terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Sobre a psicologia


A nossa ciência se encontra em um estado ainda bem distante da fórmula conclusiva do teorema geométrico que coroa o último argumento: ‘como queríamos demonstrar- c.q.d.’ Para nós, agora, ainda é importante indicar o que exatamente se quer demonstrar e depois preparar-se para a demonstração. Primeiro formular o problema e depois resolvê-lo.


Lev Semionovitch Vigotski (1896-1934)




Lev. S. Vygotsky, Antologia di scritti a cura de Luciano Meccaci. Bologna: Il Mulino, 1983. p 89 (tradução minha)


sexta-feira, 29 de novembro de 2019

O princípio do iceberg


Entrevistador: Como se apresenta em sua mente a concepção de um conto? O tema, o enredo, algum personagem muda conforme vais escrevendo?
Hemingway: Às vezes sei a história. Às vezes vou compondo conforme escrevo e nem tenho ideia de como vai ficar. Tudo muda conforme o desenrolar. É isso que faz o movimento, que faz a história. Às vezes o movimento é tão lento que parece que não há movimento algum. Mas sempre há mudança e sempre há movimento.
[...] Faço uma relação de títulos depois que termino o conto ou o livro, à vezes chega a uns cem. Então, começo a eliminar alguns, às vezes todos.
[...] Se o escritor deixa de observar, está acabado. Mas ele não tem que observar conscientemente, nem pensar como isso vai ser útil. Talvez seja assim no início. Mas depois, tudo que ele vê passa a fazer parte da grande reserva de coisas que ele conhece ou já viu. Se é que isso pode ter algum interesse, sempre escrevo segundo o principio do iceberg. Só se vê um oitavo, os outros sete estão debaixo d’água. Tudo o que você sabe e pode eliminar só fortalece o iceberg. Agora, se o escritor omite alguma coisa porque não sabe o que é, então fica um buraco na história.




Hemingway, Ernest (1899-1961)



Os escritores 1: as históricas entrevistas da Paris Review. Tradução de Alberto Alexandre Martins e Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.


sexta-feira, 15 de novembro de 2019

O mel de Deus

 A group of beekeepers tending to their hives in the off-season while the bees are getting ready to start pollinating flowers. The group is led by Professor Russel Armin Balan, who has been certified by a course in producing organic honey. Tínun, Mexico, 2018.
Nadia Shira Cohen  (1977-)

Colheita

předchozí najedujici por Wladyslaw Slewinski (1856-1918, Polônia) |  Reproduções de arte em museus Wladyslaw Slewinski |  WahooArt.com
Wladyslaw Slewinski ( 1856-1918)

Leonardo da Vinci trabalhando


Matteo Bandello, autor do romance de Romeu e Julieta em que Shakespeare baseou sua peça, testemunhou com freqüência Leonardo empenhado na pintura da Última Ceia, no refeitório do mosteiro em que o tio do escritor era prior. Aqui está um relato fascinante do que ele viu: “Ele aparecia no convento muitas vezes ao amanhecer; e isso eu testemunhei pessoalmente. Subindo depressa pelo andaime, trabalhava diligentemente até que as sombras do final da tarde o obrigavam a parar, jamais se lembrando de comer, de tão absorvido no trabalho. Em outras ocasiões, ele passava três ou quatro dias sem mexer na pintura, aparecendo apenas por poucas horas para ficar parado na sua frente, de braços cruzados, contemplando as figuras como se as criticasse. Às vezes, ao meio-dia, quando o calor do sol em seu zênite esvaziava todas as ruas de Milão, eu o via sair apressado da cidade, onde estava modelando o seu cavalo colossal [o monumento equestre Sforfa], sem procurar qualquer sombra, seguindo pelo caminho mais curto até o convento, onde acrescentava um toque ou dois e voltava no instante seguinte”.


            Wasserman, Jack (1921-)


            Leonardo da Vinci. São Paulo: Record, 1984. p.92

Inaptidão

Acho que foi a minha inaptidão para o diálogo que gerou o poeta. Sujeito complicado, se vou falar, uma coisa me bloqueia, me inibe, e eu corto a conversa no meio, como quem é pego defecando e o faz pela metade. Do que eu poderia dizer, resta sempre um déficit de oitenta por cento. E os vinte por cento que eu consigo falar não correspondem senão ao que eu não gostaria de ter dito, o que me deixa um saldo mortal de angústia. Mesmo desde guri, no colégio, descobri essa barreira em mim, que não posso vencer. Sou um bom escutador e um vedor melhor. Mas só trancado e sozinho é que consigo me expressar. Assim mesmo, sem linearidade, por trancos, por sugestões, ambíguo,  como requer a poesia.


Manoel de Barros (1916-2014)



           Gramática expositiva do chão (poesia quase toda).
            2 Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.

