quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

A escravidão é uma chaga aberta

A escravidão é uma chaga aberta na história humana. Suas marcas físicas são ainda hoje bem visíveis na geografia do planeta. Podem ser observadas, bem de longe, por astronautas em órbita da Terra, nos 21.196 quilômetros de extensão da Grande Muralha da China, construída ao longo de quase mil anos com trabalho forçado de cerca de 1 milhão de cativos. Ou, bem de perto, nos 639 minúsculos diamantes da coroa de dom Pedro II, exposta no Museu Imperial de Petrópolis-garimpados por escravos em Minas Gerais e outras regiões do Brasil. Seus traços estão nas pirâmides do Egito; nas ruínas do Coliseu, em Roma; nos Jardins da Babilônia, no atual Iraque; nos Arcos da Lapa, no Rio de Janeiro. Estão em documentos antiquíssimos, como o livro do Gênesis, na Bíblia, que narra a venda de José, um dos filhos de Jacó, como escravo por iniciativa dos próprios irmãos. Estão nos batentes das inúmeras Portas do Não Retorno africanas, como a de Ajudá, no Benim, e a da Ilha de Goreia, no Senegal, de onde cativos africanos embarcavam nos navios negreiros para nunca mais voltar à terra em que haviam nascido. Estão nos campos de batalha da Guerra Civil Americana, uma das mais sangrentas de toda a história, em que cerca de 750 mil pessoas morreram para que a escravidão deixasse de existir nos Estados Unidos. Estão também na fisionomia de praticamente todos os mais de sete bilhões de seres humanos hoje vivos.

O uso da mão de obra escrava foi o alicerce de todas as antigas civilizações, incluindo a egípcia, a grega, a romana. Era um dos principais negócios dos vikings. Na Idade Média, deu sustentação ao desenvolvimento da Inglaterra, da França, da Espanha, da Rússia, da China e do Japão. Floresceu entre os povos pré-colombianos da América, como os incas, do Peru, e os astecas, do México. Assegurou a prosperidade de Veneza, Gênova e Florença no auge do Renascimento Italiano. A expansão do islã foi possível mediante a escravização de milhares e milhares de pessoas. O filósofo grego Aristóteles era senhor de escravos. Thomas Jefferson, autor da Declaração da Independência dos Estado Unidos, segundo a qual todos os seres humanos nasceriam livres e com direitos iguais, também. Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, herói de Inconfidência Mineira, foi dono de pelo menos seis cativos. O reverendo John Newton, autor de “Amazing grace” (“maravilhosa graça”, em português), um dos mais belos hinos evangélicos de todos os tempos, foi capitão de navio negreiro. John Locke, pensador humanista responsável pelo conceito de liberdade na história moderna, era acionista da Royal African Company, criada com o único propósito de traficar escravos. John Brown, da família fundadora da Universidade Brown, na cidade de Providence, Rhode Island, hoje um grande centro norte-americano de estudos da escravidão, era traficante de cativos. No século XIX, até os índios cherokees, nos Estados Unidos, tinham plantações de algodão culitvadas por africanos.

 

[...] A história da escravidão na América se distingue das formas mais antigas de cativeiro por duas características principais.

A primeira é o regime de trabalho. No passado, os escravos eram usados em serviços doméstico; nas oficinas como marceneiros e ferreiros; na agricultura; nos navios; marchavam como guerreiros para defender as causas de seus senhores e, muitas vezes, chegavam a ocupar altos cargos administrativos, como os de eunuco escriba e tesoureiro real. Na América, também havia essa classe de ocupações, mas a escravidão se tornou sinônimo de trabalho intensivo em grandes plantações de cana-de-açúcar, algodão, arroz, tabaco e, mais tarde, café. Escravos eram usados também na mineração de ouro, prata e diamantes. Estavam, portanto, em condições equivalentes à das máquinas agrícolas industriais de hoje, como os tratores, os arados, as colhedeiras e as plantadeiras nas modernas fazendas do interior do Brasil. Nos engenhos de açúcar, trabalhavam em jornadas exaustivas, em turnos e regime de trabalho organizados de forma muito semelhante às linhas de produção que, a partir do final do século XVIII, caracterizariam as fábricas da Revolução Industrial.

A segunda característica que diferencia a escravidão na América de todas as demais formas anteriores de cativeiro é o nascimento de uma ideologia racista, que passou a associar a cor da pele à condição de escravo. Segundo esse sistema de ideias, usado como justificativa para o comércio e a exploração do trabalho cativo africano, o negro seria naturalmente selvagem, bárbaro, preguiçosos, idólatra, de inteligência curta, canibal, promíscuo, “só podendo ascender à plena humanidade pelo aprendizado na servidão”, explica o africanista brasileiro Alberto da Costa e Silva. Sua vocação natural seria, portanto, o cativeiro, onde viveria sob tutela dos brancos, podendo, dessa forma, alçar eventualmente um novo e mais avançado estágio civilizatório.

A escravidão no Brasil foi uma tragédia humanitária de proporções gigantescas. Arrancados do continente e da cultura em que nasceram, os africanos e seus descendentes construíram o Brasil com seu trabalho árduo, sofreram humilhações e violências, foram explorados e discriminados. Essa foi a experiência mais determinante na história brasileira, com impacto profundo na cultura e no sistema político que deu origem ao país depois da Independência em 1822. Nenhum outro assunto é tão importante e tão definidor para a construção da nossa identidade.

  

Laurentino Gomes (1956-)

 

Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, volume I. Revisão e anotações Alberto da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019. p. 34, 63,64,72,73

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