sexta-feira, 29 de junho de 2018

Trabalhador e poesia


Doce é projetar, rude é cumprir. Por isso não se publicou ainda a antologia brasileira de poesia social, que o autor destas linhas levou dois anos a compor, caceteando feio e forte amigos daqui e de São Paulo. Lidas algumas centenas de volumes, sobraram uns tantos poemas, que pareceram bons ou passáveis, e foram organizados segundo o plano da obra. Restava juntar-lhes notas explicativas. Não juntei. Os originais formam um bolo bastante incômodo, na gaveta, e cada vez que olho para esse bolo, me pergunto: Valerá a pena?
[...] Ao coligir o material da obra, notei a relativa escassez de poemas inspirados nas técnicas de trabalho e na personalidade dos trabalhadores. Boa parte de nossa poesia social fica em declaração de princípios, isto é, não chega a produzir-se.
[...] Quando se dispões a cantar a vida ou o tipo de ocupação dos trabalhadores, nossos poetas demonstram preferir a generalidade, ou, quando muito, aqueles tipos que encerram um símbolo evidente. De ordinário cantam simplesmente o trabalho, ou o trabalhador em geral, uma espécie abstrata de trabalhador.



Drummond de Andrade, Carlos (1902-1987)


 Poesia e prosa em um volume. Rio de janeiro: Edição Aguilar, 1979. p 999-1000.


Trabalhar


Trabalhar é se juntar com as coisas, se separar das pessoas.


Guimarães Rosa, João (1908-1967)


Manuelzão e Miguilim. 23 impressão. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira.p 187.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Em “a humanização do macaco pelo trabalho”


O trabalho é a fonte de toda riqueza, afirmam os economistas. E o é, de fato, ao lado da Natureza, que lhe fornece a matéria por ele transformada em riqueza. Mas é infinitamente mais do que isso. É a condição fundamental de toda vida humana; e o é num grau tão elevado que, num certo sentido, pode-se dizer: o trabalho, por si mesmo, criou o homem.



Engels, Friedrich (1820-1895)



Dialética da natureza. Rio de Janeiro: Editora Leitura, sem data. p 215.


quarta-feira, 27 de junho de 2018

Perguntas de um trabalhador que lê

Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída
Quem a reconstruiu várias vezes? Em que casas
Da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China
ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio
Tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária
            Atlântida
Os que se afogavam gritaram por seus escravos
Na noite em que o mar a tragou.

O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada
Naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?

Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?

Tantas histórias.
Tantas questões.




Brecht, Bertolt (1898-1956)


Poemas 1913-1956. Seleção e tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34, 2000. p 166.

A sala dos funcionários


 A sala dos funcionários é uma peça grande, mais ou menos clara, raramente de parquê. Este e a chaminé são especialmente reservados para os chefes de seção e de divisão, bem como os armários, as escrivaninhas e as mesas de acaju, as poltronas de marroquim encarnado ou verde, os divãs, as cortinas de seda e outros objetos de luxo administrativo. A sala dos funcionários tem uma estufa, cujo cano dá para uma chaminé tapada, quando há chaminé. O papel do forro é liso, verde ou pardo. As mesas são de madeira preta. O temperamento dos funcionários manifesta-se pelo modo de se acomodarem. O friorento põe embaixo dos pés uma espécie de caixa de madeira. O homem de temperamento bilioso sangüíneo tem somente um capacho; o línfático, que teme os ventos encanados, a abertura das portas e outras causas de mudança de temperatura, arruma um biombo com papelão. Há um armário onde cada um põe a roupa de trabalho, as mangas postiças de pano, viseiras, barretes, solidéus gregos e outros utensílios da profissão. A chaminé quase sempre está atravancada de garrafas cheias de água, de copos e de cestos de almoço. Há lâmpadas em certos locais escuros. A porta do gabinete onde está o subchefe fica aberta, de modo que ele pode vigiar os funcionários, impedi-los de conversar muito ou vir falar-lhes nas grandes circunstâncias.


