quarta-feira, 13 de junho de 2018

Operário na Ford


Era verdade o que me explicava de que pegavam qualquer pessoa na Ford. Não tinha mentido não. Mesmo assim eu estava meio de pé atrás, porque os miseráveis, isso aí é gente que delira a três por dois. Tem um momento na indigência que o espírito não está mais o tempo todo com o corpo. Ele se sente de fato incômodo demais alí dentro. Já é quase uma alma que fala com você. Não é responsável, uma alma.
Nus em pêlo nos puseram para começar, é óbvio. O exame médico, isso aí se passava numa espécie de laboratório. A gente ia desfilando devagarinho. “Você é um bocado franzino, hein”, foi o que constatou o enfermeiro me olhando, “mas não faz mal, não.”
E eu que tinha medo que me recusassem o emprego por causa das febres da África, que poderiam perceber direitinho se por acaso me apalpassem o fígado! Mas pelo contrário, tinham jeito de quem estava muito feliz em encontrar uns acabadinhos e uns doentinhos na nossa leva.
- Para o que você vai fazer aqui, não tem a menor importância o jeito como que você está!- me garantiu o médico examinador, na mesma hora.
- Antes isso- lá fui eu respondendo-, mas o senhor sabe que tenho instrução e que fiz até antigamente uns estudos de medicina?...
Na mesma hora ele me olhou com olho torto. Senti que acabava de dar um fora, mais um, e contra mim.
- Isso não vai lhe servir para nada aqui, os seus estudos, meu rapaz! Você não veio aqui para pensar, mas para fazer os gestos que vão mandá-lo fazer...Não precisamos de imaginativos na nossa fábrica. É de chimpanzés que a gente precisa...Mais um conselho. Não nos fale nunca mais da sua inteligência! Pensarão por você, meu amigo! E estamos conversados.
Ele tinha razão de me prevenir. Quanto aos hábitos da casa, era preferível que eu soubesse onde é que estava pisando. De besteiras eu já tinha o suficiente no meu ativo, para dez anos pelo menos. Agora queria ser visto como alguém bem-comportadinho. Quando nos vestimos, fomos divididos em filas que iam se arrastando em grupos hesitantes como reforço para os lugares de onde nos chegavam os gigantescos barulhos da mecânica. Tudo tremia no imenso edifício e nós mesmos dos pés à cabeça possuídos pelo tremor, ele vinha dos vidros e do soalho e dos ferros, uns abalos, vibrando de alto a baixo. Nós mesmos também nos transformávamos em máquina inevitavelmente e com toda a nossa carne ainda estremecendo no meio dessa enorme zoeira furiosa que agarrava você por dentro e em volta da cabeça e mais embaixo, agitando as suas tripas e subia para os olhos com pequenos tremeliques bruscos, infinitos, incansáveis. À medida que andávamos íamos perdendo-os, os companheiros. Dávamos-lhes um sorrisinho, a eles, ao deixá-los como se tudo o que estivesse acontecendo fosse muito agradável. Não podíamos mais nos falar nem nos ouvir. Ficavam a cada vez uns três ou quatro em volta de uma máquina.
Ainda assim a gente resiste, é difícil sentir repugnância pela própria substância, bem que gostaríamos de parar tudo isso para refletirmos e ouvirmos dentro de nós o coração bater facilmente, mas já não é possível. Aquilo ali não pode mais parar. Ela está desabalada aquela infinita caixa de aço e nós giramos dentro dela e com as máquinas e com a terra. Todos juntos! E as mil rodinhas e os pilões que não caem nunca ao mesmo tempo com estrondos que se esmagam uns contra os outros e alguns tão violentos que desencadeiam em torno de si como que espécies de silêncios que fazem um pouco bem a você.
O pequeno vagão ziguezagueante guarnecido de quinquilharias se atrapalha para passar entre as ferramentas. Arredem! Pulem para trás para que ele possa dar nova partida, o pequeno histérico. E pumba! lá vai ele se rebolar mais longe esse biruta espalhafatoso entre as correias e os volantes, levar aos homens suas rações de obrigações.
Os operários debruçados, preocupados em agradar ao máximo as máquinas, é de dar nojo, a lhes entregar as cavilhas no calibre e mais outras cavilhas, em vez de acabar com isso de uma vez, aquele cheiro de óleo, aquele vapor que queima os tímpanos e o interior dos ouvidos, pela garganta. Não é de vergonha que estão de cabeça baixa. A gente cede ao barulho como cede à guerra. A gente se deixa levar pelas máquinas com as três idéias que restam vacilando bem no cocuruto da cabeça atrás da fronte. Acabou. Por todo lado, o que se vê, tudo o que a mão toca agora está duro. E tudo de que ainda conseguimos nos lembrar um pouco também está duro como o ferro e não tem mais gosto no pensamento.
Envelhecemos horrivelmente, de uma só vez.
É preciso abolir a vida do lado de fora, transformá-la também em aço, em algo de útil. A gente não gostava muito dela tal como era, é por isso. Portanto, temos que transformá-la num objeto, algo sólido , e a Regra.
Tentei falar com ele, o contramestre, no ouvido, ele grunhiu como um porco em resposta e só por gestos me mostrou, muito paciente, a simplíssima manobra que eu doravante devia fazer para sempre. Meus minutos, minhas horas, meu resto de tempo como os daqui se iriam a passar as pequenas cavilhas ao cego ao meu lado que, ele, as calibrava, fazia anos, as cavilhas, as mesmas. Já desde o início comecei a fazer isso muito mal. Não me repreenderam, nem um pouco, só que depois de três dias desse trabalho inicial fui transferido, já tendo dado errado, para o circuito do carrinho repleto de arruelas, aquele que ia cabotando de uma máquina para outra. Ali eu deixava três, aqui doze, acolá só cinco. Ninguém falava comigo. A gente só existia ainda por uma espécie de hesitação entre o estupor e o delírio. Nada importava a não ser a continuidade estrepitosa dos milhares e milhares de instrumentos que comandavam os homens.
Quando às seis horas tudo pára a gente leva o barulho dentro da cabeça, eu ainda os tinha armazenados para uma noite inteira, o barulho e o cheiro de óleo também, como se me tivessem posto um nariz novo, um cérebro novo, para sempre.

Céline, Louis-Ferdinand (1894-1961)


Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p 232-234.


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