da vitória se expressa na
medida do aplauso. Vitória e derrota tornam-se a forma pela qual ele organiza
sua própria economia espiritual. Nada fora disso tem importância; tudo o que
mais existe na vida dos outros se transforma para ele em vitória e derrota.
Durante a execução, o maestro é o guia para
a multidão presente na sala. Ele se encontra na cabeça, na ponta desta multidão
e vira as costas para ela. É a ele que a multidão segue, pois é ele que dá o
primeiro passo. Mas em vez de avançar com o pé ele avança com a mão. O
andamento da música, que é provocado pela mão, está no lugar do caminho que os
pés seguiriam. Ele arrebata a multidão presente na sala. Durante a peça
inteira, a multidão jamais lhe vê o rosto. Ele é implacável e não permite um
momento sequer de descanso. Suas costas se erguem diante dele como se fossem a
meta. Se ele se virasse, nem que fosse apenas uma vez, o feitiço estaria
quebrado. O caminho que percorrem já não seria mais um caminho e,
decepcionados, se encontrariam sentados numa sala imobilizada. Mas pode-se ter
confiança: ele não se vira. Porque, enquanto eles o seguem, ele tem diante de
si um pequeno exército de músicos profissionais que deve ser dominado. Também
neste caso a mão auxilia, porém ela não serve apenas para indicar os passos
como paras as pessoas que se encontram atrás dele, mas para transmitir ordens.
Seu olhar, sempre o mais intenso possível,
abrange a orquestra inteira. Cada um dos integrantes se sente observado por
ele; e, mais ainda sente-se ouvido por ele. As vozes do instrumento são as
opiniões e as convicções às quais ele presta a maior atenção. Ele é onisciente, pois ao passo que os músicos
têm diante de si apenas suas próprias vozes, ele tem a partitura toda na
cabeça, ou sobre a estante. Ele sabe com toda a exatidão o que é permitido a
cada um dos integrantes a qualquer instante. O fato de prestar atenção a todos
em conjunto, confere-lhe o prestígio da onipresença.
Por assim dizer, ele está na cabeça de todos e de cada um. Ele sabe o que cada
um deve fazer, e também o que cada um faz. Ele, a somatória viva das leis, atua
de ambos os lados da vida moral, pelo mandato da sua mão dispõe o que ocorre e
evita o que não pode ocorrer. Seus ouvidos exploram o ar à procura do que é
proibido. Para a orquestra o maestro representa assim, de fato, a peça inteira
na sua simultaneidade e seqüência; e, como durante a execução o mundo não pode consistir
em qualquer outra coisa que não seja a peça, durante esse tempo ele é o senhor
do mundo.
Canetti, Elias (1905-1994)
Massa e poder. Tradução
de Rodolfo Krestan. São Paulo: Melhoramentos; Brasília: Ed. Universidade de Brasília,
1983. p 439-442
Isegoria
A liberdade do dinheiro exige trabalhadores presos
no cárcere do medo, que é o cárcere mais cárcere de todos os cárceres. O deus
do mercado ameaça e castiga; e bem o sabe qualquer trabalhador, em qualquer
lugar. Hoje em dia, o medo do desemprego, que os empregadores usam para reduzir
seus custos de mão de obra e multiplicar a produtividade, é a mais universal
fonte de angústia. Quem está a salvo de ser empurrado para as longas filas dos
que procuram trabalho? Quem não teme ser transformado em um “obstáculo interno”,
isso para usar as palavras do presidente da Coca Cola, que há um ano e meio
explicou a demissão de milhares de trabalhadores dizendo “eliminamos os
obstáculos internos”?
E uma última pergunta: diante da globalização do
dinheiro que divide o mundo entre domadores e domados, seremos capazes de
internacionalizar a luta pela dignidade do trabalho? Haja desafio...
Galeano, Eduardo (1940-2015)
O teatro do bem e do mal.L&PM
Pocket, 2002. p 93-94
quinta-feira, 24 de maio de 2018
Os camponeses
Os camponeses, que trabalham mais do que
todos os outros, jamais empregam a palavra “trabalho”.
Tchékhov, Anton (1860-1904)
Carnet des notes. Paris: Calmann-Levy Éditeurs, p 206.