Balzac, Honoré de (1799-1850)



A comédia humana. Estudos de costumes. Cenas da vida parisiense. Vol XI. Tradução de Vidal de Oliveira [et alli]. São Paulo: Globo, 1991, p 158-9

No cafezal

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Georgina Albuquerque (1885-1962)

Morte e vida severina



-Muito bom dia, senhora,
que nessa janela está;
sabe dizer se é possível
algum trabalho encontrar?
-Trabalho aqui nunca falta
a quem sabe trabalhar;
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?
-Pois fui sempre lavrador,
lavrador de terra má;
não há espécie de terra
que eu não possa cultivar.
-Isso de nada adianta,
pouco existe o que lavrar;
mas diga-me retirante,
que mais fazia por lá?
-Também lá na minha terra
de terra mesmo pouco há;
mas até a calva da pedra
sinto-me capaz de arar.
-Também de pouco adianta,
nem pedra há aqui que amassar;
diga-me ainda compadre,
que mais fazia por lá?
-Conheço todas as roças
que nesta chã podem dar:
o algodão, a mamona,
a pita, o milho, o caroá.
-Esses roçados o banco
já não quer financiar;
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia por lá?
-Melhor do que eu ninguém
sabe combater, quiçá,
tanta planta de rapina
que tenho visto por cá.
-Essas plantas de rapina
são tudo o que a terra dá;
diga-me ainda, compadre,
que mais fazia por lá?
-Tirei mandioca de chãs
que o vento vive a esfolar
e de outras escalavradas
pela seca faca solar.
-Isso aqui não é Vitória
nem é Glória do Goitá;
e além da terra, me diga,
que mais sabe trabalhar?
-Sei também tratar de gado,
entre urtigas pastorear:
gado de comer do chão
ou de comer ramas no ar.
-Aqui não é Surubim
nem Limoeiro, oxalá!
Mas diga-me, retirante,
Que mais fazia por lá?
-Em qualquer das cinco tachas
de um banguê sei cozinhar;
sei cuidar de uma moenda
de uma casa de purgar.
-Com a vinda das usinas
há poucos engenhos já;
nada mais o retirante
aprendeu a fazer lá?
-Ali ninguém aprendeu
outro ofício, ou aprenderá:
mas o sol, de sol a sol,
bem se aprende a suportar.
-Mas isso então será tudo
em que sabe trabalhar?
vamos, diga, retirante,
outras coisas saberá.
-Deseja mesmo saber
o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.
-Essa vida por aqui
é coisa familiar;
mas diga-me retirante,
sabe benditos rezar?
sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
sabe tirar ladainhas,
sabe mortos enterrar?
-Já velei muitos defuntos
na serra é coisa vulgar;
mas nunca aprendi as rezas,
sei somente acompanhar.
-Pois se o compadre soubesse
rezar ou mesmo cantar,
trabalhávamos a meias,
que a freguesia bem dá.
-Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como a senhora, comadre,
pode manter o seu lar?
-Vou explicar rapidamente,
logo compreenderá:
como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar.
-E ainda se me permite
que lhe volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?
-É, sim, uma profissão
e a melhor de quantas há:
sou de toda a região
rezadora titular.
-E ainda se me permite
mais outra vez indagar;
é boa essa profissão
em que a comadre ora está?
-De um raio de muitas léguas
vem gente aqui me chamar;
a verdade é que não pude
queixar-me ainda de azar.
-E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim neste lugar?
-Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.



Melo Neto, João Cabral (1920 -1999)


Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1995. p 179-182




Há poetas que são artistas


E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!




Alberto Caeiro/Fernando Pessoa (1888-1935)


O guardador de rebanhos. 
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/pe000001.pdf


Conversa entre Graciliano Ramos e Joel Silveira


_Quem escreve deve ter muito cuidado para não escrever molhado. Uma página escrita não deve ficar pingando, como pano lavado estirado no varal. Deve-se escrever como as lavadeiras lá de Alagoas, particularmente as de Palmeira dos Índios, fazem com a roupa que estão lavando. Sabe como elas fazem?
_Não.
_Pois lhe conto. Elas começam dando uma primeira lavada. Molham o pano na beira do rio ou do riacho, torcem, molham novamente, torcem. Então botam o anil, ensaboam, torcem novamente, enxáguam, mais uma molhada, outra enxaguada. Em seguida põem-se a bater o pano na laje ou pedra limpa. E tome torcedura: torcem, até não pingar do pano uma só gota. E somente aí é que penduram a roupa na corda. Pois quem escreve devia fazer a mesma coisa. Enxaguar e enxaguar. Palavra não foi feita para enfeitar, como bandeirinha de festa de São João. Palavra foi feita para dizer.



 Graciliano Ramos  (1892-1953)



Relatórios. Organização de Mário Hélio Gomes de Lima. Rio de Janeiro: Record; Recife (PE): Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1994. p 17.

