-Muito bom dia,
senhora,
que nessa janela
está;
sabe dizer se é
possível
algum trabalho
encontrar?
-Trabalho aqui
nunca falta
a quem sabe
trabalhar;
o que fazia o
compadre
na sua terra de lá?
-Pois fui sempre
lavrador,
lavrador de terra
má;
não há espécie de
terra
que eu não possa
cultivar.
-Isso de nada
adianta,
pouco existe o que
lavrar;
mas diga-me
retirante,
que mais fazia por
lá?
-Também lá na minha
terra
de terra mesmo pouco
há;
mas até a calva da
pedra
sinto-me capaz de
arar.
-Também de pouco
adianta,
nem pedra há aqui que
amassar;
diga-me ainda
compadre,
que mais fazia por
lá?
-Conheço todas as
roças
que nesta chã podem
dar:
o algodão, a
mamona,
a pita, o milho, o
caroá.
-Esses roçados o
banco
já não quer
financiar;
mas diga-me,
retirante,
o que mais fazia
por lá?
-Melhor do que eu
ninguém
sabe combater,
quiçá,
tanta planta de
rapina
que tenho visto por
cá.
-Essas plantas de
rapina
são tudo o que a
terra dá;
diga-me ainda, compadre,
que mais fazia por
lá?
-Tirei mandioca de
chãs
que o vento vive a
esfolar
e de outras escalavradas
pela seca faca
solar.
-Isso aqui não é
Vitória
nem é Glória do
Goitá;
e além da terra, me
diga,
que mais sabe
trabalhar?
-Sei também tratar
de gado,
entre urtigas
pastorear:
gado de comer do
chão
ou de comer ramas
no ar.
-Aqui não é Surubim
nem Limoeiro,
oxalá!
Mas diga-me,
retirante,
Que mais fazia por
lá?
-Em qualquer das
cinco tachas
de um banguê sei
cozinhar;
sei cuidar de uma
moenda
de uma
casa de purgar.
-Com a vinda das
usinas
há poucos engenhos
já;
nada mais o
retirante
aprendeu a fazer lá?
-Ali ninguém
aprendeu
outro ofício, ou
aprenderá:
mas o sol, de sol a
sol,
bem se aprende a
suportar.
-Mas isso então
será tudo
em que sabe
trabalhar?
vamos, diga,
retirante,
outras coisas
saberá.
-Deseja mesmo saber
o que eu fazia por
lá?
comer quando havia
o quê
e, havendo ou não,
trabalhar.
-Essa vida por aqui
é coisa familiar;
mas diga-me
retirante,
sabe benditos
rezar?
sabe cantar
excelências,
defuntos
encomendar?
sabe tirar
ladainhas,
sabe mortos
enterrar?
-Já velei muitos
defuntos
na serra é coisa
vulgar;
mas nunca aprendi
as rezas,
sei somente
acompanhar.
-Pois se o compadre
soubesse
rezar ou mesmo
cantar,
trabalhávamos a
meias,
que a freguesia bem
dá.
-Agora se me
permite
minha vez de
perguntar:
como a senhora,
comadre,
pode manter o seu
lar?
-Vou explicar
rapidamente,
logo compreenderá:
como aqui a morte é
tanta,
vivo de a morte
ajudar.
-E ainda se me
permite
que lhe volte a
perguntar:
é aqui uma
profissão
trabalho tão
singular?
-É, sim, uma
profissão
e a melhor de
quantas há:
sou de toda a região
rezadora titular.
-E ainda se me
permite
mais outra vez
indagar;
é boa essa
profissão
em que a comadre
ora está?
-De um raio de
muitas léguas
vem gente aqui me
chamar;
a verdade é que não
pude
queixar-me ainda de
azar.
-E se pela última
vez
me permite perguntar:
não existe outro
trabalho
para mim neste
lugar?
-Como aqui a morte
é tanta,
só é possível
trabalhar
nessas profissões
que fazem
da morte ofício ou
bazar.
Imagine que outra
gente
de profissão
similar,
farmacêuticos,
coveiros,
doutor de anel no
anular,
remando contra a
corrente
da gente que baixa
ao mar,
retirantes às
avessas,
sobem do mar para
cá.
Só os roçados da
morte
compensam aqui
cultivar,
e cultivá-los é
fácil:
simples questão de
plantar;
não se precisa de
limpa,
de adubar nem de
regar;
as estiagens e as
pragas
fazem-nos mais
prosperar;
e dão lucro
imediato;
nem é preciso
esperar
pela colheita:
recebe-se
na hora mesma de
semear.
Melo Neto, João Cabral (1920 -1999)
Obra completa. Rio de Janeiro:
Aguilar, 1995. p 179-182
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