Tradução minha.
quarta-feira, 23 de maio de 2018
O trabalho das índias
Vê-se que para a mulher tupi a vida de
casada era de contínuo trabalho: com os filhos, com o marido, com a cozinha,
com os roçados. Isto sem esquecermos as indústrias domésticas a seu cargo, o
suprimento d’água e o transporte de fardos. Mesmo grávida a mulher índia
mantinha-se ativa dentro e fora de casa, apenas deixando de carregar às costas
os volumes extremamente pesados . Mãe,
acrescentava às suas muitas funções a de tornar-se uma espécie de berço
ambulante da criança; de amamentá-la, às
vezes até aos sete anos; de lavá-la; de ensinar as meninas a fiar algodão e a
preparar a comida.
E
eram trabalhos de suas próprias mãos os utensílios de que se servia para fazer
a comida, para guardá-la, para pisar o milho ou o peixe, moquear a carne,
espremer as raízes, peneirar as farinhas; os alguidares, as urupemas, as cuias,
as cabaças de beber água, os balaios.
Freyre, Gilberto
(1900-1987)
Casa-Grande & Senzala. 6 Edição.
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora. 1950, p 259-260
Escravos
Sem escravos não se produziria o açúcar. E
escravos em grande número; para plantarem a cana; para a cortarem; para
colocarem a recoltada entre as moendas impelidas à roda d’água - nos engenhos
chamados d’água, e por giro de besta ou de boi, nos chamados almanjarras ou trapiches; limparem
depois os sumos nas caldeiras de cocção; fazerem coalhar o caldo; purgarem e
branquearem o açúcar nas formas de barro; destilarem a aguardente. Escravos que
se tornaram literalmente os pés dos senhores: andando por eles, carregando-os
de rede ou de palanquim. E as mãos- ou pelo menos, as mãos direitas; as dos
senhores se vestirem, se calçarem, se abotoarem, se limparem, se catarem, se
lavarem, tirarem os bichos dos pés. De um senhor de engenho pernambucano conta
a tradição que não dispensava a mão do negro nem para os detalhes mais íntimos
da toilette; e de ilustre titular do
Império refere Von den Steinen que uma escrava é que lhe acendia os charutos
passando-os já acesos à boca do velho. Cada branco de casa-grande ficou com
duas mãos esquerdas, cada negro com duas mãos direitas. As mãos do senhor só
servindo para desfiar o rosário no terço da Virgem; para pegar nas cartas de
jogar; para tirar rapé das bocetas ou dos corriboques; para agradar, apalpar,
amolegar os peitos das negrinhas, das mulatas, das escravas bonitas dos seus
haréns.
Freyre, Gilberto ( 1900-1987)
Casa-Grande & Senzala. 6 Edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1950. p 699
Casa-Grande & Senzala. 6 Edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1950. p 699
Trabalhos
Enquanto não se acabar quem trabalhe, não
se acabarão os trabalhos.
Saramago,
José (1922 -2010)
Memorial do Convento, 14 edição. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p 243
Os intérpretes
Os intérpretes se consideram semideuses ou
semidivas, já que estão à vista dos governantes e representantes e delegados
substitutos dos governantes e representantes e delegados substitutos e todos
estes se desdobram por eles, melhor dizendo, por sua presença e trabalho. Em
todo caso é inegável que podem ser divisados pelos dirigentes do mundo, o que
os leva a andar sempre muito bem-vestidos dos pés à cabeça, e não é raro vê-los
através do vidro pintando os lábios, penteando-se, ajustando melhor a gravata,
arrancando pelos com pinças, soprando poeiras do terno ou aparando as costeletas
(todos sempre com o espelhinho à mão). Isso cria mal-estar e rancor entre os
tradutores de texto, escondidos em suas salas compartilhadas e sórdidas, é
verdade, mas com um sentido da responsabilidade que os faz considerarem-se
infinitamente mais sérios e competentes do que os mimados intérpretes com suas
bonitas cabines individuais, transparentes, insonorizadas e até aromatizadas
conforme os casos (há favoritismos). Todos se desprezam e se detestam, mas no
que todos somos iguais é em que nenhum de nós sabe nada sobre esses temas tão
cativantes dos quais já mencionei alguns exemplos. Reproduzi esses discursos ou
textos de que falei antes, mas não me lembro de uma só palavra do que diziam;
não porque tenha passado o tempo e a memória tenha sua cota de informação
conservável, mas porque no mesmo momento de traduzir aquilo já não me lembrava
de nada, isto é, já então não me dava conta do que o orador estava dizendo nem
do que eu dizia em seguida ou, como se supõe que acontece, simultaneamente. Ele
ou ela dizia e eu dizia ou repetia, mas de um modo mecânico que nada tem a ver
com a intelecção, mais ainda, é incompatível com ela: só se você não compreende
nem assimila em absoluto o que está ouvindo pode voltar a dizer com mais ou
menos exatidão (sobretudo se recebe e solta sem pausa)...