Carta a el-rei D. João IV (1654)


Tudo quanto há na capitania do Pará, tirando as terras, não vale dez mil cruzados, como é notório, e desta terra há de tirar N. do N (capitão mor) mais de cem mil cruzados em três anos, segundo se lhe vão logrando bem as indústrias.
Tudo isto sai do sangue e do suor dos tristes Índios, aos quais trata como tão escravos seus, que nenhum tem liberdade nem para deixar de servir a ele nem para poder servir a outrem; o que, além da injustiça que se faz aos Índios, é ocasião de padecerem muitas necessidades os Portugueses e de perecerem os pobres. Em uma capitania destas confessei uma pobre mulher das que vieram das ilhas, a qual me disse com muitas lágrimas que de nove filhos que tivera lhe morreram em três meses cinco filhos de pura fome e desamparo; e, consolando-a eu pela morte de tantos filhos, respondeu-me: meu padre, não são esses os por que eu choro, senão pelos quatro que tenho vivos sem ter com que os sustentar, e peço a Deus todos os dias que m’os leve também.
São lastimosas as misérias que passa essa pobre gente das ilhas, porque, como não tem com que agradecer, se algum Índio se reparte, não lhe chega a eles, senão aos poderosos; e este é um desamparo a que V.M. por piedade devera mandar acudir com efeito: mas também a isto se acode nos capítulos de um papel que com esta vai.
Tornando aos Índios do Pará, dos quais, como dizia, se serve quem ali governa como se foram seus escravos e os traz quase todos ocupados em seus interesses, principalmente no dos tabacos, obriga-me a consciência a manifestar a V.M. os grandes pecados que por ocasião deste serviço se cometem.
Primeiramente nenhum destes Índios vai senão violentado e por força, e o trabalho é excessivo, e em que todos os anos morrem muitos, por ser venenosíssimo o vapor do tabaco: o rigor com que são tratados é mais que de escravos; os nomes que lhes chamam e que eles muito sentem feiíssimos; o comer é quase nenhum; a paga tão limitada que não satisfaz a menor parte do tempo nem do trabalho; e como os tabacos se lavram sempre em terras fortes e novas e muito distantes das aldeias, estão os Índios ausentes de suas mulheres, e ordinariamente eles e elas em mau estado, e os filhos sem quem os sustente, porque não têm os pais tempo para fazer suas roças, com que as aldeias estão sempre em grandíssima fome e miséria.

Vieira, Antonio (1608-1697)



Vieira brasileiro. Antologia brasileira organizada por Afrânio Peixoto e Constâncio Alves
Paris- Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, 1921, pg 272-273

Linguagem operatória

Se eu for um lenhador e se nomear a árvore que abato, qualquer que seja a forma de minha frase, falarei a árvore e não sobre ela. Isto quer dizer que a minha linguagem é operatória, ligada ao seu objeto de um modo transitivo: entre a árvore e mim, não há nada além de meu trabalho, isto é, um ato; eis uma linguagem política; apresenta-me a natureza somente na medida em que vou transformá-la, é uma linguagem através da qual ajo o objeto: a árvore não constitui para mim uma imagem, mas, simplesmente, o sentido do meu ato.
[...] Existe, portanto, uma linguagem que não é mítica, é a linguagem do homem produtor: sempre que o homem fala para transformar o real, e não mais para conservá-lo em imagem, sempre que ele associa sua linguagem à produção das coisas, a metalinguagem é reenviada a uma linguagem objeto e o mito torna-se impossível....


Barthes, Roland (1915-1980)



Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. Rio de Janeiro, São Paulo: Difel, 1978. p. 166


segunda-feira, 25 de junho de 2018

Jogadores de futebol


Isso é o melhor que [o futebol] tem; sua obstinada capacidade de surpresa. Por mais que os tecnocratas o programem até o mínimo detalhe, por muito que os poderosos o manipulem o futebol continua querendo ser a arte do imprevisto. Onde menos se espera salta o impossível, o anão dá uma lição ao gigante e o negro mirrado e cambeiro faz de bobo o atleta esculpido na Grécia.

Galeano, Eduardo (1940-2015)



Futebol ao sol e à sombra. Tradução de Eric Nepomuceno. L&PM Pocket, 2004. p.243










sexta-feira, 22 de junho de 2018

O operário em construção


Era ele que erguia casa
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão-
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve em um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
-Exercer a profissão-
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia,

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
-“Convençam-no” do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.
Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que foi levado
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
-Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca da sua mão.
E o operário disse: Não!

-Loucura!-gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
-Mentira! Disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu em seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.



Vinicius de Moraes (1913-1980)

50 poemas de revolta. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p 62-71.

Epitáfio para um banqueiro


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  ego
      ócio
         cio
            0


Paes, José Paulo (1926-1998)


50 poemas de revolta. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p 49.