Era verdade o que me explicava de que
pegavam qualquer pessoa na Ford. Não tinha mentido não. Mesmo assim eu estava
meio de pé atrás, porque os miseráveis, isso aí é gente que delira a três por
dois. Tem um momento na indigência que o espírito não está mais o tempo todo
com o corpo. Ele se sente de fato incômodo demais alí dentro. Já é quase uma
alma que fala com você. Não é responsável, uma alma.
Nus em pêlo nos puseram para começar, é
óbvio. O exame médico, isso aí se passava numa espécie de laboratório. A gente
ia desfilando devagarinho. “Você é um bocado franzino, hein”, foi o que
constatou o enfermeiro me olhando, “mas não faz mal, não.”
E eu que tinha medo que me recusassem o
emprego por causa das febres da África, que poderiam perceber direitinho se por
acaso me apalpassem o fígado! Mas pelo contrário, tinham jeito de quem estava
muito feliz em encontrar uns acabadinhos e uns doentinhos na nossa leva.
- Para o que você vai fazer aqui, não tem a
menor importância o jeito como que você está!- me garantiu o médico examinador,
na mesma hora.
- Antes isso- lá fui eu respondendo-, mas o
senhor sabe que tenho instrução e que fiz até antigamente uns estudos de
medicina?...
Na mesma hora ele me olhou com olho torto.
Senti que acabava de dar um fora, mais um, e contra mim.
- Isso não vai lhe servir para nada aqui,
os seus estudos, meu rapaz! Você não veio aqui para pensar, mas para fazer os
gestos que vão mandá-lo fazer...Não precisamos de imaginativos na nossa
fábrica. É de chimpanzés que a gente precisa...Mais um conselho. Não nos fale
nunca mais da sua inteligência! Pensarão por você, meu amigo! E estamos
conversados.
Ele tinha razão de me prevenir. Quanto aos
hábitos da casa, era preferível que eu soubesse onde é que estava pisando. De
besteiras eu já tinha o suficiente no meu ativo, para dez anos pelo menos.
Agora queria ser visto como alguém bem-comportadinho. Quando nos vestimos,
fomos divididos em filas que iam se arrastando em grupos hesitantes como
reforço para os lugares de onde nos chegavam os gigantescos barulhos da
mecânica. Tudo tremia no imenso edifício e nós mesmos dos pés à cabeça
possuídos pelo tremor, ele vinha dos vidros e do soalho e dos ferros, uns
abalos, vibrando de alto a baixo. Nós mesmos também nos transformávamos em
máquina inevitavelmente e com toda a nossa carne ainda estremecendo no meio
dessa enorme zoeira furiosa que agarrava você por dentro e em volta da cabeça e
mais embaixo, agitando as suas tripas e subia para os olhos com pequenos
tremeliques bruscos, infinitos, incansáveis. À medida que andávamos íamos
perdendo-os, os companheiros. Dávamos-lhes um sorrisinho, a eles, ao deixá-los
como se tudo o que estivesse acontecendo fosse muito agradável. Não podíamos
mais nos falar nem nos ouvir. Ficavam a cada vez uns três ou quatro em volta de
uma máquina.
Ainda assim a gente resiste, é difícil
sentir repugnância pela própria substância, bem que gostaríamos de parar tudo
isso para refletirmos e ouvirmos dentro de nós o coração bater facilmente, mas
já não é possível. Aquilo ali não pode mais parar. Ela está desabalada aquela
infinita caixa de aço e nós giramos dentro dela e com as máquinas e com a
terra. Todos juntos! E as mil rodinhas e os pilões que não caem nunca ao mesmo
tempo com estrondos que se esmagam uns contra os outros e alguns tão violentos
que desencadeiam em torno de si como que espécies de silêncios que fazem um
pouco bem a você.
O pequeno vagão ziguezagueante guarnecido
de quinquilharias se atrapalha para passar entre as ferramentas. Arredem! Pulem
para trás para que ele possa dar nova partida, o pequeno histérico. E pumba! lá
vai ele se rebolar mais longe esse biruta espalhafatoso entre as correias e os
volantes, levar aos homens suas rações de obrigações.
Os operários debruçados, preocupados em
agradar ao máximo as máquinas, é de dar nojo, a lhes entregar as cavilhas no
calibre e mais outras cavilhas, em vez de acabar com isso de uma vez, aquele
cheiro de óleo, aquele vapor que queima os tímpanos e o interior dos ouvidos,
pela garganta. Não é de vergonha que estão de cabeça baixa. A gente cede ao
barulho como cede à guerra. A gente se deixa levar pelas máquinas com as três
idéias que restam vacilando bem no cocuruto da cabeça atrás da fronte. Acabou.
Por todo lado, o que se vê, tudo o que a mão toca agora está duro. E tudo de
que ainda conseguimos nos lembrar um pouco também está duro como o ferro e não
tem mais gosto no pensamento.
Envelhecemos horrivelmente, de uma só vez.
É preciso abolir a vida do lado de fora,
transformá-la também em aço, em algo de útil. A gente não gostava muito dela
tal como era, é por isso. Portanto, temos que transformá-la num objeto, algo sólido
, e a Regra.
Tentei falar com ele, o contramestre, no
ouvido, ele grunhiu como um porco em resposta e só por gestos me mostrou, muito
paciente, a simplíssima manobra que eu doravante devia fazer para sempre. Meus
minutos, minhas horas, meu resto de tempo como os daqui se iriam a passar as
pequenas cavilhas ao cego ao meu lado que, ele, as calibrava, fazia anos, as
cavilhas, as mesmas. Já desde o início comecei a fazer isso muito mal. Não me
repreenderam, nem um pouco, só que depois de três dias desse trabalho inicial
fui transferido, já tendo dado errado, para o circuito do carrinho repleto de
arruelas, aquele que ia cabotando de uma máquina para outra. Ali eu deixava
três, aqui doze, acolá só cinco. Ninguém falava comigo. A gente só existia
ainda por uma espécie de hesitação entre o estupor e o delírio. Nada importava
a não ser a continuidade estrepitosa dos milhares e milhares de instrumentos
que comandavam os homens.
Quando às seis horas tudo pára a gente leva
o barulho dentro da cabeça, eu ainda os tinha armazenados para uma noite
inteira, o barulho e o cheiro de óleo também, como se me tivessem posto um
nariz novo, um cérebro novo, para sempre.
Céline, Louis-Ferdinand (1894-1961)
Viagem ao fim da noite. Tradução de
Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p 232-234.
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