Ditar não é apenas mais cômodo, mais
favorável à concentração, mas tem além disso uma vantagem objetiva. O ditado
torna possível ao escritor, nas fases iniciais do processo de produção,
colocar-se na posição do crítico. O que ele aí estabelece não é obrigatório, é
provisório, simples material a ser elaborado; entretanto uma vez transcrito
isto lhe aparecerá como algo dele alienado e, em certa medida, objetivo. Ele
não precisa ter medo de fixar alguma coisa que não permaneça, pois não é ele
quem tem que escrevê-lo: por responsabilidade ele prega uma peça nesta última.
O risco de formular toma primeiro a forma inofensiva de um ligeiro memorando
que lhe é apresentado, depois, de um trabalho efetuado sobre algo já existente,
de tal modo que já não percebe mais sua própria audácia. Face à dificuldade de
cada enunciado teórico- que pode chegar a proporções desesperadoras- esses
estratagemas tornam-se uma bênção. Eles são meios técnicos auxiliares do
procedimento dialético, que faz asserções para depois retirá-las e, no entanto,
mantê-las. Mas quem anota o ditado merece agradecimentos, se por contradição, ironia,
nervosismo, impaciência ou falta de respeito, tira o escritor do seu sossego no
momento certo. Ele atrai sobre si a raiva, e essa cólera é derivada da má
consciência armazenada, com que o autor desconfia de seu próprio produto e que
o incita a agarrar-se com unhas e dentes, com obstinação cada vez maior, ao
texto que presume sagrado. O afeto que é dirigido com ingratidão ao incômodo
ajudante tem um efeito purificador sobre a relação com a coisa tratada.
Adorno, Theodor (1903-1969)
Mínima
Moralia. Tradução de Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática, 1992.p 186.
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