Javier Marias (1951...)
Coração tão branco. Tradução de Eduardo
Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p 54-5
terça-feira, 22 de maio de 2018
A balconista
[A balconista] velha guarda,
com pelo menos dez anos de experiência na loja, torna-se ou uma revoltada
sempre descontente, ou uma balconista inteiramente acomodada no emprego. Em
qualquer dos casos, é a espinha dorsal da equipe de vendedoras, a pedra
fundamental sobre a qual a loja se sustenta. Quando se revolta, não investe
contra si mesma ou as mercadorias, mas contra a loja: é contra seus métodos de
venda, contra o resto do pessoal, e muitas vezes lança seu rancor e sarcasmo
sobre o freguês. Muitas balconistas dizem detestar a loja e os fregueses; a
revoltada tem prazer em odiá-los e, de fato, vive desse ódio, embora esteja
pronta para defender a loja diante de um freguês. A maioria das balconistas
desse tipo é formada de mulheres mais idosas que trabalharam em todas as seções.
“Naquele tempo os fregueses eram quase todos senhoras e cavalheiros distintos,
realmente diferentes desses novos-ricos que vêm aqui diariamente vindos de
todos os cantos. Esbravejam contra a mercadoria e o serviço e eu simplesmente
ignoro-os com um olhar glacial e um rosto impassível. Não me apresso em
atendê-los. Estou farta de ouvi-los. Estou farta também de ouvir falar de
regras e regulamento; estou cansada da comida meio crua que eles nos jogam na
lanchonete após uma fila de vinte minutos, enquanto os outros não se decidem o
que vão mastigar na sua ração de meio dia. Sim, as coisas estão mudadas aqui,
mas nada é realmente novo: são sempre as mesmas velhas regras e a mesma
conversas de maneiras de vender e tipos de fregueses, conversa antiga mas com
palavras diferentes, novos ângulos, novos chefes. Todos os chefes que tive aqui
sempre me aborreceram, de modo que agora estou acostumada”. “O chefe da seção
simplesmente me detesta, mas estou aqui há tanto tempo que ele não pode fazer
nada. Enquanto meu volume de vendas continuar alto- e sempre foi muito bom-
eles só podem me criticar por coisas de menor importância. Nunca me dei bem com
os chefes, e já vi muitos delese entrar e sair do magazine. Uma hora eles
querem isso, outra aquilo, daqui a pouco é tudo diferente, sempre criticando
por uma coisa ou outra. Às vezes duvido se eles realmente acreditam no que
querem...Fico irritada com suas “novas técnicas de venda” e outra idiotices. Após
dezessete anos nessa casa não preciso de conselhos ou instrução sobre como devo
vender. Eles não me enganam: conheço o jogo deles há muitos anos [...] O senhor
pergunta: então porque fico aqui. Não tenho certeza de poder fazer outra coisa.
Levanto, tomo banho, visto-me e tomo café, arrumo minhas coisas e vou para o
Macy’s. É uma sequência quase automática; muitas vezes faço o mesmo aos
domingos e um dia fui à estação antes de cair em mim e perceber que era
domingo. Apenas um velho cavalo de aluguel atento à campainha, não passo disso.”
Wright Mills, Charles (1916-1962)
A nova classe média. Tradução de Vera Borda, 2 edição. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1976. p 196
segunda-feira, 21 de maio de 2018
Trabalho concreto e trabalho abstrato
O duplo caráter do trabalho materializado
na mercadoria
A mercadoria apareceu-nos, inicialmente,
como duas coisas: valor-de-uso e valor-de-troca. Mais tarde, verificou-se que o
trabalho também possui duplo caráter: quando se expressa como valor, não possui
mais as mesmas características que lhe pertencem como gerador de valores de uso.