Ditar


Ditar não é apenas mais cômodo, mais favorável à concentração, mas tem além disso uma vantagem objetiva. O ditado torna possível ao escritor, nas fases iniciais do processo de produção, colocar-se na posição do crítico. O que ele aí estabelece não é obrigatório, é provisório, simples material a ser elaborado; entretanto uma vez transcrito isto lhe aparecerá como algo dele alienado e, em certa medida, objetivo. Ele não precisa ter medo de fixar alguma coisa que não permaneça, pois não é ele quem tem que escrevê-lo: por responsabilidade ele prega uma peça nesta última. O risco de formular toma primeiro a forma inofensiva de um ligeiro memorando que lhe é apresentado, depois, de um trabalho efetuado sobre algo já existente, de tal modo que já não percebe mais sua própria audácia. Face à dificuldade de cada enunciado teórico- que pode chegar a proporções desesperadoras- esses estratagemas tornam-se uma bênção. Eles são meios técnicos auxiliares do procedimento dialético, que faz asserções para depois retirá-las e, no entanto, mantê-las. Mas quem anota o ditado merece agradecimentos, se por contradição, ironia, nervosismo, impaciência ou falta de respeito, tira o escritor do seu sossego no momento certo. Ele atrai sobre si a raiva, e essa cólera é derivada da má consciência armazenada, com que o autor desconfia de seu próprio produto e que o incita a agarrar-se com unhas e dentes, com obstinação cada vez maior, ao texto que presume sagrado. O afeto que é dirigido com ingratidão ao incômodo ajudante tem um efeito purificador sobre a relação com a coisa tratada.

                        Adorno, Theodor (1903-1969)


                        Mínima Moralia. Tradução de Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática, 1992.p 186.

Sobre Anna Akmatova


Ela (Anna Akmatova) me contou que nunca usava lápis e papel ao elaborar os seus poemas. Trabalhava em cada verso durante muito tempo; mas só os anotava depois de o poema ter chegado a sua forma final, às vezes até uma ou duas semanas depois de já o ter recitado em público para seus amigos. Dizia que o processo de escrever, de segurar uma caneta na mão, lhe parecia cansativo e, por isso, não gostava de escrever cartas. Sua letra era laboriosa e desajeitada, como acontece com as pessoas que não estão acostumadas a escrever. Lembro-me de que, uma vez, lhe pedi que pusesse dedicatórias em dois livros que me tinha dado. A primeira ela já fez bem curtinha; mas quando chegou na segunda, já cansada, limitou-se a assinar seu nome. Era muito típico de sua maneira de ser, essa peculiaridade de memorizar o poema por longo tempo, antes de confiá-lo ao papel. Com que atenção ela deve ter ouvido a música interior das palavras, com que modo incorruptivelmente terno deve tê-las carregado consigo, através de sua longa vida, até a morte.



Wladimir Weidlé (1895-1979)
                        
Ana Akhmatova, poesia 1912-1964. Introdução de Wladimir Weidlé. Seleção, tradução e notas de Lauro Machado Coelho, L&PM, 1991.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O artesão de bonequinhos de argila

Hao Mão Grande era genioso, mas também sabia ser admirável. Tinha umas mãos enormes e habilidosas. Segurava um pedaço de argila enquanto mantinha os olhos fixos em você, daí a pouco, mexendo aqui e ali, moldava nela seu retrato fiel. Nem durante a Revolução Cultural ele parou de fazer seus bonequinhos. O avô já fazia isso. O pai também. Na geração dele, a técnica se aprimorou. Ele vivia de produzir e vender bonequinhos de argila, era seu ganha-pão. Mas não era só isso, ele até que poderia produzir cachorros, macacos, tigres e outros brinquedos de técnica simples e muita demanda, dessas coisas com que a criançada gosta de brincar. Os artesãos de argila produzem acima de tudo para as crianças, já que os adultos só vão desembolsar dinheiro para comprar algo que agrade a elas. Só que Hao Mâo Grande só fazia figuras humanas. A casa dele tinha cinco cômodos no eixo central e quatro nas laterais, e ainda um barracão improvisado no pátio. A casa e o barracão estavam cheios de bonecos, alguns prontos, de rosto colorido e olhos pintados, outros ainda inacabados, esperando a pintura. No seu kang, exceto o espaço onde ele se deitava, tudo o mais estava coberto de fileiras e mais fileiras de bonequinhos. Ele já passava de quarenta anos, tinha o rosto corado, cabelos grisalhos, uma trança na nuca. A barba também era grisalha. Nas aldeias vizinhas, também faziam bonecos de argila, mas usavam moldes, as peças eram todas idênticas. As dele eram moldadas à mão, cada uma de um jeito, não havia duas iguais. Dizem que todas as crianças da nossa aldeia lhe serviram de modelo. Dizem que cada pessoa da aldeia acha em algum daqueles boneco o rosto de sua infância. Dizem que ele não vai à feira vender seu trabalho enquanto ainda tiver o que comer em casa. Vende com lágrimas nos olhos, como se fosse o próprio filho. [...] Hao não deixava escolher. Os artesãos das aldeias vizinhas expunham uma grande quantidade no chão e deixavam os clientes escolherem à vontade. Os bonecos de Hao Mão Grande ficavam dentro do cesto, cobertos por um pano grosso, quando alguém ia comprar, ele examinava o cliente detidamente, depois enfiava a mão no cesto, tateava e tirava um boneco. O que ele tirasse era o que o cliente levaria. Tinha gente que reclamava que era feio. Mas ele não trocava de jeito nenhum e punha um sorriso amargurado no canto da boca. Ficava em silêncio, mas era como se você o ouvisse dizer: ”Por acaso algum pai reclama que seu filho é feio?” Assim, o cliente examinava com mais atenção o bonequinho que acabava de receber e, aos poucos, se afeiçoava a ele. Aquele boneco ia ganhando vida, como se tivesse alma. Ele nunca dizia o preço. Se não lhe dessem nada, nada iria cobrar. Se lhe dessem algum dinheiro, qualquer quantia, não diria uma única palavra de agradecimento. As pessoas aos poucos começaram a acreditar que comprar um boneco daqueles era como encomendar do artesão uma criança de verdade.



