O mal [...] é tolerar a mentira, não denunciá-la e, mais do que isso, contribuir à sua
produção e à sua difusão. O mal também é tolerar, não denunciar e participar da
injustiça e do sofrimento impostos aos outros. Para começar, trata-se das infrações cada vez mais frequentes e
cínicas à legislação trabalhista: empregar pessoas sem carteira de trabalho
para não pagar a Previdência Social e poder demiti-las, sem penalidades, no
caso de acidentes do trabalho (como no setor da construção civil ou nas
empresas de mudança); empregar pessoas sem pagar o que lhes é devido (como nas
oficinas semi clandestinas de confecção); exigir um trabalho cuja duração
ultrapassa as autorizações legais (como no transporte rodoviário, onde se
obriga homens a dirigirem por mais de 24 horas seguidas), etc. O mal também são
todas as injustiças relacionadas com as alocações discriminatórias e manipuladoras a postos de trabalho mais perigosos
ou penosos, deliberadamente cometidas e publicamente exibidas; é o desprezo, são
as grosserias e as obscenidades dirigidas às mulheres. O mal é ainda a manipulação
deliberada da ameaça, da chantagem e
de insinuações contra os trabalhadores, para desestabilizá-los
psicologicamente, e levá-los a cometer erros para, em seguida, usar estes atos
como pretexto para demiti-los por justa causa, como se vê frequentemente com os
executivos. São também as práticas correntes de demissões sem aviso prévio, sem
conversas, principalmente entre executivos que, de repente, numa manhã não
podem entrar no seu escritório pois a fechadura da porta foi trocada e que são
convidados a ir buscar seu salário, assinar sua demissão e pegar seus objetos
pessoais amontoados na porta da saída. O mal é também a participação em planos
sociais, isto é, nas demissões regadas de falsas promessas de assistência ou
ajuda para encontrar novo emprego, ou, ao contrário associadas a justificativas
caluniosas sobre a incompetência, a inabilidade, a lentidão, a falta de
iniciativa, etc. da vítima. O mal é ainda manipular a ameaça e a precariedade
para submeter o outro, para infligir-lhe sevícias, por exemplo, sexuais, ou obriga-lo
a fazer coisas que ele moralmente reprova e, de um modo geral, para lhe causar
medo.
A existência de todos esses sofrimentos e
essas injustiças impostas a outrem são conhecidas em todas as sociedades,
inclusive democráticas. Nós qualificamos todas essas condutas como “mal” quando elas são:
-erigidas em sistema de direção, de comando, de organização ou de gestão, isto é,
quando elas supõem a implicação de todos a título de vítimas, de carrascos ou
de vítimas e carrascos alternativa ou simultaneamente;
-públicas, banalizadas, conscientes, deliberadas, admitidas ou reivindicadas e
não clandestinas, ocasionais ou excepcionais, ou até quando elas são
consideradas valiosas.
Atualmente, em numerosas empresas, o que
antigamente era considerado como falta moral da qual se podia esquivar, e até se
opor a preço de uma coragem não excepcional, tende a se tornar norma de um sistema de administração das
relações humanas no mundo do trabalho: estamos então no universo do mal, do qual
tentaremos analisar o funcionamento.
Dejours, Christophe (1949- )
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