Depois de alguns meses conversando com o máximo de trabalhadores possível, comecei a entender que os entregadores da Deliveroo já estavam bem organizados. Em minha estupidez, eu tinha me deixado levar pelo mito e acreditado que encontraria pessoas totalmente desconectadas umas das outras, apenas indivíduos atomizados e espalhados pela cidade. Apesar de a greve de Londres ser uma evidência em contrário, eu fui incapaz de entender. Àquela altura, estava começando a me dar conta do quanto estava errado. Abaixo da superfície, os trabalhadores da Deliveroo tinham canais bem estabelecidos de comunicação e organização já em funcionamento. Para conversas cara a cara, havia os dois pontos cruciais da área de entrega. Os grupos de motoqueiros e ciclistas se conheciam bem e se reuniam nesses locais quando as coisas ficavam mais tranquilas. Os canais online eram vários grupos no WhatsApp e no Facebook que haviam sido criados mais de um ano antes pelos trabalhadores mais antigos da Deliveroo na cidade. Depois de algumas conversas pessoais nos pontos centrais, fui adicionado a essas redes. Os grupos eram basicamente os entregadores de Brighton trocando mensagens diárias sobre suas condições de trabalho, informando se o turno estava movimentado ou não, ajudando uns aos outros a lidar com os processos online da Deliveroo, passando informações sobre o dia de pagamento, organizando jogos de futebol em times de cinco contra cinco, dando conselhos sobre como se registrar como autônomos e declarar impostos, e trocando piadinhas. Essas redes eram completamente vedadas a qualquer um que não fosse entregador, mas cumpriam uma função social importante. Se alguém precisasse de uma ferramenta emprestada para fazer um conserto na bicicleta, por exemplo, o grupo podia ter uma função bastante prática também. E certas vezes, porém, essa função prática assumia um caráter muito mais relevante.
Certo dia, no inicio de 2017, um entregador começou
a mandar mensagens para o grupo. Ele estava sentado no meio-fio, se sentindo
desorientado, passando mal, com o coração disparado e fortes dores abdominais. Tinha
trabalhado o dia todo, mas àquela altura não conseguia mais prosseguir. De
imediato, ficou claro que se tratava de um problema sério. Outros entregadores começaram
a mandar mensagens, perguntando como ele estava e oferecendo ajuda. Alguém
pediu que ele informasse o local onde estava. Alguns trabalhadores cancelaram
os pedidos a que estavam atendendo e foram vê-lo. Quando chegaram, perceberam
que ele estava gelado. Estava trabalhando havia horas em temperaturas abaixo de
zero com apenas algumas camadas de roupas finas de malha sob a jaqueta. No início
do turno, ele transpirou bastante e encharcou as roupas, que então começaram a
ficar cada vez mais frias. Os trabalhadores que foram socorrê-lo, pararam um
taxi, pagaram para que o levasse ao hospital e acorrentaram sua bicicleta. Mais
tarde, o entregador voltou a mandar mensagens, agradecendo pela ajuda. No
hospital ele ficou sabendo que estava sofrendo os primeiros estágios de
hipotermia. O grupo conseguiu ajudá-lo em questão de minutos.
Às vezes os grupos também funcionavam como
mecanismos de autodefesa para os entregadores. Para os motoqueiros, o risco de
furto era bem sério. Já para os ciclistas, os assaltos eram a maior preocupação.
Fosse como fosse, as trocas de mensagem se tornaram uma forma de alertar sobre
locais perigosos e potenciais ameaças. Em Brighton, a situação ficou tão
complicada que alguns entregadores começaram a andar com armas improvisadas
para o caso de serem alvos de ladrões. Conheci um trabalhador que levava um
martelo consigo o tempo todo. A princípio, considerei que ele estava sendo
irracional- se alguém estivesse tão determinado a roubar sua moto a ponto de obrigá-lo
a se defender com um martelo, realmente valia a pena resistir? Afinal, perder a
moto era melhor que levar uma facada. Certa noite, no ponto de espera dos
motoqueiros, fui em busca de mais detalhes. “Se eu perder a moto, perco tudo”,
ele falou. A moto havia sido comprada para exercer o trabalho: se o veículo
fosse roubado, ele perderia sua fonte de renda, mas ainda teria as prestações
para pagar todo mês [...]
Quando comecei
naquele trabalho, me sentia sozinho. Circulando pela cidade à noite, estressado até
os ossos, essa sensação de isolamento era uma coisa bem desagradável. Eu tinha
plena consciência de que um acidente grave poderia acontecer a qualquer momento
e que eu não teria nenhum apoio nesse caso. Mas então comecei a me sentir parte
de uma comunidade, que poderia me ajudar em momentos de necessidade. Descobri
que havia uma rede de solidariedade em ação, que mantinha uma grande parte
daquela força de trabalho em contato diário. E essa solidariedade seria
fundamental para nós, algum tempo depois.
Callum Cant
Delivery Fight! A luta contra os patrões
sem rosto.
Tradução de Alexandre Boide, Prefácio
de Leo Vinicius Liberato. São Paulo: Veneta, 2021, p 74-75.
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