quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Times Square

 

Sabine Weiss ( 1924-2021)

Seringueiro na selva

 

Estavam perante uma a árvore com alto saiote de ferimentos e cicatrizes. De tão martirizada, a casca da pobrezita crescera na parte inferior em desproporção com a cimeira e dir-se-ia postiço esse revestimento de rugas negras, de algumas das quais brotavam filamentos de “sernambi”.

Firmino meteu a mão entre um grupo de plantas e de lá tirou o machadinho, que era um dos poucos diminutivos bem empregados na selva.

_Isto é que é a seringueira?

_É, é. Ah, você ainda não conhecia?...

Pôs-se nos bicos dos pés e começou a lição:

_Olhe, você. Pega-se no machadinho e se corta assim... Está vendo? Assim, que é para não arrancar a casca e não fazer mal ao pau. Quando se arranca a casca, os empregados vão fazer queixa de nós ao seu Juca.

Levou o braço a um arbusto seco, em cuja extremidade, cortada para o efeito, se borcavam, enfiados uns nos outros, cinco receptáculos de folha, que tinham base redonda e iam alargando até a boca, onde não caberia uma mão fechada.

_ Isto são as tigelinhas. Se espeta elas na seringa, pelas bordas. Assim...É preciso ter cuidado para que a folha fique segura, senão a tigelinha cai e o leite escorre todo para fora. Está compreendendo?

_ Estou, estou..

Em cinco pontos diferentes, todos à mesma altura, em volta do tronco, Firmino golpeou a árvore.

_Cada seringueira leva tantas tigelinhas conforme for a grossura dela. Uma valente, como aquele piquiá que você está vendo ali, pode levar sete. Uma assim como esta, leva cinco ou quatro, se estiver fraca. Corta-se de cima para baixo, e quando se chega abaixo, o machadinho volta acima, porque a madeira já descansou. Seringueiro malandro faz mutá, mas aqui é proibido.

_ Que é isso?

_Vamos que eu já lhe explico. Mutá é fazer um jirau com galho de árvore e ir cortar a seringueira lá em cima, junto à folha. A princípio, dá mais leite; mas depois, morre.

 A mancha, até agora obscura, da plantaria rasteira e dos arbustos que prolongavam a sombra em que vivia a terra, adquiria já seu verde natural. A luz conseguira, enfim, transpassar o cerrado e acendia agora as suas vistosas lâmpadas em todos os desvãos. E não era só claridade flutuante, como pó bem peneirado; era o sol que fabricava joias refulgentes nos troncos das árvores- anéis de diademas que matavam o ar soturno das princesas da floresta. Aquecia e ia-se tornando mais enigmático o silêncio.

 

Ferreira de Castro (1898-1974)

 

A Selva. Obras completas, volume 1. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958, p 152-3.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Gestação literária

 

Por falar em inspiração lenta, levei apenas dois anos para escrever O nome da rosa, pela simples razão de que não precisei fazer nenhuma pesquisa sobre a Idade Média. Como disse, minha tese de doutorado foi sobre estética medieval, e dediquei estudos posteriores à Idade Média. Ao longo dos anos, visitei muitas abadias românicas, catedrais góticas e assim por diante. Quando decidi escrever o romance, foi como se abrisse um grande armário no qual, durante décadas, vinha depositando meus arquivos medievais. Todo aquele material estava ali aos meus pés e eu só tive de selecionar o que precisava. Para os romances subsequentes, a situação foi diferente (embora, se selecionasse determinado assunto, era porque eu já tinha alguma familiaridade com ele). Foi por isso que demorei mais para escrever meus romances posteriores- oito anos para O pêndulo de Foucault, seis para A ilha do dia anterior e para Baudulino.  [...]

O que faço durante os anos de gestação literária? Coleciona documentos; visito lugares e desenho mapas; tomo nota de plantas de edifícios. Ou as vezes de um navio, como foi o caso de A ilha do dia anterior; e esboço o rosto dos personagens. Para O nome da rosa, fiz retratos de todos os monges sobre quem escrevi. Passo esses anos preparatórios uma espécie de castelo encantado – ou se preferirem, num estado de retiro autista. Ninguém sabe o que estou fazendo, nem a minha família. Dou a impressão de realizar uma série de atividades distintas, mas estou sempre concentrado na captura de ideias, imagens e palavras para minha história. [...] Na preparação de O pêndulo de Foucault, passei noite após noite, até a hora do encerramento, andando pelos corredores do Conservatoire des Arts et Métiers, onde sucedem alguns dos principais eventos de minha história.

[...] Para narrar algo, você começa como uma espécie de demiurgo criador de um mundo – um mundo que precisa ser o mais fiel possível, de modo que você possa locomover-se nele com total segurança.