Mo Yan (1955- )


As rãs. Tradução do chinês de Amilton Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 141-143.



quarta-feira, 23 de outubro de 2019

O secretário do embaixador


O embaixador muito me aborrece, como eu previa. Ele é o tolo mais pontual que pode haver; vai de passo a passo e é complicado como uma prima solteira; uma pessoa que nunca está satisfeita consigo mesma e a quem, por isso, ninguém poderá contentar. Gosto de trabalhar superando as dificuldades facilmente, sem precisar nada mudar; mas ele é capaz de me devolver um texto e dizer: “Está bom, mas passe os olhos novamente, sempre se acha uma palavra melhor, uma partícula mais exata”. Aí tenho vontade de mandar tudo às favas. Nenhuma vírgula, nenhuma conjunçãozinha pode ficar de fora, e é inimigo mortal de todas as inversões que às vezes deixo escapar. Se os períodos não forem construídos segundo a melodia tradicional, ele não entende nada do que está escrito. É um sofrimento ter de lidar com uma pessoa assim.


Goethe, Johann Wolfgang (1749-1832)



Os sofrimentos do jovem Werther. Tradução de Claudia Cavalcanti. São Paulo: Martin Claret, 2014. p 97.


sábado, 12 de outubro de 2019

Com o avanço da divisão do trabalho


Com o avanço da divisão do trabalho, a ocupação da maior parte daqueles que vivem do trabalho, isto é, da maioria da população, acaba restringindo-se a algumas operações extremamente simples, muitas vezes a uma ou duas. Ora, a compreensão da maior parte das pessoas é formada pelas suas ocupações normais. O homem que gasta toda sua vida executando algumas operações simples, cujos efeitos também são, talvez, sempre os mesmos ou mais ou menos os mesmos, não tem nenhuma oportunidade para exercitar sua compreensão ou para exercer seu espírito inventivo no sentido de encontrar meios para eliminar dificuldades que nunca ocorrem. Ele perde naturalmente o hábito de fazer isso, tornando-se geralmente tão embotado e ignorante quanto o possa ser uma criatura humana. O entorpecimento de sua mente o torna não somente incapaz de saborear ou ter alguma participação em toda conversação racional, mas também de conceber algum sentimento generoso, nobre ou terno, e, conseqüentemente, de formar algum julgamento justo até mesmo acerca de muitas das obrigações normais da vida privada. Ele é totalmente incapaz de formar juízo sobre os grandes e vastos interesses de seus país; e, a menos que se tenha empreendido um esforço inaudito para transformá-lo, é igualmente incapaz de defender seu país na guerra. A uniformidade de sua vida estagnada naturalmente corrompe a coragem de seu espírito, fazendo-o olhar com horror a vida irregular, incerta e cheia de aventuras de um soldado. Esse tipo de vida corrompe até mesmo sua atividade corporal, tornando-o incapaz de utilizar sua força física com vigor e perseverança em alguma ocupação que não aquela para a qual foi criado. Assim, a habilidade que ele adquiriu em sua ocupação específica parece ter sido adquirida à custa de suas virtudes intelectuais, sociais e marciais. Ora, em toda sociedade evoluída e civilizada, este é o estado em que inevitavelmente caem os trabalhadores pobres — isto é, a grande massa da população — a menos que o Governo tome algumas providências para impedir que tal aconteça.