Fui quem, primeiro, analisou e pôs em evidência essa natureza dupla do trabalho
contido na mercadoria. Para compreender a economia política é essencial
conhecer essa questão, que, por isso, deve ser estudada mais de perto.
[...] Todo trabalho é, de um lado, dispêndio
de força humana de trabalho, no sentido fisiológico, e, nessa qualidade de
trabalho humano igual ou abstrato, cria o valor das mercadorias. Todo trabalho,
por outro lado, é dispêndio de força humana de trabalho, sob forma especial,
para um determinado fim, e, nessa qualidade de trabalho útil e concreto, produz
valores-de-uso *.
* [nota da 4 edição: a língua inglesa tem a
vantagem de possuir duas palavras distintas para designar esses dois aspectos diferentes
do trabalho. O trabalho que gera valores-de-uso e se determina
qualitativamente, chama-se de “work”, distinguindo-se, assim, de “labour”, o
trabalho que cria valor e que só pode ser avaliado quantitativamente].
Marx, Karl (1818-1883)
O Capital, Livro Primeiro, volume 1. Tradução de
Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971, p 48;
54;55
Escrevendo um currículo
O que é preciso?
É preciso fazer um requerimento
e ao requerimento anexar um currículo.
O currículo tem que ser curto
mesmo que a vida seja longa.
Obrigatória a concisão e seleção dos fatos.
Trocam-se as paisagens pelos endereços
e a memória vacilante pelas datas imóveis.
De todos os amores basta o casamento,
e dos filhos só os nascidos.
Melhor quem te conhece do que o teu conhecido.
Viagens só se for para fora.
Associações a quê, mas sem por quê.
Distinções sem a razão.
Escreva como se nunca falasse consigo
e se mantivesse à distância.
Passe ao largo de cães, gatos e pássaros,
de trastes empoeirados, amigos e sonhos
Antes o preço que o valor
e o título que o conteúdo.
Antes o número do sapato que aonde vai
esse por quem você se passa.
Acrescente uma foto com a orelha de fora.
O que conta é o seu formato, não o que se ouve.
O que se ouve?
O matraquear das máquinas picotanto papel.
Wislawa Szymborska (1923- 2012)
Poemas. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.p 81-2
A refinaria de Cimpina
Na refinaria, os fogos não se apagam nunca.
Pois a atividade não pára nem um instante. E as altas chaminés, que de perto
parecem gigantescas, vomitam ondas ininterruptas de fumaças. Os imensos
reservatórios alinhados ao longo da parede do pátio recolhem todo o petróleo
extraído das entranhas da terra, por centenas de poços, que cobrem as colinas
das vizinhanças. Ele é negro, espumoso, impetuoso. As bombas dele se apossam,
fazem-no correr em inúmeroas tubulações; depois, os mecanismos complicados da
refinaria o fazem ferver, torturam-no e tiram dele tudo o que se pode tirar: a
gasolina, o óleo de lamparina, a parafina...até que restem apenas resíduos cujo
cheiro empesta as ruas de Cimpina.
Geo Bogza (1908-1993)
Diante de cada grupo de caldeiras, um cartaz
adverte sobre o perigo. Perigo de fumar, perigo de se aproximar, perigo de
mexer. Perigo de morte. Perigo de ser carbonizado. E entretanto, homens
trabalham entre todos esses perigos, eles abrem e fecham válvulas, vigiam o
inferno das máquinas.
Mas este atrevimento é tão extenuante que,
de noite, estes homens descem titubeantes as escadas em caracol, embrutecidos
pelo calor, pelo barulho e pela tensão excessiva de seus nervos.
Com estes homens, com seu tormento e sua
vida não sonham nenhum dos imbecis que se envaidecem com “a maior refinaria da
Europa”.
Geo Bogza (1908-1993)
Années de Ténèbres.
