segunda-feira, 11 de junho de 2018

Os funcionários


Ora, a natureza, para o funcionário, é a repartição; seu horizonte é limitado de todos os lados por cartapácios verdes; para ele as circunstâncias atmosféricas são o ar dos corredores, as exalações masculinas contidas em peças sem ventiladores, o cheiro dos papéis e das penas, seu terreiro é um chão ladrilhado ou um assoalho matizado de fragmentos singulares, umedecidos pelo regador do servente do escritório; seu céu é um teto ao qual ele dirige seus bocejos, e seu elemento é a poeira.
A observação sobre os aldeãos adapta-se às mil maravilhas aos funcionários identificados com a natureza no meio da qual vivem. Se muitos médicos distintos temem a influência dessa natureza, ao mesmo tempo selvagem e civilizada, sobre o ser moral encerrado nesses horríveis compartimentos denominados repartições, onde o sol pouco penetra, onde o pensamento é limitado por ocupações semelhantes às dos cavalos que giram num picadeiro, que bocejam horrivelmente e morrem prematuramente, Rabourdin tinha profundamente razão ao querer reduzir o número de funcionários, pedindo para eles bons ordenados e imensos trabalhos. A gente nunca se aborrece de fazer grandes coisas. Ora, tal como são construídas as repartições, durante as nove horas que os funcionários devem ao Estado eles perdem quatro em palestras, como se vai ver, em narrativas, em discussões e, sobretudo, em intrigas. Por isso, é preciso ter frequentado as repartições para reconhecer a que ponto a vida acanhada aí se assemelha à dos colégios; mas em toda a parte onde os homens vivem coletivamente, essa semelhança é impressionante: no regimento, nos tribunais, encontra-se o colégio mais ou menos aumentado. Todos esses funcionários, reunidos durante suas sessões de oito horas nas repartições, viam ali uma espécie de aula onde havia deveres a fazer, onde os chefes substituíam os monitores de estudo, onde as gratificações eram como que prêmios de boa conduta dados aos protegidos, onde troçavam uns dos outros, onde se odiavam e onde, entretanto, existia uma espécies de camaradagem, já mais fria, porém, do que a do regimento, a qual por sua vez é menos forte do que a do colégio. À medida que o homem se adiante na vida, o egoísmo se desenvolve e afrouxa os lados secundários em matéria de afeição. Enfim, não são as repartições o mundo em ponto pequeno, com suas singularidades, suas amizades, seus ódios, sua inveja e sua cupidez, seu movimento de marcha apesar de tudo, seus discursos frívolos que abrem tantas feridas, e sua espionagem incessante?

            Balzac, Honoré de (1799-1850)



A comédia humana. Estudos de costumes. Cenas da vida parisiense. Vol XI.T radução de Vidal de Oliveira [et alli]. São Paulo: Globo, 1991, p 190


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