sábado, 16 de junho de 2018

Ler é uma forma de gestualidade


Parece-nos hoje natural ver na leitura uma técnica incorpórea: a escrita seria (ainda) manual (associada, portanto a uma idéia de artesanato), e a leitura seria mental, “abstrata”: uma seria mais ativa e outra mais passiva; codificar (criar) teria mais valor que descodificar (consumir). É todavia necessário ter presente que durante séculos a leitura foi uma atividade forte na qual o corpo estava, por estatuto, empenhado: por um lado a leitura - ainda que solitária- fazia-se em voz alta (e ver-se á o que estava aí em jogo) ou, pelo menos articulando o que os lábios captavam: lia-se com os lábios, a escrita voltava a passar pelo corpo e através da parte especialmente sensível do corpo que é o aparelho oral (que serve para falar, para comer, para beijar); por outro lado, a leitura era “teatral”: ler era dizer o texto com todos os gestos do ator: a actio (a arte de dizer e/o de ler os discursos) constituía uma parte integrante da retórica (ainda há pouco tempo um autor como Gide, mal acabava o manuscrito, lia-o em voz alta no seu círculo de amigos, que elogiavam a sua arte de leitura como a de um bom ator). A leitura faz-se hoje em dia com os olhos e não com os lábios, solitariamente, sem qualquer teatro e parece que já não se associa a nenhuma gestualidade (a não ser uma, muito discreta: a dos próprios olhos, de que algumas experiências tentam analisar os movimentos e os trajetos: lemos por saltos do olhar). Ler, no entanto, faz sempre parte de uma determinada situação do corpo: lemos sentados, deitados, de pé (era antigamente a postura correta: o clérigo lia em frente de uma estante; hoje em dia lemos no metrô e a maior parte das vezes em locais fechados); estas situações corporais da leitura, embora mal recenseadas (a não ser pelos romancistas, como Proust) são as nossas formas, de homens modernos, homens de leitura interiorizada, de significar ao nosso próprio corpo o que é a leitura: uma ocupação de tempos livres, um prazer, um trabalho, um passatempo, etc.

Barthes, Roland (1915-1980) e Compagnon, Antoine (1950...)


Leitura. Oral/escrito argumentação. Enciclopédia Einaudi, vol. 11.Tradução de Teresa Coelho. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987. p 185

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