Bucarest: Éditions Le Livre, 1995. p 62. Tradução minha
Disponibilidade
Não acredito que a palavra
improvisação tenha a menor ligação com o processo de criação artística. É um
termo absolutamente inadequado e até irritante. Não falarei de uma improvisação
mas de uma disponibilidade. Diria que
é necessário ficar disponível para a coisa que está nascendo e que ainda é
informe, magmática, não definida, e que o criador, que é chamado para
materializar, definir, propor por um certo mundo confuso, um certo sentimento
que pertence a uma certa dimensão, que é chamado a pintar esse quadro, a compor
essa ópera, a escrever esse livro, a fazer esse filme, deve conservar uma certa
disponibilidade. Eis a palavra. Ficar disponível para tudo que esse fantasma,
essa criatura que começa a aparecer sugere. Não se entorpecer na pretensão de
querer criar exatamente tal como se imaginou, segundo os esquemas, os
parâmetros de sua própria cultura, de sua própria ignorância, de sua própria
ideologia, política ou estética, mas se entregar, confiante, às sugestões que a
criatura pode fazer, mesmo através de incidentes - a doença de um ator que
desaparece, com o qual não podemos mais contar, uma desavença ainda mais
violenta com o produtor, o fato de você mesmo cair doente - tudo pode ser
interpretado em seguida como pausas, contrariedades necessárias, porque você
não teria pensado nisso se não tivesse tido essa disponibilidade, esse ouvido,
esse olho atento ao processo que se define dia após dia. Como já disse
seguidamente, nas duas primeiras semanas sou eu que dirijo o filme, em seguida
é o filme que me dirige. Acredito profundamente nisso, apesar dos limites que
impõe, e de que tenho consciência. É um pouco paradoxal, mas é o que penso.
Federico Fellini (1920-1993)
Federico Fellini (1920-1993)
Eu sou um
grande mentiroso, entrevista a Damien Pettigrew. Tradução de Fernanda Borges e Roberto Paulino. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1995. p 77.
Vendedor de jornal
O vendedor de jornais é o tipo mais
despreocupado e alegre do mundo.
Graciliano Ramos
(1892-1953)
Tem uma alma de pássaro.
Claro está que nos não referimos ao
carrancudo portugues que, em meio de uma chusma de folhas metodicamente
expostas, passa os dias sentado, com as pernas cruzadas, no ponto de reunião da
Rua do Ouvidor com o Largo de São Francisco, na Brahma, nas portas dos cafés da
Avenida, em toda a parte. Não aludimos tampouco ao grave italiano de bigodeira
espessa nem ao “carcamano” que, de bolsa a tiracolo, apregoa uma algaravia “à
la diable”, a Nôtizia e o Zêculo.
Queremos
falar do pequenino garoto de dez anos, o brasileirito trêfego, ativo, tagarela
como uma pega, travesso como um tico-tico.
Está sempre a rir, sempre a cantar. Canta o
dia inteiro, num tom arrastado, apregoando as revistas que vende.
Por aqui, por alí, vai, vem corre, galopa,
atravessa as ruas com uma rapidez de raio, persegue os veículos, desliza entre
os automóveis como uma sombra. Parece invulnerável.
É assim uma espécie de pensionista do
público – arrebata as pontas de charuto que se jogam à rua e surrupia, para
revender, os jornais que se deixam esquecidos nos bancos dos passeios. Se pode
à socapa, deita a mão a alguma dessas pirâmides de frutos que sedutoramente se
elevam às portas das mercearias.
É extraordinária a velocidade com que ele
se transporta de um lugar para outro. Anuncia no Leme, na Tijuca, em Niterói,
um jornal que a gente pensa ainda estar no prelo; dir-se-ia que tem asas.
Fuma, bebe aguardente, praqueja, solta
pilhérias torpes, pisca os olhos maliciosamente à passagema das mulheres, canta
trovas obcenas com a música de “cabocla de Caxangá”.
Torna-se importuno às vezes, quando, a
correr pelas plataformas dos bondes, fazendo reviravoltas de símio para escapar
à sanha de algum condutor rabugento, nos atordoa os ouvidos com estupendos
gritos estridentes.
Nada lhe empana a limpidez de espírito,
nada. Está tão habituado a anunciar todos os dias “um grande atentado, um
pavoroso incêndio, a prisão do célebre bandido Fulano”, que afinal acaba por
encarar todos esses fatos indiferentemente.