[...] Durante os preparativos para a criação de A ilha do dia anterior, evidentemente viajei para os Mares do Sul, para a exata localização geográfica onde o livro se passa, a fim de contemplar as cores da água e do céu em horas diferentes do dia, além dos matizes dos peixes e dos corais. Mas também passei dois ou três anos estudando os desenhos e os modelos de embarcações da época, para descobrir as dimensões de uma cabine ou de um compartimento e para saber como locomover-se de uma até o outro.

 

Umberto Eco (1932-2016)

  

 Confissões de um jovem romancista. Tradução de Marcelo Pen. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p 13 a 18.

 

sábado, 4 de dezembro de 2021

Sobretrabalho operário e superconsumo burguês

Pelo fato de, em sua boa-fé simplória, a classe operária ter-se deixado doutrinar, pelo fato de, com sua impetuosidade inata, ter-se precipitado às cegas no trabalho e na abstinência, a classe capitalista viu-se condenada à preguiça e aos prazeres forçados, à improdutividade e aos superconsumismo. Mas se o sobretrabalho do operário amortalha sua carne e estraçalha seus nervos, também é fecundo em dores para o burguês.

A abstinência à qual se condena a classe produtora obriga os burgueses a se dedicarem ao superconsumo dos produtos manufaturados desordenadamente. No começo da produção capitalista, há um ou dois séculos, o burguês era um homem acomodado, de hábitos razoáveis e ordeiros, contentava-se com sua mulher, ou quase isso, bebia e comia na medida de sua sede e de sua fome. Deixava aos cortesãos as nobres virtudes da vida depravada. Hoje, não há filho de novo rico que não se sinta obrigado a desenvolver a prostituição e a mercurializar seu corpo a fim de dar um sentido ao labor que se impõem os operários das minas de mercúrio; não há burguês que não se empanturre de capão com trufas e de Lafitte a fim de encorajar os criadores de La Flèche e os vinicultores do Bordelais. Nessa atividade, o organismo depaupera-se rapidamente, os cabelos caem, os dentes desgastam-se, o tronco deforma-se, o ventre retorce-se, a respiração embaraça-se, os movimentos ficam pesados, as articulações emperram, as falanges endurecem. [...]

As mulheres “da sociedade” levam uma vida de mártires. Para provar e dar sentido às toaletes feéricas que os costureiros se matam fazendo, de manhã à noite elas mudam de vestido; durante horas entregam suas cabeças ocas aos artistas capilares que, a todo preço, querem dar largas a suas paixões pelos andaimes de falsos carrapitos. Encerradas em seus espartilhos, apertadas em suas botas, decotadas a ponto de fazer corar um frade de pedra, rodam noites inteiras em seus bailes de caridade a fim de juntar alguns centavos para os pobres. Santas almas!

A fim de desempenhar sua dupla função social de não produtor e superconsumidor, o burguês teve não apenas de violentar seus modestos gostos, perder seus hábitos laboriosos de há dois séculos e entregar-se ao luxo desenfreado, a indigestões e às depravações sifilíticas, como também teve de subtrair do trabalho produtivo uma enorme massa de homens a fim de conseguir auxiliares[...]

A toda essa classe doméstica, cuja grandeza indica o grau alcançado pela civilização capitalista, deve-se acrescentar a numerosa classe dos infelizes dedicados exclusivamente à satisfação dos gostos dispendiosos e fúteis das classes ricas, os lapidadores de diamantes, bordadeiras, rendeiras, encadernadores de luxo, costureiras de luxo, decoradoras das casas de veraneio etc.

Uma vez acocorada na preguiça absoluta e desmoralizada pelo gozo forçado, a burguesia acomodou-se a seu novo tipo de vida. E toda mudança ela encara com horror. A imagem das miseráveis condições de existência, aceitas com resignação pela classe operária, e a da degradação orgânica gerada pela paixão depravada do trabalho aumenta ainda mais sua repulsa diante de toda imposição do trabalho e de qualquer restrição dos prazeres.

 

 

Paul Lafargue (1842-1911)

 

 

O direito à preguiça. Tradução de J. Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1999, p 90-94

  

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

domingo, 28 de novembro de 2021

O preço do açúcar

Ao se aproximar da cidade, eles encontraram um negro estendido no chão, apenas com metade de sua roupa, ou seja, um calção de pano azul. O pobre homem não tinha a perna esquerda nem a mão direita. “Ah! Meu Deus, lhe disse Cândido, em holandês, que fazes tu aqui, meu amigo, nesse estado terrível em que te vejo? ” “Eu espero, meu senhor, o Sr Vanderdendur, o famoso negociante”. respondeu o negro. “Foi o Sr. Vanderdendur que te tratou assim? ” “Sim senhor, disse o negro, é o costume. Eles nos dão como vestimenta um calção de pano, duas vezes por ano. Quando trabalhamos nos engenhos de cana de açúcar, e a moenda nos tira o dedo, eles nos cortam a mão; quando queremos fugir, nos cortam a perna. Isso me aconteceu nos dois casos. É a esse preço que vós comeis açúcar na Europa. Porém, quando minha mãe me vendeu por dez escudos patagões na costa da Guiné ela me dizia: meu querido filho, abençoe nossos fetiches, adore-os sempre, eles te farão viver feliz, tu tens a honra de ser escravo de nossos senhores brancos, e assim farás a fortuna de teu pai e de tua mãe”. Infelizmente, eu não sei se lhes fiz a fortuna, mas eles não fizeram a minha. Os cachorros, os macacos e os papagaios são mil vezes menos infelizes que nós. Os fetiches holandeses que me converteram me dizem, todos os domingos, que somos todos filhos de Adão, brancos e negros. Eu não sou genealogista, mas se esses pregadores dizem a verdade, somos todos primos, vindos dos alemães. Ora, o senhor há de convir que não se pode tratar seus parentes de uma maneira mais horrível.

