sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Atividade: repetição e criação


Se olharmos para o comportamento humano, para a sua atividade, de um modo geral, é fácil verificar a possibilidade de diferenciar dois tipos principais. Um tipo de atividade pode-se denominar de reconstituidor ou reprodutivo. Está intimamente ligado à memória; sua essência consiste em reproduzir ou repetir meios de conduta anteriormente criados e elaborados ou ressuscitar marcas de impressões precedentes. Quando me lembro da casa onde passei a minha infância ou de países distantes que visitei, reproduzo as marcas daquelas impressões que tive na primeira infância ou à época das viagens. Da mesma forma, quando faço desenhos de observação, quando escrevo ou faço algo seguindo determinado modelo, reproduzo somente o que existe diante de mim ou o que assimilei e elaborei anteriormente. O comum em todos esses casos é que a minha atividade nada cria de novo e a sua base é a repetição mais ou menos precisa daquilo que existiu.
É fácil compreender o enorme significado da conservação da experiência anterior para a vida do homem, o quanto ela facilita sua adaptação ao mundo que o cerca, ao criar e elaborar hábitos permanentes que se repetem em condições iguais.
A base orgânica dessa atividade reprodutiva ou da memória é a plasticidade da nossa substância nervosa. Chama-se plasticidade à propriedade de uma substância que permite alterá-la e conservar as marcas dessa alteração, Assim, nesse sentido, a cera tem mais plasticidade, por exemplo, do que a água ou o ferro, pois admite modificação mais facilmente do que o ferro e conserva a marca desta melhor que a água. Somente se tomadas juntas essas duas propriedades formam a plasticidade da nossa substância nervosa. Nosso cérebro e nossos nervos, que possuem uma enorme plasticidade, modificam com facilidade sua estrutura mais tênue sob diferentes influências e, se os estímulos são suficientemente fortes ou repetidos com bastante frequência, conservam a marca dessas modificações. No cérebro ocorre algo semelhante ao que acontece a uma folha de papel quando a dobramos ao meio. No local da dobra, fica a marca resultante da modificação feita, bem como a predisposição para repetir essa modificação no futuro. Basta, agora, soprar essa folha de papel para que dobre no mesmo local em que ficou a marca. O mesmo ocorre com a marca deixada pela roda na terra fofa: forma-se uma trilha que fixa as modificações produzidas pela roda, facilitando o seu deslocamento no futuro. De modo semelhante, em nosso cérebro, estímulos fortes ou que se repetem com frequência abrem novas trilhas.
Dessa forma nosso cérebro mostra-se um órgão que conserva nossa experiência anterior e facilita sua reprodução.
Entretanto, caso a atividade do cérebro fosse limitada somente à conservação da experiência anterior, o homem seria capaz de se adaptar, predominantemente, às condições habituais e estáveis do meio que o cerca. Todas as modificações novas e inesperadas no meio, ainda não vivenciadas por ele na sua experiência anterior, não poderiam, nesse caso, provocar uma reação necessária de adaptação. Junto à conservação da experiência anterior, o cérebro possui ainda uma outra função não menos importante.
Além da atividade reprodutiva, é fácil notar no comportamento humano outro gênero de atividade, mais precisamente, a combinatória ou criadora. Quando, na imaginação, esboço para mim mesmo um quadro do futuro, digamos, a vida do homem no regime socialista, ou o quadro de um passado longínquo de vida e luta do homem pré-histórico, em ambos não reproduzo as impressões que tive a oportunidade de sentir alguma vez. Não estou simplesmente restaurando a marca de excitações anteriores que chegaram ao meu cérebro, pois nunca vi, realmente, nem esse passado nem esse futuro. Apesar disso, posso ter a minha ideia, a minha imagem, o meu quadro.
Toda atividade do homem que tem como resultado a criação de novas imagens ou ações, e não a reprodução de impressões ou ações anteriores da sua experiência, pertence a esse segundo gênero de comportamento criador ou combinatório. O cérebro não é apenas o órgão que conserva e reproduz nossa experiência anterior, mas também o que combina e reelabora, de forma criadora, elementos da experiência anterior, erigindo novas situações e novos comportamentos. Se a atividade do homem se restringisse à mera reprodução do velho, ele seria um ser voltado apenas para o passado, adaptando-se ao futuro apenas na medida em que este reproduzisse aquele. É exatamente a atividade criadora que faz do homem um ser que se volta para o futuro, erigindo-o e modificando o seu presente.
A psicologia denomina imaginação ou fantasia a essa atividade criadora baseada na capacidade de combinação de nosso cérebro. Comumente, entende-se por imaginação ou fantasia algo diferente do que a ciência pressupõe com essas palavras. No cotidiano, designa-se como imaginação ou fantasia tudo o que não é real, que não corresponde à realidade e, portanto, não pode ter qualquer significado prático sério. Na verdade, a imaginação, base de toda atividade criadora, manifesta-se, sem dúvida, em todos os campos da vida cultural, tornando igualmente possível a criação artística, a científica e a técnica. Nesse sentido, tudo o que nos cerca e foi feito pelas mãos do homem, todo o mundo da cultura, diferentemente do mundo da natureza, tudo isso é produto da imaginação e da criação humana que nela se baseia [...].
Daí é fácil perceber que a nossa ideia cotidiana de criação não corresponde plenamente à compreensão científica dessa palavra. No entendimento comum, criação é o destino de alguns eleitos, gênios, talentos que criaram grandes obras artísticas, fizeram notáveis descobertas científicas ou inventaram alguns aperfeiçoamentos na área técnica. Reconhecemos de bom grado e prontamente a criação na atividade de Tostoi, Edson e Darwin, porém é corriqueiro pensarmos que na vida de uma pessoa comum não haja criação.
No entanto, como já foi dito, esse ponto de vista não é correto. Segundo uma analogia feita por um cientista russo, a eletricidade age e manifesta-se não só onde há uma grandiosa tempestade e relâmpagos ofuscantes, mas também na lâmpada de uma lanterna de bolso. Da mesma forma, a criação, na verdade, não existe apenas quando se criam grandes obras históricas, mas por toda parte em que o homem imagina, combina, modifica e cria algo novo, mesmo que esse novo se pareça a um grãozinho, se comparado às criações dos gênios. Se levarmos em conta a presença da imaginação coletiva, que une todos esses grãozinhos não raro insignificantes da criação individual, veremos que grande parte de tudo o que foi criado pela humanidade pertence exatamente ao trabalho criador anônimo e coletivo de inventores desconhecidos.



Lev Semionovitch Vigotski (1896-1934)

Imaginação e criação na infância. Tradução e revisão técnica de Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. São Paulo: Expressão Popular, 2018, p 13-17.


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