Uma agência dos correios de uma aldeia
austríaca pouco se diferencia das outras: quem viu uma conhece-as todas....Em
toda a parte a divisão do espaço é a mesma: numa proporção rigorosamente
prescrita, uma parede verical de madeira com vidraças intercaladas divide a
sala: na parte de cá e na parte de lá uma acessível ao público, a outra para os
funcionários...O único móvel da sala pública é uma trêmula escrivaninha, das
altas, timidamente encostada na parede, coberta por um encerado roto,
escurecido por inúmeros pingos de tinta, embora ninguem possa se lembrar de
jamais ter encontrado dentro do tinteiro outra coisa a não ser uma pasta grossa
e bolorenta, imprópria para escrever...Mas a repartiçaão do outro lado da
barreira de serviço infunde mais respeito. Aqui o Estado desdobra
simbolicamente estreitamente amontoados, os sinais inconfundíveis de seu poder
e largueza. No canto protegido há um cofre de ferro, e as grades nas janelas
fazem supor que ele, ocasionalmente, de fato guarda valores consideráveis.
Sobre a mesa comprida brilha a jóia da repartição, um aparelho morse de latão
bem lustrado, e ao lado, mais modesto, dorme sobre berço de níquel preto o
telefone. Só esses dois objetos mereceram um espaço de lazer e de respeito
pois, ligados a fios de cobre, eles unem a minúscula e afastada aldeia com as
longitudes do império. Os outros utensílios da comunicação postal têm que se
apertar uns contra os outros, a balança para os pacotes e as malas para as
cartas, livros, pastas, cadernos, registros e as redondas e tilintantes caixas
de selos, balanças e pesos, lápis pretos, azuis, vermelhos, lápis tinta
violeta, presilhas e grampos, barbante, lacre, esponja d’água e bercó de
mata-borrão, goma, faca, tesoura e abridor, todas as múltiplas ferramentas
manuais do serviço postal se aglomeram sobre os dois palmos da estreita
superfície da escrivaninha, numa perigosa e desordenada confusão, e nas muitas
gavetas e caixas se empilham, numa opulência incompreensível, papéis e
formulários sempre diferentes. Mas o aparente desperdício dessa variada coleção
é apenas ilusório pois o Estado implacavelmente conta cada peça de seus baratos
utensílios. Desde o toco de lápis até a estampilha rasgada, desde a
esfrangalhada folha de mata-borrão até o resto de sabonete na bacia de lata,
desde a lâmpada elétrica que ilumina a repartição até a chave de ferro que a
fecha o erário exige implacavelmente que seus funcionários prestem contas de
toda peça da instalação que foi utilizada ou gasta. Ao lado da estufa de ferro
pende da parede um minucioso inventário datilografado, com o carimbo oficial e
confirmado por uma assinatura ilegível, do qual consta, com precisão
matemática, até mesmo o mais diminuto e insignificante objeto de uso da
respectiva agência dos correios. [...] A rigor deveria constar também dessa
relação de objetos datilografada alguém que diariamente às 8 da manhã levanta a
vidraça e põe em movimento esses utensílios até então inanimados, que abre as
malas postais, carimba as cartas, paga as ordens de pagamento, escreve os
recibos, pesa os pacotes, faz correr sobre o papel os lápis azuis e vermelhos e
o lápis tinta, deixando estranhos sinais secretos, que liberta o telefone de
seu fone e que põe a trabalhar a bobina do aparelho morse. Mas por alguma
deferência especial, esse alguém que o público em geral chama de assistente
postal ou chefe do correio não está registrado na lista de papelão; seu nome
está registrado em outra folha oficial, e esta fica em uma gaveta, em outra
repartição da direção dos correios, mas igualmente mantido em evidência,
revista e controlada. [...]Na sala da repartição de K.R. , uma insignificante
aldeia não longe de Krems, umas duas horas de trem de Viena, aquela peça
substituível da decoração que se chama “funcionário” pertence ao sexo feminino
e sua designação oficial, já que esse posto pertence a uma classe de baixa
remuneração, é de assistente postal...Milhares e milhares de vezes essa mão
feminina de dedos pálidos levantará e baixará a mesma barulhenta vidraça.
Centenas de milhares ou talvez milhões de cartas ela ainda jogará sobre a
mesinha do carimbo com o mesmo movimento em ângulo reto, e com o mesmo breve
estalo aplicará o úmido carimbo de latão sobre os selos. É provável que as
juntas treinadas passarão mesmo a funcionar cada vez mais mecanicamente, mais
inconscientes, mais desligadas do corpo desperto. As centenas de milhares de
cartas incessantemente serão outras cartas, mas sempre cartas. As estampilhas
outras estampilhas, mas sempre estampilhas. Os dias outros, mas sempre um dia das
8 horas às 12, das 14 às 18, e em todos os anos de crescimento e emurchecimento
o serviço sempre o mesmo, o mesmo, o mesmo.
Stefan Zweig (1881-1942)
Êxtase da transformação. Tradução de
Kurt Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.p 7-11
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