 

 

 Voltaire (François-Marie Arouet) (1694-1778)

 

Cândido ou o Otimismo

https://www.ebooksgratuits.com/blackmask/voltaire_candide.pdf

(Tradução minha)

 

domingo, 17 de outubro de 2021

Visita à fábrica de latão

Imagino que se alguém escutasse no rádio algo como “visita à fabrica de latão”, iria pensar: “mais uma daquelas ideias idiotas. É impossível descrever um lugar como esse, é preciso ir lá e ver de perto”. Se o nosso ouvinte ainda não girou o botão desligando o rádio, peço a ele um pouco mais de paciência, pois é exatamente a ele que vou me dirigir.

Uma coisa devo admitir logo de início: só é possível descrever uma pequena parte do que se vê. Ainda não nasceu o escritor ou o poeta capaz de descrever, de forma que o leitor possa imaginar do que se trata, um cilindro laminador ou uma tesoura rolante, uma prensa de extrusão ou um laminador a frio de alta potência. Talvez um engenheiro pudesse. Mas ainda assim, ele faria um desenho. E o observador? Penso aqui em um de vocês, por exemplo, que chegasse à fábrica de latão Hirsch-Kupfer em Eberswalde e ficasse diante de uma destas máquinas que têm nomes quase impronunciáveis. O que ele veria ali? Muito simples: nem mais nem menos do que eu posso descrever aqui com palavras. Ou seja, nada. Pois qual seria o interesse de descrever essas máquinas por fora? Elas não são feitas para serem vistas, a não ser por alguém que, conhecendo perfeitamente seu mecanismo, seu desempenho e sua finalidade, saiba exatamente o que precisa verificar ali. Só podemos compreender exatamente o que se passa no exterior, se conhecemos o interior; isso vale tanto para as máquinas quanto para os seres vivos.

Mas vocês não vão conhecer uma máquina por dentro ficando simplesmente parados na frente dela. Vamos imaginar que vocês estivessem em um daqueles pavilhões gigantescos: já seria interessante ver como a mistura que será transformada em latão é despejada nos fornos, como as placas de latão vão saindo dali, como as chapas entram no laminador, grossas e curtas, e saem finas e longas, como os pequenos cilindros redondos são introduzidos automaticamente na prensa e saem do outro lado na forma de longos tubos bem acabados. Tudo isso vocês iriam ver. Mas não veriam como tudo funciona e, com o barulho monstruoso das máquinas trabalhando, das gruas se deslocando e das cargas caindo ao chão, ninguém poderia explicar a vocês.

Por isso, pode-se dizer: quanto mais se quer familiarizar-se com os diversos processos de uma fábrica tão colossal e ter a chance de compreender um pouco do que se passa, se um dia há a oportunidade de uma visita, tanto mais se deve recuar a vista. Vamos fazer como se nossos poucos minutos no rádio fossem a gôndola de um balão, da qual captamos lá de cima um panorama do funcionamento da fábrica de latão Hirsch-Kupfer, selecionando os pontos centrais que a nossa inteligência deve primeiramente abranger, para então alcançar uma visão do todo. Ainda assim, nossa dificuldade será bem grande. Pois esses pontos são vários. Para começar tem a ciência, tudo o que a física e a química têm a nos dizer sobre o latão.[   ] Ou nós podemos olhar a coisa por outro lado: o que uma fábrica como essa precisa produzir para alcançar boas vendas? O que é fabricado ali? [...] Ou um outro ponto central: como nasce uma gigantesca empresa como esta, que possui aproximadamente 2000 trabalhadores e cerca de 400 funcionários em sua fábrica? [...] Temos que seguir assim com os pontos centrais para tentar abranger o que, talvez, se poderia entender como o todo.

 

 

Walter Benjamin (1892-1940)

 

A hora das crianças: narrativas radiofônicas de Walter Benjamin. Tradução de Aldo Medeiros. Rio de Janeiro: Nau Ed., 2015. p 107-109

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Sertanejo

 

Sou matuto sertanejo

Daquele matuto pobre

Que não tem gado nem quêjo

Nem oro, prata nem cobre

Sou sertanejo rocêro

Eu trabalho o dia inteiro

Que seja inverno ou verão

Minha mão é calejada

Minha peia é bronzeada

Da quentura do sertão.

