quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Seringueiro na selva

 

Estavam perante uma a árvore com alto saiote de ferimentos e cicatrizes. De tão martirizada, a casca da pobrezita crescera na parte inferior em desproporção com a cimeira e dir-se-ia postiço esse revestimento de rugas negras, de algumas das quais brotavam filamentos de “sernambi”.

Firmino meteu a mão entre um grupo de plantas e de lá tirou o machadinho, que era um dos poucos diminutivos bem empregados na selva.

_Isto é que é a seringueira?

_É, é. Ah, você ainda não conhecia?...

Pôs-se nos bicos dos pés e começou a lição:

_Olhe, você. Pega-se no machadinho e se corta assim... Está vendo? Assim, que é para não arrancar a casca e não fazer mal ao pau. Quando se arranca a casca, os empregados vão fazer queixa de nós ao seu Juca.

Levou o braço a um arbusto seco, em cuja extremidade, cortada para o efeito, se borcavam, enfiados uns nos outros, cinco receptáculos de folha, que tinham base redonda e iam alargando até a boca, onde não caberia uma mão fechada.

_ Isto são as tigelinhas. Se espeta elas na seringa, pelas bordas. Assim...É preciso ter cuidado para que a folha fique segura, senão a tigelinha cai e o leite escorre todo para fora. Está compreendendo?

_ Estou, estou..

Em cinco pontos diferentes, todos à mesma altura, em volta do tronco, Firmino golpeou a árvore.

_Cada seringueira leva tantas tigelinhas conforme for a grossura dela. Uma valente, como aquele piquiá que você está vendo ali, pode levar sete. Uma assim como esta, leva cinco ou quatro, se estiver fraca. Corta-se de cima para baixo, e quando se chega abaixo, o machadinho volta acima, porque a madeira já descansou. Seringueiro malandro faz mutá, mas aqui é proibido.

_ Que é isso?

_Vamos que eu já lhe explico. Mutá é fazer um jirau com galho de árvore e ir cortar a seringueira lá em cima, junto à folha. A princípio, dá mais leite; mas depois, morre.

 A mancha, até agora obscura, da plantaria rasteira e dos arbustos que prolongavam a sombra em que vivia a terra, adquiria já seu verde natural. A luz conseguira, enfim, transpassar o cerrado e acendia agora as suas vistosas lâmpadas em todos os desvãos. E não era só claridade flutuante, como pó bem peneirado; era o sol que fabricava joias refulgentes nos troncos das árvores- anéis de diademas que matavam o ar soturno das princesas da floresta. Aquecia e ia-se tornando mais enigmático o silêncio.

 

Ferreira de Castro (1898-1974)

 

A Selva. Obras completas, volume 1. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958, p 152-3.

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