Tem gestos próprios e expressões
peculiares. Para ele um assassínio ou um suicídio é simplesmente uma
“encrenca”. Um conflito é um “roubo”. Sua interjeição predileta é uê, que,
aliás, é usada por toda gente carioca.
Parece que desconhece hierarquias e
vaidades tolas, porque não empresta título a nenhum nome. Diz: “o partido do
Pinheiro, discursos do Ruy Barbosa, o governo do Nilo Peçanha” como se todos os
cabecilhas da República fossem apenas vendedores de jornais.
Fala sobre política, conhece o valor de
nossos parlamentares, discute os principais episódios da conflagração européia,
critica os atos do poder e emprega imoderadamente esses vistosos adjetivos que
figuram nos cabeçalhos dos artigos importantes para engodar o público incauto.
Detesta a monotonia dos tempos de paz.
Gosta das revoluções, dos motins, das grossas “mixórdias” que lhe proporcionam
ocasiões de ver todas as folhas arrebatadas, sem que haja necessidade de ele
gritar como nos dias ordinários.
Não é somente o jornalista que explora
vantajosamente os crimes- ele, o garoto endiabrado, também sabe tirar partido
das mais insignificantes perturbações da ordem, revestindo todos os fatos de acessórios que lhe dão proporção extraordinária. Parece que tem o dom de por um
grande vidro de aumentar em cima dos acontecimentos.
É astucioso, impostor, velhaco.
Com uma finura de comerciante velho,
emprega artimanhas de mestre, complicados ardis, artifícios que são uma obra
prima de sutilieza, tudo para embair os transeuntes. Mente apregoando sedutoras
notícias fantásticas.
Enfim, sob certos pontos de vista, o
pequeno garoto vendedor de jornais é uma espécie de jornalista em miniatura...
Graciliano Ramos
(1892-1953)
Linhas tortas. 14 edição. Rio de
Janeiro, São Paulo: Record, 1989. p 28-30
Ociosidade
A tradição bíblica ensina-nos que a
felicidade do primeiro homem antes da queda consistia na ausência de trabalho,
isto é, na ociosidade. O gosto da ociosidade manteve-se no homem réprobo, mas a
maldição divina continua a pesar sobre ele, não só por ser obrigado a ganhar o
pão de cada dia com o suor de seu rosto, mas também porque a sua natureza moral
o impede de encontrar satisfação na inatividade. Uma voz secreta diz ao homem
que ele é culpado de se abandonar à preguiça. E, no entanto, se o homem pudesse
achar um estado em que se sentisse útil e em que tivesse o sentimento de que
cumpria um dever, embora inativo, nesse estado viria a encontrar uma das
condições da sua felicidade primitiva. Esta condição de ociosidade imposta e
não censurável é aquela em que vive toda uma classe social, a dos militares. Em
tal ociosidade está e estará o principal atrativo do serviço militar.
Tolstoi,
Leon (1828-1910)
Guerra e Paz.
Tradução de João Gaspar
Simões. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1976. p 837
Psiquiatra
Sempre me fascinaram as explorações do
mundo intrapsíquico. Foi com a intenção de fazer sondagens nesse mundo que
estudei atentamente o desconexo palavreado dos esquizofrênicos; que observei
sua mímica, seus gestos, seus atos, quer estivessem inativos quer na prática de
atividades; que me debrucei sobre as imagens por eles livremente pintadas.
(...) Um dos caminhos menos difíceis que encontrei para o acesso ao mundo
interno do esquizofrênico foi dar-lhe a oportunidade de desenhar, pintar ou
modelar com toda a liberdade. Nas imagens assim configuradas teremos
auto-retratos da situação psíquica, imagens muitas vezes fragmentadas,
extravagantes, mas que ficam aprisionadas no papel, tela ou barro. Poderemos
sempre voltar a estudá-las. Foi observando-os e às imagens que configuravam,
que aprendi a respeitá-los como pessoas, e desaprendi muito do que havia
aprendido na psiquiatria tradicional. Minha escola foram esses ateliês.
Nise
da Silveira (1905-1999)
Nise
da Silveira (1905-1999)
O mundo das imagens. São Paulo: Editora
Ática, 1992.
O trabalho mais difícil
Os oleiros regressavam já de noite,
esgotados, extenuados e passavam todo o verão atirando à cara dos demais que
eram eles que faziam o trabalho mais difícil. Segundo parece, era essa a sua
consolação.