 

 

 

Patativa de Assaré (1909-2002)

 

 

Carvalho, Gilmar de. Patativa do Assaré: um poeta cidadão. São Paulo: Expressão Popular, 2011. p 21.

 

Um lenhador

 

Kasimir Malevich ( 1879-1935)

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Carregadores


Carybé (1911-1997)


Entregadores de App na Inglaterra

Depois de alguns meses conversando com o máximo de trabalhadores possível, comecei a entender que os entregadores da Deliveroo já estavam bem organizados. Em minha estupidez, eu tinha me deixado levar pelo mito e acreditado que encontraria pessoas totalmente desconectadas umas das outras, apenas indivíduos atomizados e espalhados pela cidade. Apesar de a greve de Londres ser uma evidência em contrário, eu fui incapaz de entender. Àquela altura, estava começando a me dar conta do quanto estava errado. Abaixo da superfície, os trabalhadores da Deliveroo tinham canais bem estabelecidos de comunicação e organização já em funcionamento. Para conversas cara a cara, havia os dois pontos cruciais da área de entrega. Os grupos de motoqueiros e ciclistas se conheciam bem e se reuniam nesses locais quando as coisas ficavam mais tranquilas. Os canais online eram vários grupos no WhatsApp e no Facebook que haviam sido criados mais de um ano antes pelos trabalhadores mais antigos da Deliveroo na cidade. Depois de algumas conversas pessoais nos pontos centrais, fui adicionado a essas redes. Os grupos eram basicamente os entregadores de Brighton trocando mensagens diárias sobre suas condições de trabalho, informando se o turno estava movimentado ou não, ajudando uns aos outros a lidar com os processos online da Deliveroo, passando informações sobre o dia de pagamento, organizando jogos de futebol em times de cinco contra cinco, dando conselhos sobre como se registrar como autônomos e declarar impostos, e trocando piadinhas. Essas redes eram completamente vedadas a qualquer um que não fosse entregador, mas cumpriam uma função social importante. Se alguém precisasse de uma ferramenta emprestada para fazer um conserto na bicicleta, por exemplo, o grupo podia ter uma função bastante prática também. E certas vezes, porém, essa função prática assumia um caráter muito mais relevante.

Certo dia, no inicio de 2017, um entregador começou a mandar mensagens para o grupo. Ele estava sentado no meio-fio, se sentindo desorientado, passando mal, com o coração disparado e fortes dores abdominais. Tinha trabalhado o dia todo, mas àquela altura não conseguia mais prosseguir. De imediato, ficou claro que se tratava de um problema sério. Outros entregadores começaram a mandar mensagens, perguntando como ele estava e oferecendo ajuda. Alguém pediu que ele informasse o local onde estava. Alguns trabalhadores cancelaram os pedidos a que estavam atendendo e foram vê-lo. Quando chegaram, perceberam que ele estava gelado. Estava trabalhando havia horas em temperaturas abaixo de zero com apenas algumas camadas de roupas finas de malha sob a jaqueta. No início do turno, ele transpirou bastante e encharcou as roupas, que então começaram a ficar cada vez mais frias. Os trabalhadores que foram socorrê-lo, pararam um taxi, pagaram para que o levasse ao hospital e acorrentaram sua bicicleta. Mais tarde, o entregador voltou a mandar mensagens, agradecendo pela ajuda. No hospital ele ficou sabendo que estava sofrendo os primeiros estágios de hipotermia. O grupo conseguiu ajudá-lo em questão de minutos.

Às vezes os grupos também funcionavam como mecanismos de autodefesa para os entregadores. Para os motoqueiros, o risco de furto era bem sério. Já para os ciclistas, os assaltos eram a maior preocupação. Fosse como fosse, as trocas de mensagem se tornaram uma forma de alertar sobre locais perigosos e potenciais ameaças. Em Brighton, a situação ficou tão complicada que alguns entregadores começaram a andar com armas improvisadas para o caso de serem alvos de ladrões. Conheci um trabalhador que levava um martelo consigo o tempo todo. A princípio, considerei que ele estava sendo irracional- se alguém estivesse tão determinado a roubar sua moto a ponto de obrigá-lo a se defender com um martelo, realmente valia a pena resistir? Afinal, perder a moto era melhor que levar uma facada. Certa noite, no ponto de espera dos motoqueiros, fui em busca de mais detalhes. “Se eu perder a moto, perco tudo”, ele falou. A moto havia sido comprada para exercer o trabalho: se o veículo fosse roubado, ele perderia sua fonte de renda, mas ainda teria as prestações para pagar todo mês [...]

Quando comecei naquele trabalho, me sentia sozinho. Circulando pela cidade à noite, estressado até os ossos, essa sensação de isolamento era uma coisa bem desagradável. Eu tinha plena consciência de que um acidente grave poderia acontecer a qualquer momento e que eu não teria nenhum apoio nesse caso. Mas então comecei a me sentir parte de uma comunidade, que poderia me ajudar em momentos de necessidade. Descobri que havia uma rede de solidariedade em ação, que mantinha uma grande parte daquela força de trabalho em contato diário. E essa solidariedade seria fundamental para nós, algum tempo depois.