Adam Smith (1723-1790)

 A riqueza das nações. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p 213-214.


quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Ciclista de Apps

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Três empresas operam com cerca de 30 mil entregadores de bicicleta em SP /  Foto: Tiago Queiroz. 
O Estado de São  Paulo, 26/09/2019

domingo, 22 de setembro de 2019

Sono e trabalho


O que me perturba o sono me perturba também o trabalho. Assovios & conversas, mas não o barulho de máquinas, ou melhor, este muito menos.

[...]
Sob muitos pontos de vista, o sono & o trabalho intelectual se assemelham. Manifestamente em função de ambos implicarem uma ausência de atenção em relação a certas coisas.





Wittgenstein, Ludwig (1889-1951)



Movimentos de pensamento: diários de 1930-1932/1936-1937. Tradução de Edgard da Rocha Marques. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p 53-4.









sábado, 21 de setembro de 2019

Métis


A inteligência deve, portanto, por força da flexibilidade, fazer-se ela mesma movimento incessante, polimorfismo, revirada, fingimento e duplicidade.
Inteligência astuciosa de que a caça e a pesca puderam fornecer na origem o modelo, mas que transborda largamente desse quadro, como mostra, em Homero, Ulisses, encarnação humana da métis. Estratagemas do guerreiro quando ele age de surpresa, com dolo ou em emboscada, arte do piloto dirigindo o navio contra ventos e marés, artifícios verbais do sofista que retorna contra o adversário o argumento muito forte de que ele se serviu, engenhosidade do banqueiro e do comerciante que, como os prestidigitadores, faz muito dinheiro do nada, prudência avisada do político cujo faro sabe pressentir, de antemão, o curso incerto dos acontecimentos, destreza da mão, segredos de ofício que dão aos artesãos posse de uma matéria sempre mais ou menos rebelde a seu esforço industrioso: a métis preside a todas as atividades em que o homem deve aprender a manobrar forças hostis, muito poderosas para serem diretamente controladas, mas que podem ser utilizadas a despeitos delas, sem jamais as enfrentar de cara, para fazer atingir por um viés imprevisto o projeto que se meditou.


Détienne, Marcel (1935-2019)
Vernant, Jean-Pierre (1914-2007)



Métis, As astúcias da inteligência; tradução de Filomena Hirata. São Paulo: Odysseus Editora, 2008. p54.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Conselho aos médicos: quam artem exerceas?


O médico que vai atender a um paciente proletário não se deve limitar a pôr a mão no pulso, com pressa, assim que chegar, sem informar-se de suas condições; não delibere de pé sobre o que convém ou não convém fazer, como se não jogasse com a vida humana; deve sentar-se, com a dignidade de um juiz, ainda que não seja em cadeira dourada, como em caso de magnatas; sente-se mesmo num banco, examine o paciente com fisionomia alegre e observe detidamente o que ele necessita dos seus conselhos médicos e de seus cuidados piedosos. Um médico que atende a um doente deve informar-se de muita coisa a seu respeito pelo próprio e pelos seus acompanhantes, segundo o preceito de nosso Divino Preceptor, “quando visitares um doente convém perguntar-lhe o que sente, qual a causa, desde quantos dias, se seu ventre funciona e que alimento ingeriu” são palavras de Hipócrates no seu livro “Afecções”; a estas perguntas devia-se acrescentar outra: “Quam artem exerceas? (que arte exerce? qual a sua ocupação?)”. Tal pergunta considero oportuno e mesmo necessário lembrar ao médico que trata um homem do povo, que dela se vale para chegar às causas ocasionais do mal, a qual quase nunca é posta em prática, ainda que o médico a conheça. Entretanto, se a houvesse observado, poderia obter uma cura mais feliz.




Ramazzini, Bernardino (1633-1714)


As doenças dos trabalhadores. Tradução de Raimundo Estrela. São Paulo: Fundacentro, 2000. p 25.

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Amar o trabalho?


É preciso amar o trabalho, dizem nossos sábios: eh! Mas como? O que há de amável na civilização para os 9/10 dos seres a quem ele só causa desgosto, sem nenhuma vantagem? Por isso, os ricos, que dele só exercem a parte lucrativa e cômoda, a direção, geralmente lhe têm repugnância. Como fazer o pobre amá-lo se não se sabe torná-lo amado pelo rico?
A vida é um suplício perpétuo para nossos operários, obrigados a empregar doze horas consecutivas, muitas vezes quinze, num trabalho fastidioso. Os próprios ministros não estão isentos: há os que se queixam de ter passado uma jornada inteira na abominável tarefa de colocar sua assinatura em milhares de documentos contáveis.
[...]no estado atual, assegurar ao pobre direitos à soberania quando ele só pede o direito de trabalhar para o prazer dos ociosos não é insultá-lo?
Passamos séculos a discutir sobre os direitos do homem, sem sonhar em reconhecer o mais essencial, o do trabalho, sem o qual os outros nada são.

