domingo, 17 de junho de 2018

O Gam


Que fazem as tripulações de dois baleeiros que se encontram no mar? Realizam, se o tempo o permite, um “Gam”, coisa tão absolutamente desconhecida para os marinheiros de qualquer outro navio que não seja o baleeiro, que nenhum deles ouviu jamais pronunciar uma tal palavra, e se por acaso a ouviu, ela não lhe inspirará mais do que desprezo e as costumadas brincadeiras estúpidas acerca de “cuspidas de baleias”, “fervedores de espermacete”, e outras expressões igualmente agradáveis. Seria difícil encontrar a causa do desdém com que os marinheiros dos navios mercantes, à semelhança dos piratas, dos da marinha de guerra e dos navios negreiros, consideram os pescadores de baleias, visto que no caso dos piratas, por exemplo, gostaria eu de saber qual é a glória de tal profissão. É certo que com freqüência conduz a grande altura: a da forca. E o homem que atingiu a semelhante elevação estranha, não tem base própria para apoiar uma eminente superioridade sobre o baleeiro.
Mas que é o Gam? Em vão gastaríeis vós o dedo índice, percorrendo de cima abaixo as colunas dos dicionários: jamais encontraríeis esta palavra. O Dr Johnson jamais alcançou tamanha erudição, nem também a arca de Noé de Webster a inclui. E contudo essa palavra, tão rica de sentido, vem sendo usada há muitos anos, por quinze mil ianques genuinos. Certamente, precisa ser definida e incorporada aos léxicos. Com esse fim, permitam-me que a defina aqui:
GAM: substantivo- Reunião social entre os homens de dois ou mais navios baleeiros, geralmente sobre uma zona de pesca, consistindo numa troca prévia de cumprimentos, visitas recíprocas da parte das tripulações de cada navio, e durante as quais, enquanto os comandantes permanecem a bordo de um deles, os dois primeiros-pilotos devem encontrar-se no outro.
Há ainda, relacionado com o Gam, um outro detalhe que não podemos deixar de mencionar aqui. Como toda a profissão, a pesca da baleia tem também as suas peculiaridades. Quando o capitão de um navio pirata, de guerra ou negreiro, vai a qualquer parte no seu bote, coloca-se sempre no camarote de popa, num assento confortável, provido muitas vezes de cômodas almofadas e freqüentemente ele próprio toma a linda e elegante barra do timão, ornada de cordões e fitas alegres. O baleeiro, pelo contrário, não tem assento algum na popa, nem sofá de qualquer espécie, nem sequer timão. Bem estariam os capitães de baleeiros, se fossem andar de um lado para outro em sofás elegantes, como velhos magistrados gotosos. Quanto ao timão, um baleeiro jamais admite semelhante objeto efeminado. Por conseguinte, quando a tripulação de um baleeiro se vê obrigada a deixar o navio durante um Gam, achando-se portanto o timoneiro ou arpoador incluído no grupo, a ele cabe dirigir o bote em tal oportunidade, ao passo que o capitão, que não dispõe de assento algum onde acomodar-se, é conduzido de pé, e direito como um fuso. E consciente de que as tripulações de ambos os barcos, isto é, de todo o mundo visível, têm os olhos fixos sobre ele, não é de estranhar que não poucas vezes o capitão ponha o maior cuidado em conservar a dignidade que naquele momento representa para ele o fato de conservar-se firme sobre os pés, o que na verdade não é muito fácil, pois ao passo que o enorme remo do timoneiro bate de modo intermitente na sua espádua, o remo que o segue lhe responde, dando-lhe nos joelhos. Assim atezanado, só lhe é possível mover-se para os lados, firmando-se sobre as pernas estiradas. Muitas vezes, por um triz que não é derrubado por alguma sacudidela súbita do bote, pois de nada vale o comprimento de base sem a largura correspondente. Colocai dois paus em ângulo obtuso e vereis como não podem manter-se fixos. Por outro lado, bem pouco edificante seria o espetáculo oferecido por um capitão que escarranchado se agarrasse a cada movimento do bote, ao objeto mais próximo de sua mão, quando todos os olhares estivessem fixos na sua pessoa. Pelo contrário, para provar o seu fácil e completo domínio da situação, leva em geral as mãos metidas nos bolsos das calças, ainda que geralmente por serem mãos grandes e pesadas, ele as deixe pregadas para servirem de lastro. Não obstante, têm-se visto casos (alguns deles bem confirmados) em que em momentos de perigo iminente- algum furacão, digamos- um comandante se tem agarrado aos cabelos do remador mais próximo, conservando-se seguro a eles, com toda a sua alma e vida.

 Melville, Herman (1819-1891)


Moby Dick. Tradução de Berenice Xavier. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1957. p 399-401.


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