 

 

 

Callum Cant

 

 

Delivery Fight! A luta contra os patrões sem rosto.

Tradução de Alexandre Boide, Prefácio de Leo Vinicius Liberato. São Paulo: Veneta, 2021, p 74-75.

 

 

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Oleiros

 

Janela sobre a memória

À beira-mar de outro mar, outro oleiro se aposenta, em seus anos finais.

Seus olhos se cobrem de névoa, suas mãos tremem: chegou a hora do adeus. Então acontece a cerimônia de iniciação: o oleiro velho oferece ao oleiro jovem sua melhor peça. Assim manda a tradição, entre os índios do noroeste da América: o artista que se despede entrega sua obra-prima ao artista que se apresenta.

E o oleiro jovem não guarda esta peça perfeita para contemplá-la e admirá-la: a espatifa contra o solo, a quebra em mil pedacinhos, recolhe os pedacinhos e os incorpora à sua própria argila.

 

 

                                                                                                                    Eduardo Galeano (1940-2015)

 

Amares, tradução de Eric Nepomuceno, Sergio Faraco, Sérgio Karam. Porto Alegre: L&PM, 2019, p. 113.

O acendedor de lampiões

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!

Esse mesmo que vem infatigavelmente

Parodiar o sol e associar-se à lua

Quando a sombra da noite enegrece o poente!

 

Um, dois, três lampiões, acende e continua

Outros mais a acender imperturbavelmente,

À medida que a noite aos poucos se acentua

E a palidez da lua apenas se pressente.

 

Triste ironia atroz que o senso humano irrita:_

Ele que doira a noite e ilumina a cidade,

Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

 

Tanta gente também nos outros insinua

Crenças, religiões, amor, felicidade,

Como este acendedor de lampiões da rua!

 

 

 

 

Jorge de Lima (1893-1953)

 

Poemas negros. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016. p 110.

Trabalhadores de pedreira

Daí à pedreira restavam apenas uns cinquenta passos e o chão era já todo coberto por uma farinha de pedra moída que sujava como a cal.

Aqui, ali, por toda a parte, encontravam-se trabalhadores, uns ao sol, outros debaixo de pequenas barracas feitas de lona ou de folhas de palmeira. De um lado cunhavam pedra cantando; de outro a quebravam a picareta, de outro afeiçoavam lajedos a ponta de picão; mais adiante faziam paralelepípedos a escopro e macete. E todo aquele retintim de ferramentas, e o martelar da forja, e o coro dos que lá em cima brocavam a rocha para lançar-lhe fogo, e a surda zoada ao longe, que vinha do cortiço, como de uma aldeia alarmada; tudo dava a ideia de uma atividade feroz, de uma luta de vingança e de ódio. Aqueles homens gotejantes de suor, bêbados de calor, desvairados de insolação, a quebrarem, a espicaçarem, a torturarem a pedra pareciam um punhado de demônios revoltados na sua impotência contra o impassível gigante que os contemplava com desprezo, imperturbável a todos os golpes e a todos os tiros que lhe desfechavam no dorso, deixando sem um gemido que lhe abrissem as entranhas de granito.

 

Aluísio Azevedo (1857-1913)

 

 

Vozes da ficção: narrativas do mundo do trabalho/Claudia de Arruda Campo, Enid Yatsuda Frederico e outras (organizadores). São Paulo: Expressão Popular, 2011, p 23.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Balada das lavadeiras

Lava, lava, lavadeira

A roupa de teu patrão

Sua camisa de linho

Sua meia-confecção

Enxágua seu lenço sujo

Todo sujo de batom

Põe anil no dito cujo

Pro trabalho ficar bom.

 

 

 

Vinícius de Moraes (1913-1980)

 

Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1998, p556.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Doramar

 