 

Fourier, Charles (1772-1837)




Théorie de l’unité universelle, 2 ed. Paris: 1838.
(tradução minha)

A bilheteira

Robert Frank (1924-2019)

sábado, 7 de setembro de 2019

A concentração do ator

Antes de começar qualquer coisa, é importante limpar o espaço de trabalho. Esvaziá-lo, desfazer-se de tudo o que é inútil e ordenar apenas algumas cadeiras necessárias ou certos acessórios, cuidadosamente, próximos às paredes do ambiente. Depois limpa-se o chão. Se os atores se derem esse tempo e se entregarem a isso no começo do dia de ensaio, o trabalho tende a ser bom. No Japão, todas as tradições teatrais, religiosas e das artes marciais seguem essa prática.
Mas essa limpeza não é feita de qualquer jeito, só para se livrar da sujeira, usando detergente ou até alguns aparelhos. Todas as disciplinas tradicionais têm um estilo particular de limpar o chão, em que se usa água fria com panos de algodão, ficando-se num estado desperto de consciência e solicitando do corpo uma posição específica. O pano deve ser umedecido em água fria (sem detergente) e depois torcido. Abre-se o pano úmido no chão, pondo-se as duas palmas das mãos sobre ele. Os joelhos não tocam o chão, somente as mãos e os pés. De modo que o corpo fica parecido a um V invertido. Então andamos para a frente, lentamente, empurrando o pano pelo chão. Normalmente começamos por um lado do ambiente e atravessamos sem parar em direção ao outro. Quando chegamos na parede oposta, ficamos em pé, umedecemos o pano e recomeçamos por uma outra “pista”. Nesta posição, nossos quadris estão firmes, e trabalhamos o corpo à medida em que limpamos o chão. Enquanto fazemos esse exercício, temos de pensar somente em esfregar o pano, limpando cuidadosamente. Não devemos nos apressar, ficar distraídos ou pensar em outras coisas. Não devemos conversar com outro colega. Tudo isso é extremamente difícil, mas é algo muito bom para treinar a concentração de que um ator necessita.
Existe um conceito que se encontra na antiga filosofia budista indiana, o samadhi, que se refere a um nível particular de concentração profunda. De certo modo, é extremamente simples: quando lemos um livro, apenas nos concentramos na leitura do livro; quando pescamos, focamos nossa atenção somente nos movimentos e na vibração da própria linha; quando limpamos o chão, é tudo o que fazemos. [...] É extremamente difícil concentrar-se apenas na ação de limpar: é fácil distrair-se. No entanto, os atores devem ser capazes de realizar qualquer atividade com 100% de si mesmos e de concentração.


Yoshi Oida ( 1933- )


O ator invisível. Prefácio de Peter Brook; tradução de Marcelo Gomes. São Paulo: Via Lettera, 2007. p 22-23.    
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sexta-feira, 30 de agosto de 2019

O mal nas práticas ordinárias de trabalho

O mal [...] é tolerar a mentira, não denunciá-la e, mais do que isso, contribuir à sua produção e à sua difusão. O mal também é tolerar, não denunciar e participar da injustiça e do sofrimento impostos aos outros. Para começar, trata-se das infrações cada vez mais frequentes e cínicas à legislação trabalhista: empregar pessoas sem carteira de trabalho para não pagar a Previdência Social e poder demiti-las, sem penalidades, no caso de acidentes do trabalho (como no setor da construção civil ou nas empresas de mudança); empregar pessoas sem pagar o que lhes é devido (como nas oficinas semi clandestinas de confecção); exigir um trabalho cuja duração ultrapassa as autorizações legais (como no transporte rodoviário, onde se obriga homens a dirigirem por mais de 24 horas seguidas), etc. O mal também são todas as injustiças relacionadas com as alocações discriminatórias e manipuladoras a postos de trabalho mais perigosos ou penosos, deliberadamente cometidas e publicamente exibidas; é o desprezo, são as grosserias e as obscenidades dirigidas às mulheres. O mal é ainda a manipulação deliberada da ameaça, da chantagem e de insinuações contra os trabalhadores, para desestabilizá-los psicologicamente, e levá-los a cometer erros para, em seguida, usar estes atos como pretexto para demiti-los por justa causa, como se vê frequentemente com os executivos. São também as práticas correntes de demissões sem aviso prévio, sem conversas, principalmente entre executivos que, de repente, numa manhã não podem entrar no seu escritório pois a fechadura da porta foi trocada e que são convidados a ir buscar seu salário, assinar sua demissão e pegar seus objetos pessoais amontoados na porta da saída. O mal é também a participação em planos sociais, isto é, nas demissões regadas de falsas promessas de assistência ou ajuda para encontrar novo emprego, ou, ao contrário associadas a justificativas caluniosas sobre a incompetência, a inabilidade, a lentidão, a falta de iniciativa, etc. da vítima. O mal é ainda manipular a ameaça e a precariedade para submeter o outro, para infligir-lhe sevícias, por exemplo, sexuais, ou obriga-lo a fazer coisas que ele moralmente reprova e, de um modo geral, para lhe causar medo.
A existência de todos esses sofrimentos e essas injustiças impostas a outrem são conhecidas em todas as sociedades, inclusive democráticas. Nós qualificamos todas essas condutas como “mal” quando elas são:
-erigidas em sistema de direção, de comando, de organização ou de gestão, isto é, quando elas supõem a implicação de todos a título de vítimas, de carrascos ou de vítimas e carrascos alternativa ou simultaneamente;
-públicas, banalizadas, conscientes, deliberadas, admitidas ou reivindicadas e não clandestinas, ocasionais ou excepcionais, ou até quando elas são consideradas valiosas.
Atualmente, em numerosas empresas, o que antigamente era considerado como falta moral da qual se podia esquivar, e até se opor a preço de uma coragem não excepcional, tende a se tornar norma de um sistema de administração das relações humanas no mundo do trabalho: estamos então no universo do mal, do qual tentaremos analisar o funcionamento.


