quarta-feira, 27 de junho de 2018

Carta a el-rei D. João IV (1654)


Tudo quanto há na capitania do Pará, tirando as terras, não vale dez mil cruzados, como é notório, e desta terra há de tirar N. do N (capitão mor) mais de cem mil cruzados em três anos, segundo se lhe vão logrando bem as indústrias.
Tudo isto sai do sangue e do suor dos tristes Índios, aos quais trata como tão escravos seus, que nenhum tem liberdade nem para deixar de servir a ele nem para poder servir a outrem; o que, além da injustiça que se faz aos Índios, é ocasião de padecerem muitas necessidades os Portugueses e de perecerem os pobres. Em uma capitania destas confessei uma pobre mulher das que vieram das ilhas, a qual me disse com muitas lágrimas que de nove filhos que tivera lhe morreram em três meses cinco filhos de pura fome e desamparo; e, consolando-a eu pela morte de tantos filhos, respondeu-me: meu padre, não são esses os por que eu choro, senão pelos quatro que tenho vivos sem ter com que os sustentar, e peço a Deus todos os dias que m’os leve também.
São lastimosas as misérias que passa essa pobre gente das ilhas, porque, como não tem com que agradecer, se algum Índio se reparte, não lhe chega a eles, senão aos poderosos; e este é um desamparo a que V.M. por piedade devera mandar acudir com efeito: mas também a isto se acode nos capítulos de um papel que com esta vai.
Tornando aos Índios do Pará, dos quais, como dizia, se serve quem ali governa como se foram seus escravos e os traz quase todos ocupados em seus interesses, principalmente no dos tabacos, obriga-me a consciência a manifestar a V.M. os grandes pecados que por ocasião deste serviço se cometem.
Primeiramente nenhum destes Índios vai senão violentado e por força, e o trabalho é excessivo, e em que todos os anos morrem muitos, por ser venenosíssimo o vapor do tabaco: o rigor com que são tratados é mais que de escravos; os nomes que lhes chamam e que eles muito sentem feiíssimos; o comer é quase nenhum; a paga tão limitada que não satisfaz a menor parte do tempo nem do trabalho; e como os tabacos se lavram sempre em terras fortes e novas e muito distantes das aldeias, estão os Índios ausentes de suas mulheres, e ordinariamente eles e elas em mau estado, e os filhos sem quem os sustente, porque não têm os pais tempo para fazer suas roças, com que as aldeias estão sempre em grandíssima fome e miséria.

Vieira, Antonio (1608-1697)



Vieira brasileiro. Antologia brasileira organizada por Afrânio Peixoto e Constâncio Alves
Paris- Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, 1921, pg 272-273

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