Acordei muito cedo. O galo não cantou e eu estava em meu quarto de dormir, uma caixinha que chamam de quarto, quente como a brasa da fogueira. Levantei passando a mão no rosto, o terço no chão, deve ter caído enquanto dormia, minha mão pendia ao lado da cama e o calor me fez levantar. Abri a porta para que corresse algum vento no quartinho: “vem, vento, corre por aqui”, foi a primeira oração da manhã. Fui para o banheiro lavar o rosto, banheirinho de azulejos velhos e descorados de tanta lavagem, aquele banheiro que não fica longe da cozinha. Lavei meu rosto, vi minhas mãos ressequidas e fui preparar o café, acordada, mas com um sono dentro de mim. Na chaleira já havia água porque me lembro de tê-la enchido na noite anterior. Ah, noite tão curta foi essa noite entre os latidos dos cães de orelhas putrefatas e o morno do tempo em meu quarto de dormir. A maré de água agora ondulava solta em meu ouvido, escuto a maré, a maré que ondulava em minha casa quando eu era menina, a maré onde eu me banhava nos fins de tarde. Ah, tarde! Que saudade eu tenho da tarde quando ainda nem nasceu o dia, e sacudi a cabeça para que a lembrança da maré fosse morrer em outro canto, mas a maré continuava, ondulava estranha, mar, mar, e a água continuava a ondular viva em meus ouvidos. Cheguei perto do cobogó da área de serviço, vendo a rua entre os quadrados, e vi que todos dormiam ainda, a maré estava muito viva, e, como ela não parava com os marulhos, voltei ao fogão. Para que é essa chaleira, mesmo? Não consigo lembrar. Alguém pediu chá, não, não, é a água do café, mas de onde vem esse som de água que movimenta a maré no fundo de minha casa, mar, mar, no fundo de minha alma, e a porta do banheiro estava aberta, e a torneira estava aberta, fechei a torneira e o som da maré se fechou com ela. Havia esquecido a torneira aberta. Voltei para o fogão porque o dia está nascendo, a luz alcança a cozinha e a água vai chiando na chaleira. Pego o pote de café moído e me ponho a coar. Fecho a garrafa térmica. Daqui a pouco a dona e o senhor acordam...Os filhos... Olho para a folhinha na parede, é “Sexta-Feira da Paixão”, “louvado seja Nosso Senhor” minha mãe me diz, a voz de minha mãe por um minuto ocupa o lugar do som da maré, e eu me sento à mesa da cozinha, olho para a porta esperando que alguém chegue para pedir algo, pedem um copo d’água, pedem um prato e uma faca para cortar uma fruta, pedem para que eu lave o prato, pedem os sapatos que estão na área de serviço, pedem que eu diga onde está o casaco, pedem uma toalha de prato, pedem uma vela e uma reza, pedem que eu varra os farelos de algo no chão, pedem que eu passeie com o cão...Meus olhos estão voltados para a porta e minha mão alisa a toalha da mesa. Estou sentada e minha mão alcança um papel dobrado de duas notas de dinheiro. Olho o papel e as letras, olho para o dinheiro, lembro que a dona deixou o dinheiro e a nota para comprar os peixe e os temperos na feira para preparar o almoço. Vinte e muitos anos nesta casa. Ainda bem que não me esqueci. Preciso me apressar para que o almoço não fique pronto tarde e a dona não me chame a atenção.

 

Itamar Vieira Junior (1979-)

 

Doramar ou a odisseia: Histórias. São Paulo: Todavia, 2021, p 124-125.

Verbete “trabalho” nos índices analíticos de “O Capital”

1- Necessidade natural eterna 
2- Função normal da vida 
3- Processo entre o homem e a natureza 
4- Caráter social do 
5- Diretamente coletivizado 
6- Duplo caráter do 
7- Abstrato (cria valor) 
8- Concreto (útil) 
9- Substância do valor 
10- Não tem nenhum valor
11- Simples social médio 
12- Complexo (superior, potenciado) 
13- Vivo 
14- Anterior (pretérito, morto) 
15- Produtivo 
16- Improdutivo 
17- Manual e intelectual 
18- Necessário 
19- Excedente 
20- Materializado 
21- Forçado 
22- Noturno, sazonal 

 Karl Marx (1818-1883)

 O Capital, Livros 1e2 Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971,


sábado, 13 de março de 2021

Catadora de papel

[...] e fui catar papel. Que suplício catar papel atualmente. Tenho que levar a minha filha Vera Eunice. Ela está com dois anos, e não gosta de ficar em casa. Eu ponho o saco na cabeça e levo-a nos braços. Suporto o peso do saco na cabeça e suporto o peso da Vera Eunice nos braços. Tem hora que revolto-me. Depois domino-me. Ela não tem culpa de estar no mundo.

 

Eu cato papel mas não gosto. Então eu penso: faz de conta que eu estou sonhando.

 

Carolina Maria de Jesus (1914-1977)

 

 

Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10. edição. São Paulo: Ática, 2014. p 22 e 29.

terça-feira, 2 de março de 2021

Plantação

 


                                            Henri Robert  Brésil (1952-1999)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Crianças e passarinhos do arrozal

Nos longos anos em que plantaram arroz no meio do sertão de água, na beira dos pântanos dos marimbus, acordávamos antes que o sol se levantasse no horizonte e seguíamos rumo à roça da fazenda. Nos muníamos de galhos, pedras, tudo que fosse instrumento para espantar os pássaros, miudinhos, de penas negras e que brilhavam quase azuis na luz da manhã. Se não fôssemos rápidos o suficiente, seu bico entrava no grão que amadurecia e sugava tudo que estivesse dentro, com sua minúscula língua. Enquanto os adultos trabalhavam, cabia a nós, crianças, espantar a praga. Os meninos chegavam com estilingues, por vezes abatiam a ave pequena. Certa vez, Belonísia chorou e só cessou o pranto quando sugeri que fizéssemos um enterro, com direito a uma caixa de vela, como urna, e flores que colhemos no campo.

