sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Ditar


Ditar não é apenas mais cômodo, mais favorável à concentração, mas tem além disso uma vantagem objetiva. O ditado torna possível ao escritor, nas fases iniciais do processo de produção, colocar-se na posição do crítico. O que ele aí estabelece não é obrigatório, é provisório, simples material a ser elaborado; entretanto uma vez transcrito isto lhe aparecerá como algo dele alienado e, em certa medida, objetivo. Ele não precisa ter medo de fixar alguma coisa que não permaneça, pois não é ele quem tem que escrevê-lo: por responsabilidade ele prega uma peça nesta última. O risco de formular toma primeiro a forma inofensiva de um ligeiro memorando que lhe é apresentado, depois, de um trabalho efetuado sobre algo já existente, de tal modo que já não percebe mais sua própria audácia. Face à dificuldade de cada enunciado teórico- que pode chegar a proporções desesperadoras- esses estratagemas tornam-se uma bênção. Eles são meios técnicos auxiliares do procedimento dialético, que faz asserções para depois retirá-las e, no entanto, mantê-las. Mas quem anota o ditado merece agradecimentos, se por contradição, ironia, nervosismo, impaciência ou falta de respeito, tira o escritor do seu sossego no momento certo. Ele atrai sobre si a raiva, e essa cólera é derivada da má consciência armazenada, com que o autor desconfia de seu próprio produto e que o incita a agarrar-se com unhas e dentes, com obstinação cada vez maior, ao texto que presume sagrado. O afeto que é dirigido com ingratidão ao incômodo ajudante tem um efeito purificador sobre a relação com a coisa tratada.

                        Adorno, Theodor (1903-1969)


                        Mínima Moralia. Tradução de Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática, 1992.p 186.

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