domingo, 17 de junho de 2018

Numa agência dos correios


Uma agência dos correios de uma aldeia austríaca pouco se diferencia das outras: quem viu uma conhece-as todas....Em toda a parte a divisão do espaço é a mesma: numa proporção rigorosamente prescrita, uma parede verical de madeira com vidraças intercaladas divide a sala: na parte de cá e na parte de lá uma acessível ao público, a outra para os funcionários...O único móvel da sala pública é uma trêmula escrivaninha, das altas, timidamente encostada na parede, coberta por um encerado roto, escurecido por inúmeros pingos de tinta, embora ninguem possa se lembrar de jamais ter encontrado dentro do tinteiro outra coisa a não ser uma pasta grossa e bolorenta, imprópria para escrever...Mas a repartiçaão do outro lado da barreira de serviço infunde mais respeito. Aqui o Estado desdobra simbolicamente estreitamente amontoados, os sinais inconfundíveis de seu poder e largueza. No canto protegido há um cofre de ferro, e as grades nas janelas fazem supor que ele, ocasionalmente, de fato guarda valores consideráveis. Sobre a mesa comprida brilha a jóia da repartição, um aparelho morse de latão bem lustrado, e ao lado, mais modesto, dorme sobre berço de níquel preto o telefone. Só esses dois objetos mereceram um espaço de lazer e de respeito pois, ligados a fios de cobre, eles unem a minúscula e afastada aldeia com as longitudes do império. Os outros utensílios da comunicação postal têm que se apertar uns contra os outros, a balança para os pacotes e as malas para as cartas, livros, pastas, cadernos, registros e as redondas e tilintantes caixas de selos, balanças e pesos, lápis pretos, azuis, vermelhos, lápis tinta violeta, presilhas e grampos, barbante, lacre, esponja d’água e bercó de mata-borrão, goma, faca, tesoura e abridor, todas as múltiplas ferramentas manuais do serviço postal se aglomeram sobre os dois palmos da estreita superfície da escrivaninha, numa perigosa e desordenada confusão, e nas muitas gavetas e caixas se empilham, numa opulência incompreensível, papéis e formulários sempre diferentes. Mas o aparente desperdício dessa variada coleção é apenas ilusório pois o Estado implacavelmente conta cada peça de seus baratos utensílios. Desde o toco de lápis até a estampilha rasgada, desde a esfrangalhada folha de mata-borrão até o resto de sabonete na bacia de lata, desde a lâmpada elétrica que ilumina a repartição até a chave de ferro que a fecha o erário exige implacavelmente que seus funcionários prestem contas de toda peça da instalação que foi utilizada ou gasta. Ao lado da estufa de ferro pende da parede um minucioso inventário datilografado, com o carimbo oficial e confirmado por uma assinatura ilegível, do qual consta, com precisão matemática, até mesmo o mais diminuto e insignificante objeto de uso da respectiva agência dos correios. [...] A rigor deveria constar também dessa relação de objetos datilografada alguém que diariamente às 8 da manhã levanta a vidraça e põe em movimento esses utensílios até então inanimados, que abre as malas postais, carimba as cartas, paga as ordens de pagamento, escreve os recibos, pesa os pacotes, faz correr sobre o papel os lápis azuis e vermelhos e o lápis tinta, deixando estranhos sinais secretos, que liberta o telefone de seu fone e que põe a trabalhar a bobina do aparelho morse. Mas por alguma deferência especial, esse alguém que o público em geral chama de assistente postal ou chefe do correio não está registrado na lista de papelão; seu nome está registrado em outra folha oficial, e esta fica em uma gaveta, em outra repartição da direção dos correios, mas igualmente mantido em evidência, revista e controlada. [...]Na sala da repartição de K.R. , uma insignificante aldeia não longe de Krems, umas duas horas de trem de Viena, aquela peça substituível da decoração que se chama “funcionário” pertence ao sexo feminino e sua designação oficial, já que esse posto pertence a uma classe de baixa remuneração, é de assistente postal...Milhares e milhares de vezes essa mão feminina de dedos pálidos levantará e baixará a mesma barulhenta vidraça. Centenas de milhares ou talvez milhões de cartas ela ainda jogará sobre a mesinha do carimbo com o mesmo movimento em ângulo reto, e com o mesmo breve estalo aplicará o úmido carimbo de latão sobre os selos. É provável que as juntas treinadas passarão mesmo a funcionar cada vez mais mecanicamente, mais inconscientes, mais desligadas do corpo desperto. As centenas de milhares de cartas incessantemente serão outras cartas, mas sempre cartas. As estampilhas outras estampilhas, mas sempre estampilhas. Os dias outros, mas sempre um dia das 8 horas às 12, das 14 às 18, e em todos os anos de crescimento e emurchecimento o serviço sempre o mesmo, o mesmo, o mesmo.

Stefan Zweig (1881-1942)




Êxtase da transformação. Tradução de Kurt Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.p 7-11

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