 

 

Itamar Vieira Junior (1979-)

 

 Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019, p. 42.

 

 

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

A escravidão é uma chaga aberta

A escravidão é uma chaga aberta na história humana. Suas marcas físicas são ainda hoje bem visíveis na geografia do planeta. Podem ser observadas, bem de longe, por astronautas em órbita da Terra, nos 21.196 quilômetros de extensão da Grande Muralha da China, construída ao longo de quase mil anos com trabalho forçado de cerca de 1 milhão de cativos. Ou, bem de perto, nos 639 minúsculos diamantes da coroa de dom Pedro II, exposta no Museu Imperial de Petrópolis-garimpados por escravos em Minas Gerais e outras regiões do Brasil. Seus traços estão nas pirâmides do Egito; nas ruínas do Coliseu, em Roma; nos Jardins da Babilônia, no atual Iraque; nos Arcos da Lapa, no Rio de Janeiro. Estão em documentos antiquíssimos, como o livro do Gênesis, na Bíblia, que narra a venda de José, um dos filhos de Jacó, como escravo por iniciativa dos próprios irmãos. Estão nos batentes das inúmeras Portas do Não Retorno africanas, como a de Ajudá, no Benim, e a da Ilha de Goreia, no Senegal, de onde cativos africanos embarcavam nos navios negreiros para nunca mais voltar à terra em que haviam nascido. Estão nos campos de batalha da Guerra Civil Americana, uma das mais sangrentas de toda a história, em que cerca de 750 mil pessoas morreram para que a escravidão deixasse de existir nos Estados Unidos. Estão também na fisionomia de praticamente todos os mais de sete bilhões de seres humanos hoje vivos.

O uso da mão de obra escrava foi o alicerce de todas as antigas civilizações, incluindo a egípcia, a grega, a romana. Era um dos principais negócios dos vikings. Na Idade Média, deu sustentação ao desenvolvimento da Inglaterra, da França, da Espanha, da Rússia, da China e do Japão. Floresceu entre os povos pré-colombianos da América, como os incas, do Peru, e os astecas, do México. Assegurou a prosperidade de Veneza, Gênova e Florença no auge do Renascimento Italiano. A expansão do islã foi possível mediante a escravização de milhares e milhares de pessoas. O filósofo grego Aristóteles era senhor de escravos. Thomas Jefferson, autor da Declaração da Independência dos Estado Unidos, segundo a qual todos os seres humanos nasceriam livres e com direitos iguais, também. Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, herói de Inconfidência Mineira, foi dono de pelo menos seis cativos. O reverendo John Newton, autor de “Amazing grace” (“maravilhosa graça”, em português), um dos mais belos hinos evangélicos de todos os tempos, foi capitão de navio negreiro. John Locke, pensador humanista responsável pelo conceito de liberdade na história moderna, era acionista da Royal African Company, criada com o único propósito de traficar escravos. John Brown, da família fundadora da Universidade Brown, na cidade de Providence, Rhode Island, hoje um grande centro norte-americano de estudos da escravidão, era traficante de cativos. No século XIX, até os índios cherokees, nos Estados Unidos, tinham plantações de algodão culitvadas por africanos.

 

[...] A história da escravidão na América se distingue das formas mais antigas de cativeiro por duas características principais.

A primeira é o regime de trabalho. No passado, os escravos eram usados em serviços doméstico; nas oficinas como marceneiros e ferreiros; na agricultura; nos navios; marchavam como guerreiros para defender as causas de seus senhores e, muitas vezes, chegavam a ocupar altos cargos administrativos, como os de eunuco escriba e tesoureiro real. Na América, também havia essa classe de ocupações, mas a escravidão se tornou sinônimo de trabalho intensivo em grandes plantações de cana-de-açúcar, algodão, arroz, tabaco e, mais tarde, café. Escravos eram usados também na mineração de ouro, prata e diamantes. Estavam, portanto, em condições equivalentes à das máquinas agrícolas industriais de hoje, como os tratores, os arados, as colhedeiras e as plantadeiras nas modernas fazendas do interior do Brasil. Nos engenhos de açúcar, trabalhavam em jornadas exaustivas, em turnos e regime de trabalho organizados de forma muito semelhante às linhas de produção que, a partir do final do século XVIII, caracterizariam as fábricas da Revolução Industrial.

A segunda característica que diferencia a escravidão na América de todas as demais formas anteriores de cativeiro é o nascimento de uma ideologia racista, que passou a associar a cor da pele à condição de escravo. Segundo esse sistema de ideias, usado como justificativa para o comércio e a exploração do trabalho cativo africano, o negro seria naturalmente selvagem, bárbaro, preguiçosos, idólatra, de inteligência curta, canibal, promíscuo, “só podendo ascender à plena humanidade pelo aprendizado na servidão”, explica o africanista brasileiro Alberto da Costa e Silva. Sua vocação natural seria, portanto, o cativeiro, onde viveria sob tutela dos brancos, podendo, dessa forma, alçar eventualmente um novo e mais avançado estágio civilizatório.

