Parece-nos hoje natural ver na leitura uma
técnica incorpórea: a escrita seria (ainda) manual (associada, portanto a uma
idéia de artesanato), e a leitura seria mental, “abstrata”: uma seria mais
ativa e outra mais passiva; codificar (criar) teria mais valor que descodificar
(consumir). É todavia necessário ter presente que durante séculos a leitura foi
uma atividade forte na qual o corpo estava, por estatuto, empenhado: por um
lado a leitura - ainda que solitária- fazia-se em voz alta (e ver-se á o que
estava aí em jogo) ou, pelo menos articulando o que os lábios captavam: lia-se
com os lábios, a escrita voltava a passar pelo corpo e através da parte
especialmente sensível do corpo que é o aparelho oral (que serve para falar,
para comer, para beijar); por outro lado, a leitura era “teatral”: ler era
dizer o texto com todos os gestos do ator: a actio (a arte de dizer e/o de ler os discursos) constituía uma
parte integrante da retórica (ainda há pouco tempo um autor como Gide, mal
acabava o manuscrito, lia-o em voz alta no seu círculo de amigos, que elogiavam
a sua arte de leitura como a de um bom ator). A leitura faz-se hoje em dia com
os olhos e não com os lábios, solitariamente, sem qualquer teatro e parece que
já não se associa a nenhuma gestualidade (a não ser uma, muito discreta: a dos
próprios olhos, de que algumas experiências tentam analisar os movimentos e os
trajetos: lemos por saltos do olhar). Ler, no entanto, faz sempre parte de uma
determinada situação do corpo: lemos sentados, deitados, de pé (era antigamente
a postura correta: o clérigo lia em frente de uma estante; hoje em dia lemos no
metrô e a maior parte das vezes em locais fechados); estas situações corporais
da leitura, embora mal recenseadas (a não ser pelos romancistas, como Proust)
são as nossas formas, de homens modernos, homens de leitura interiorizada, de
significar ao nosso próprio corpo o que é a leitura: uma ocupação de tempos
livres, um prazer, um trabalho, um passatempo, etc.
Barthes,
Roland (1915-1980) e Compagnon, Antoine (1950...)
Leitura. Oral/escrito argumentação.
Enciclopédia Einaudi, vol. 11.Tradução de Teresa Coelho. Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1987. p 185
Barthes: que óculos eles são pra gente!
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