Dejours, Christophe (1949- )


Souffrance en France, la banalisation de l’injustice sociale. Paris: Éditions du Seuil, 1998. p 93-4. (tradução minha)

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Sobre escrever




Quem me obriga a escrever? O mistério é esse:
ninguém, e no entanto a força me impelindo.


Escrever não é quase sempre pintar com palavras?


Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim.


Quem sabe, também eu poderia não escrever.
Como é infinitamente mais ambicioso. É quase inalcançável.





Clarice Lispector (1920-1977)




As palavras/Curadoria de Roberto Correa dos Santos. Rio de Janeiro: Rocco, 2013. pp 266,11,295.

Paz e liberdade


Quero paz e liberdade
Sossego e fraternidade
Na nossa pátria natal
Desde a cidade ao deserto
Quero o operário liberto
Da exploração patronal.


Patativa de Assaré (1909-2002)


Carvalho, Gilmar de. Patativa do Assaré: um poeta cidadão. São Paulo: Expressão Popular, 2011. p 79.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Escritores


Há duas espécies de escritores. Aqueles que são e aqueles que não são. Nos primeiros, a forma e o conteúdo se harmonizam como corpo e alma; nos segundos, a forma e o conteúdo se ajustam como a roupa sobre o corpo.






Karl Kraus (1874-1936)


Aforismos. Tradução e organização de Renato Zwick. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2010. p 69.



Aplausos


Rir da vaidade dos atores, de sua necessidade de aplausos e afins é ridículo. As pessoas de teatro precisam do aplauso para representar melhor; e para isso, também basta o aplauso fingido. O sentimento de felicidade que alguns atores mostram quando são aplaudidos por aqueles que pagaram para fazê-lo é uma prova de seu gênio artístico. Dificilmente alguém teria se tornado um grande ator se o público tivesse vindo ao mundo sem mãos.



Karl Kraus (1874-1936)


Aforismos. Tradução e organização de Renato Zwick. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2010. p 66-7.


sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Atividade: repetição e criação