A escravidão no Brasil foi uma tragédia humanitária de proporções gigantescas. Arrancados do continente e da cultura em que nasceram, os africanos e seus descendentes construíram o Brasil com seu trabalho árduo, sofreram humilhações e violências, foram explorados e discriminados. Essa foi a experiência mais determinante na história brasileira, com impacto profundo na cultura e no sistema político que deu origem ao país depois da Independência em 1822. Nenhum outro assunto é tão importante e tão definidor para a construção da nossa identidade.

  

Laurentino Gomes (1956-)

 

Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, volume I. Revisão e anotações Alberto da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019. p. 34, 63,64,72,73

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

O escravo negro Tebas

 Tebas, negro escravo

Profissão: alvenaria

Construiu a velha Sé

Em troca pela carta de alforria.

Trinta mil ducados que lhe deu padre Justino.

Tornou seu sonho realidade 

daí surgiu a velha Sé

Que hoje é o marco zero da cidade.

Exalto no cantar de minha gente

A sua lenda, seu passado, seu presente.

Praça que nasceu do ideal

E braço escravo.

É praça do povo

Velho relógio, encontro dos namorados

Me lembro ainda do bondinho de tostão

Engraxate batendo a lata de graxa

E camelô fazendo pregão.

O tira-teima do sambista do passado

Bixiga, Barra Funda e Lava-Pés

O jogo da tiririca era formado

O ruim caía e o bom ficava de pé.

No meu São Paulo, oi lelê, era moda

Vamos na Sé que hoje tem samba de roda.


Geraldo Filme (1927-1995)



 



 

 


domingo, 31 de janeiro de 2021

Viver de morada

Um dia meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto, que não morava na fazendo, era dita dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dali retirávamos nosso sustento.

Esse dia vive em minha memória. Não se apaga nem se afasta ainda que envelheça. O sol era tão forte que quase tudo ao alcance de minha visão estava branco, refletindo a luz intensa do céu sem nuvens. Meu pai retirou o chapéu, o calor fazia minar de seu corpo um suor grosso que lhe lavava o rosto, escorrendo pela fronte e pelas têmporas. Escorria pelo lado anterior de seus braços, formando grande manchas em sua camisa surrada. O barro cobria sua calça, sua enxada, seus braços, o chapéu largo em suas mãos. Eu atirava milho e restos de comida para as galinhas. “Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento”, apertou os olhos, olhando para a cova diante de seus pés, “aí você pergunta pra quem tem e quem precisa de gente para trabalho: “Moço, o senhor me dá morada?”. De pronto seu olho se ergueu para meu irmão: “Trabalhe mais e pense menos. Seu olho não deve crescer para o que não é seu”. Apoiou a enxada em pé no solo, segurando a ponta do seu cabo com um dos braços. “O documento da terra não vai lhe dar mais milho, nem feijão. Não vai botar comida na nossa mesa.” Retirou papel e fumo do bolso e começou a fazer um cigarro. “Está vendo este mundão de terra aí? O olho cresce. O homem quer mais. Mas suas mãos não dão conta de trabalhar ela toda, dão? Você sozinho consegue trabalhar essa tarefa que a gente trabalha. Esta terra que cresce mato, que cresce a caatinga, o buriti, o dendê não é nada sem trabalho. Não vale nada. Pode valer até para essa gente que não trabalha. Que não abre uma cova, que não sabe semear e colher. Mas para gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho. Sem ele a terra é nada."

 

 

Itamar Vieira Junior (1979-)

 

Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019, p. 185-186.

 

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Pescadores de Ponta Negra

Alzeni Carla do Nascimento

 

Supridores de supermercado

[...] Naquele momento, não se sentia inferior, como sempre acabava acontecendo na rotina estafante do supermercado, em cujo depósito se matava desmontando as montanhas de caixas, pacotes e fardos, para catar os produtos que estivessem acabando nas prateleiras, para depois tornar a montar as montanhas de caixas, pacotes e fardos, para em seguida ir colocar os produtos em seus respectivos lugares nas prateleiras, para que então os clientes viessem e comodamente os pegassem e os jogassem nos carrinhos de compras, sem imaginar a enorme quantidade de suor derramado, a enorme quantidade de energia gasta para que tudo estivesse ali, à mão, e sem imaginar, muito menos, que a remuneração obscena correspondente àquele trabalho todo não supria muitas vezes as necessidades mais básicas de um ser humano, mas sempre prontos a enchê-los dos mais baixos desaforos se uma única etiqueta de preço estivesse fora do lugar, se um único produto estivesse em falta, ao que ele só podia baixar a cabeça, porque, afinal, o cliente tinha sempre razão.

 

 

José Falero (1987-)


Os supridores. São Paulo: Todavia, 2020, p 134