Que fazem as tripulações de dois baleeiros
que se encontram no mar? Realizam, se o tempo o permite, um “Gam”, coisa tão absolutamente
desconhecida para os marinheiros de qualquer outro navio que não seja o
baleeiro, que nenhum deles ouviu jamais pronunciar uma tal palavra, e se por
acaso a ouviu, ela não lhe inspirará mais do que desprezo e as costumadas
brincadeiras estúpidas acerca de “cuspidas de baleias”, “fervedores de
espermacete”, e outras expressões igualmente agradáveis. Seria difícil
encontrar a causa do desdém com que os marinheiros dos navios mercantes, à
semelhança dos piratas, dos da marinha de guerra e dos navios negreiros,
consideram os pescadores de baleias, visto que no caso dos piratas, por
exemplo, gostaria eu de saber qual é a glória de tal profissão. É certo que com
freqüência conduz a grande altura: a da forca. E o homem que atingiu a
semelhante elevação estranha, não tem base própria para apoiar uma eminente
superioridade sobre o baleeiro.
Mas que é o Gam? Em vão gastaríeis vós o dedo índice, percorrendo de cima
abaixo as colunas dos dicionários: jamais encontraríeis esta palavra. O Dr
Johnson jamais alcançou tamanha erudição, nem também a arca de Noé de Webster a
inclui. E contudo essa palavra, tão rica de sentido, vem sendo usada há muitos
anos, por quinze mil ianques genuinos. Certamente, precisa ser definida e
incorporada aos léxicos. Com esse fim, permitam-me que a defina aqui:
GAM:
substantivo- Reunião social entre os homens de dois ou mais navios baleeiros,
geralmente sobre uma zona de pesca, consistindo numa troca prévia de
cumprimentos, visitas recíprocas da parte das tripulações de cada navio, e
durante as quais, enquanto os comandantes permanecem a bordo de um deles, os
dois primeiros-pilotos devem encontrar-se no outro.
Há ainda, relacionado com o Gam, um outro detalhe que não podemos
deixar de mencionar aqui. Como toda a profissão, a pesca da baleia tem também
as suas peculiaridades. Quando o capitão de um navio pirata, de guerra ou
negreiro, vai a qualquer parte no seu bote, coloca-se sempre no camarote de
popa, num assento confortável, provido muitas vezes de cômodas almofadas e
freqüentemente ele próprio toma a linda e elegante barra do timão, ornada de
cordões e fitas alegres. O baleeiro, pelo contrário, não tem assento algum na
popa, nem sofá de qualquer espécie, nem sequer timão. Bem estariam os capitães
de baleeiros, se fossem andar de um lado para outro em sofás elegantes, como
velhos magistrados gotosos. Quanto ao timão, um baleeiro jamais admite
semelhante objeto efeminado. Por conseguinte, quando a tripulação de um
baleeiro se vê obrigada a deixar o navio durante um Gam, achando-se portanto o timoneiro ou arpoador incluído no grupo,
a ele cabe dirigir o bote em tal oportunidade, ao passo que o capitão, que não
dispõe de assento algum onde acomodar-se, é conduzido de pé, e direito como um
fuso. E consciente de que as tripulações de ambos os barcos, isto é, de todo o
mundo visível, têm os olhos fixos sobre ele, não é de estranhar que não poucas
vezes o capitão ponha o maior cuidado em conservar a dignidade que naquele
momento representa para ele o fato de conservar-se firme sobre os pés, o que na
verdade não é muito fácil, pois ao passo que o enorme remo do timoneiro bate de
modo intermitente na sua espádua, o remo que o segue lhe responde, dando-lhe
nos joelhos. Assim atezanado, só lhe é possível mover-se para os lados,
firmando-se sobre as pernas estiradas. Muitas vezes, por um triz que não é
derrubado por alguma sacudidela súbita do bote, pois de nada vale o comprimento
de base sem a largura correspondente. Colocai dois paus em ângulo obtuso e
vereis como não podem manter-se fixos. Por outro lado, bem pouco edificante
seria o espetáculo oferecido por um capitão que escarranchado se agarrasse a
cada movimento do bote, ao objeto mais próximo de sua mão, quando todos os
olhares estivessem fixos na sua pessoa. Pelo contrário, para provar o seu fácil
e completo domínio da situação, leva em geral as mãos metidas nos bolsos das
calças, ainda que geralmente por serem mãos grandes e pesadas, ele as deixe
pregadas para servirem de lastro. Não obstante, têm-se visto casos (alguns
deles bem confirmados) em que em momentos de perigo iminente- algum furacão,
digamos- um comandante se tem agarrado aos cabelos do remador mais próximo,
conservando-se seguro a eles, com toda a sua alma e vida.
Melville, Herman
(1819-1891)
Moby Dick. Tradução de Berenice
Xavier. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1957. p 399-401.
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