Se olharmos para o comportamento humano, para a sua atividade, de um modo geral, é fácil verificar a possibilidade de diferenciar dois tipos principais. Um tipo de atividade pode-se denominar de reconstituidor ou reprodutivo. Está intimamente ligado à memória; sua essência consiste em reproduzir ou repetir meios de conduta anteriormente criados e elaborados ou ressuscitar marcas de impressões precedentes. Quando me lembro da casa onde passei a minha infância ou de países distantes que visitei, reproduzo as marcas daquelas impressões que tive na primeira infância ou à época das viagens. Da mesma forma, quando faço desenhos de observação, quando escrevo ou faço algo seguindo determinado modelo, reproduzo somente o que existe diante de mim ou o que assimilei e elaborei anteriormente. O comum em todos esses casos é que a minha atividade nada cria de novo e a sua base é a repetição mais ou menos precisa daquilo que existiu.
É fácil compreender o enorme significado da conservação da experiência anterior para a vida do homem, o quanto ela facilita sua adaptação ao mundo que o cerca, ao criar e elaborar hábitos permanentes que se repetem em condições iguais.
A base orgânica dessa atividade reprodutiva ou da memória é a plasticidade da nossa substância nervosa. Chama-se plasticidade à propriedade de uma substância que permite alterá-la e conservar as marcas dessa alteração, Assim, nesse sentido, a cera tem mais plasticidade, por exemplo, do que a água ou o ferro, pois admite modificação mais facilmente do que o ferro e conserva a marca desta melhor que a água. Somente se tomadas juntas essas duas propriedades formam a plasticidade da nossa substância nervosa. Nosso cérebro e nossos nervos, que possuem uma enorme plasticidade, modificam com facilidade sua estrutura mais tênue sob diferentes influências e, se os estímulos são suficientemente fortes ou repetidos com bastante frequência, conservam a marca dessas modificações. No cérebro ocorre algo semelhante ao que acontece a uma folha de papel quando a dobramos ao meio. No local da dobra, fica a marca resultante da modificação feita, bem como a predisposição para repetir essa modificação no futuro. Basta, agora, soprar essa folha de papel para que dobre no mesmo local em que ficou a marca. O mesmo ocorre com a marca deixada pela roda na terra fofa: forma-se uma trilha que fixa as modificações produzidas pela roda, facilitando o seu deslocamento no futuro. De modo semelhante, em nosso cérebro, estímulos fortes ou que se repetem com frequência abrem novas trilhas.
Dessa forma nosso cérebro mostra-se um órgão que conserva nossa experiência anterior e facilita sua reprodução.
Entretanto, caso a atividade do cérebro fosse limitada somente à conservação da experiência anterior, o homem seria capaz de se adaptar, predominantemente, às condições habituais e estáveis do meio que o cerca. Todas as modificações novas e inesperadas no meio, ainda não vivenciadas por ele na sua experiência anterior, não poderiam, nesse caso, provocar uma reação necessária de adaptação. Junto à conservação da experiência anterior, o cérebro possui ainda uma outra função não menos importante.
Além da atividade reprodutiva, é fácil notar no comportamento humano outro gênero de atividade, mais precisamente, a combinatória ou criadora. Quando, na imaginação, esboço para mim mesmo um quadro do futuro, digamos, a vida do homem no regime socialista, ou o quadro de um passado longínquo de vida e luta do homem pré-histórico, em ambos não reproduzo as impressões que tive a oportunidade de sentir alguma vez. Não estou simplesmente restaurando a marca de excitações anteriores que chegaram ao meu cérebro, pois nunca vi, realmente, nem esse passado nem esse futuro. Apesar disso, posso ter a minha ideia, a minha imagem, o meu quadro.
Toda atividade do homem que tem como resultado a criação de novas imagens ou ações, e não a reprodução de impressões ou ações anteriores da sua experiência, pertence a esse segundo gênero de comportamento criador ou combinatório. O cérebro não é apenas o órgão que conserva e reproduz nossa experiência anterior, mas também o que combina e reelabora, de forma criadora, elementos da experiência anterior, erigindo novas situações e novos comportamentos. Se a atividade do homem se restringisse à mera reprodução do velho, ele seria um ser voltado apenas para o passado, adaptando-se ao futuro apenas na medida em que este reproduzisse aquele. É exatamente a atividade criadora que faz do homem um ser que se volta para o futuro, erigindo-o e modificando o seu presente.
A psicologia denomina imaginação ou fantasia a essa atividade criadora baseada na capacidade de combinação de nosso cérebro. Comumente, entende-se por imaginação ou fantasia algo diferente do que a ciência pressupõe com essas palavras. No cotidiano, designa-se como imaginação ou fantasia tudo o que não é real, que não corresponde à realidade e, portanto, não pode ter qualquer significado prático sério. Na verdade, a imaginação, base de toda atividade criadora, manifesta-se, sem dúvida, em todos os campos da vida cultural, tornando igualmente possível a criação artística, a científica e a técnica. Nesse sentido, tudo o que nos cerca e foi feito pelas mãos do homem, todo o mundo da cultura, diferentemente do mundo da natureza, tudo isso é produto da imaginação e da criação humana que nela se baseia [...].
Daí é fácil perceber que a nossa ideia cotidiana de criação não corresponde plenamente à compreensão científica dessa palavra. No entendimento comum, criação é o destino de alguns eleitos, gênios, talentos que criaram grandes obras artísticas, fizeram notáveis descobertas científicas ou inventaram alguns aperfeiçoamentos na área técnica. Reconhecemos de bom grado e prontamente a criação na atividade de Tostoi, Edson e Darwin, porém é corriqueiro pensarmos que na vida de uma pessoa comum não haja criação.
No entanto, como já foi dito, esse ponto de vista não é correto. Segundo uma analogia feita por um cientista russo, a eletricidade age e manifesta-se não só onde há uma grandiosa tempestade e relâmpagos ofuscantes, mas também na lâmpada de uma lanterna de bolso. Da mesma forma, a criação, na verdade, não existe apenas quando se criam grandes obras históricas, mas por toda parte em que o homem imagina, combina, modifica e cria algo novo, mesmo que esse novo se pareça a um grãozinho, se comparado às criações dos gênios. Se levarmos em conta a presença da imaginação coletiva, que une todos esses grãozinhos não raro insignificantes da criação individual, veremos que grande parte de tudo o que foi criado pela humanidade pertence exatamente ao trabalho criador anônimo e coletivo de inventores desconhecidos.