Dostoiévski, Fiódor M.(1821-1881)
Memórias
da Casa dos Mortos
Fiodor Dostoiévski, Obras Completas, vol II.
Rio
de Janeiro: Companhia Aguilar Editora, 1963.
Trabalho bem feito
Observei com freqüência em alguns
companheiros meus (às vezes até em mim mesmo) um fenômeno curioso: a ambição do
“trabalho bem feito” está tão enraizada que impele a “fazer bem” mesmo
trabalhos adversos, nocivos aos seus e à sua parte, tanto que é preciso um
esforço consciente para executá-los “mal”. A sabotagem do trabalho nazista,
além de ser perigosa, comportava inclusive a superação de resitências internas
atávicas. O pedreiro de Fossano que me salvou a vida, e que descrevi em É isto um homem? e em “Lilith”,
detestava a Alemanha, os alemães, sua comida, sua maneira de falar, sua guerra:
mas, quando o puseram para erguer muros de proteção contra as bombas, fazia-os
corretamente, sólidos, com tijolos bem assentados e com toda a argamassa que
era necessária; não em reverência às ordens, mas por dignidade profissional.
[...] Em Um dia na vida de Ivan Denissovitch, Soljenitsin descrve uma
situação quase idêntica: Ivan, o protagonista, condenado sem nenhuma culpa a
dez anos de trabalho forçado, se compraz em erguer uma parede com perfeição,
constatando depois que foi bem sucedido [...] quem assistiu a um célebre filme,
A ponte do rio Kwai, recordará o zelo
absurdo com que o oficila ingles prisioneiro dos japoneses se obstina em
construir para eles uma audaciosíssima ponte de madeira, e se escandaliza quanndo
se dá conta de que os sapadores ingleses a minaram. Como se vê, o amor pelo
trabalho bem feito é uma virtude fortemente ambígua. Animou a Michelangelo até
seus últimos dias; mas também Stangl, o diligentíssimo carniceiro de Treblinka,
replica com irritação à sua entrevistadora: “tudo aquilo que fazia por minha
livre vontade tinha de fazer da melhor forma que podia. Fui criado assim.” Da
mesma virtude se orgulhava Rudolf Höss, o comandante de Auschwitz, quando narra
o trabalho criativo que o induziu a inventar as câmaras de gás.
Levi, Primo (1919-1987)
Os afogados e os sobreviventes. Tradução
de Luiz Sérgio Henriques. 3edição. Rio de Janeiro/São Paul: Paz&Terra, 2016.
p 99-100
A tarefa taylorista
Talvez a mais importante lei, pertencente a
este tipo de relação com a administração científica, é o efeito que a ideia da
tarefa exerce sobre a eficiência do trabalhador. Isto, de fato, tornou-se
elemento tão importante no funcionamento da administração científica que este
sistema vem sendo conhecido como “administração das tarefas”.
Não há, absolutamenente nada de novo na
idéia da tarefa. Cada um de nós há de lembrar-se que pessoalmente esta idéia
nos foi aplicada com bom êxito nos tempos do colégio. Nenhum professor
eficiente pensa em dar à classe uma lição indefinida. Todos os dias uma tarefa
limitada é entregue pelo professor ao aluno, na qual aquele determina o que
deve ser estudado em cada matéria e somente por este meio é que se pode obter
progresso conveniente e sistemático por parte dos discípulos. O estudante médio
iria muito devagar, se em vez de lhe ser dada uma tarefa, deixassem-no fazer o
que pudesse ou o que quisesse. Todos nós somos crianças grandes e é iqualmente
certo que o operário médio trabalha com maior satisfação para si e para seu
patrão quando lhe é dada, todos os dias, tarefa definida para ser realizada em
tempo determinado e que representa um dia de serviço para um bom trabalhador.
Isto proporciona ao operário uma medida precisa, pela qual pode, no curso do
dia, apreciar seu próprio progresso, e este conhecimento traz-lhe grande
satisfação.
Taylor, Frederick Winslow (1856-1915)
Princípios da Administração
Científica. Tradução de Arlindo Vieira Ramos. São Paulo: Atlas, 1982, p 110
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