sexta-feira, 15 de junho de 2018

Pajear loucos

Dias, desde esse tempo, e parece que já mesmo antes, nunca largou esse ofício de pajear malucos. Não é dos mais agradáveis e é preciso, além de paciência e resignação para aturá-los, uma abdicação de tudo aquilo que faz o encanto da vida de todo homem. É ele, por assim dizer, obrigado a viver no manicômio, só podendo ir ter com a família, ou o que com isso se parece, a longos intervalos, demorando-se pouco no lar. Ouvir durante o dia e a noite toda a sorte de disparates, receber as reclamações mais desarrazoadas e infantis, adivinhar as manhas, os seus trucs e dissimulações- tudo isto e mais o que se pode facilmente advinhar, transforma a vida desses guardas, enfermeiros, num verdadeiro sacerdócio.
Estive mais de uma vez no hospício, passei por diversas seções e eu posso dizer que me admirei que homens rústicos, os portugueses, mal saídos da gleba do Minho, os brasileiros, da mais humilde extração urbana, pudessem ter tanta resignação, tanta delicadeza relativa, para suportar os loucos e as suas manias. Nem todos são insuportáveis; na maioria, são obedientes e dóceis; mas os poucos rebeldes e aqueles que se enfurecem, de quando em quando, são por vezes de fazer um homem perder a cabeça. Tratarei deles mais minuciosamente. Pois o meu Dias, apesar dos gritos, dos gestos de mando, é um homem talhado para pastorear doidos...




Lima Barreto, Afonso Henriques (1881-1922)


Diário do hospício. São Paulo: Cosacnaify, 2011. p 54-5

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