Lev Semionovitch Vigotski (1896-1934)

Imaginação e criação na infância. Tradução e revisão técnica de Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. São Paulo: Expressão Popular, 2018, p 13-17.


Homens trabalhando

Victor Arnautoff (1896-1979)

Britadores

Quarry Workers, 1978
Richard V. Correll (1904-1990)

domingo, 30 de junho de 2019

A solidão do cientista

Embora altamente satisfatória, uma carreira científica está longe de ser fácil. Experimentei muitos momentos de intenso prazer ao longo desse percurso e meu dia a dia é maravilhosamente revigorante do ponto de vista intelectual. Mas a diversão da atividade científica é explorar domínios do conhecimento que são relativamente inexplorados. Como todo aquele que se aventura no desconhecido, senti-me algumas vezes sozinho, inseguro e sem uma trilha aberta para percorrer. A cada vez que embarcava numa nova direção, pessoas bem-intencionadas, tanto do meu círculo social como colegas da comunidade científica, me aconselhavam a não fazê-lo. Tive que aprender desde o início a me sentir confortável numa situação insegura e a confiar no meu próprio julgamento.
[...] A decisão mais difícil que tive que tomar em relação à minha carreira foi abandonar a segurança potencial de uma prática em psiquiatria pela incerteza da pesquisa.


Kandel, Eric (1929 -)

Em busca da memória: o nascimento de uma nova ciência da mente. Tradução de Rejane Rubino. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p 449-50.






quarta-feira, 12 de junho de 2019

Trabalhador do mar


Mess Lethierry, o homem notável de Saint-Sampson, era um marinheiro terrível. Tinha navegado muito. Foi grumete, gageiro, timoneiro, contramestre, mestre de equipagem, piloto, arrais. Agora era armador. Ninguém conhecia o mar como ele. Era intrépido para salvar gente. Quando havia temporal Lethierry ia passear à praia, com os olhos no horizonte. Que é aquilo lá ao longe? É alguém que está em perigo. É um barco de Weymouth, ou de Aurigny, ou de Courseull, é um iate de um lorde, de um inglês, um francês, um pobre, um rico, é o diabo, fosse quem fosse, ele saltava dentro da lancha, chamava dois ou três homens valentes, dispensava-os quando não tinha, equipava ele só, desatava a amarra, travava do remo, fazia-se ao largo, subia e descia nas cavas das ondas, mergulhava no furacão, ia ao perigo. Viam-no assim de longe, no meio das lufadas do vento, de pé sobre a embarcação, gotejante de chuva, confundido com os relâmpagos, face de leão e juba de espuma. Passava assim às vezes um dia inteiro no perigo, e nas vagas à saraiva e ao vento, costeando os navios que soçobravam, salvando homens, salvando cargas, disputando com a tempestade. Voltava à noite para casa, e tecia um par de meias.
Passou esta vida cinquenta anos, desde os dez até os sessenta, enquanto foi moço. Aos sessenta anos, viu que já não podia levantar com um braço a bigorna da forja de Varclin; pesava aquela bigorna trezentas libras; foi atacado repentinamente de reumatismo. Teve de deixar o mar. Passou da idade heróica à idade patriarcal. Já não era mais do que um bonachão.



Hugo, Victor (1802-1885)

Os trabalhadores do mar. Tradução de Machado de Assis. Rio de janeiro: Ediouro. p.37.

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Abrigo de vagabundos

Eu arranjei o meu dinheiro
Trabalhando o ano inteiro
Numa cerâmica
Fabricando potes
E lá no alto da Moóca
Eu comprei um lindo lote dez de frente e dez de fundos
Construí minha maloca
Me disseram que sem planta
Não se pode construir
Mas quem trabalha tudo pode conseguir
João Saracura que é fiscal da Prefeitura
Foi um grande amigo, arranjou tudo pra mim
Por onde andará Joca e Matogrosso
Aqueles dois amigos
Que não quis me acompanhar
Andarão jogados na avenida São João
Ou vendo o Sol quadrado na detenção
Minha maloca, a mais linda que eu já vi
Hoje está legalizada ninguém pode demolir
Minha maloca a mais linda deste mundo
Ofereço aos vagabundos
Que não têm onde dormir

Adoniran Barbosa (1910-1982)