Pelo fato de, em sua boa-fé simplória, a classe operária ter-se deixado doutrinar, pelo fato de, com sua impetuosidade inata, ter-se precipitado às cegas no trabalho e na abstinência, a classe capitalista viu-se condenada à preguiça e aos prazeres forçados, à improdutividade e aos superconsumismo. Mas se o sobretrabalho do operário amortalha sua carne e estraçalha seus nervos, também é fecundo em dores para o burguês.
A abstinência à qual
se condena a classe produtora obriga os burgueses a se dedicarem ao superconsumo
dos produtos manufaturados desordenadamente. No começo da produção capitalista,
há um ou dois séculos, o burguês era um homem acomodado, de hábitos razoáveis e
ordeiros, contentava-se com sua mulher, ou quase isso, bebia e comia na medida
de sua sede e de sua fome. Deixava aos cortesãos as nobres virtudes da vida
depravada. Hoje, não há filho de novo rico que não se sinta obrigado a
desenvolver a prostituição e a mercurializar seu corpo a fim de dar um sentido
ao labor que se impõem os operários das minas de mercúrio; não há burguês que não
se empanturre de capão com trufas e de Lafitte a fim de encorajar os criadores
de La Flèche e os vinicultores do Bordelais. Nessa atividade, o organismo
depaupera-se rapidamente, os cabelos caem, os dentes desgastam-se, o tronco
deforma-se, o ventre retorce-se, a respiração embaraça-se, os movimentos ficam
pesados, as articulações emperram, as falanges endurecem. [...]
As mulheres “da
sociedade” levam uma vida de mártires. Para provar e dar sentido às toaletes feéricas
que os costureiros se matam fazendo, de manhã à noite elas mudam de vestido;
durante horas entregam suas cabeças ocas aos artistas capilares que, a todo
preço, querem dar largas a suas paixões pelos andaimes de falsos carrapitos. Encerradas
em seus espartilhos, apertadas em suas botas, decotadas a ponto de fazer corar
um frade de pedra, rodam noites inteiras em seus bailes de caridade a fim de
juntar alguns centavos para os pobres. Santas almas!
A fim de desempenhar
sua dupla função social de não produtor e superconsumidor, o burguês teve não
apenas de violentar seus modestos gostos, perder seus hábitos laboriosos de há
dois séculos e entregar-se ao luxo desenfreado, a indigestões e às depravações
sifilíticas, como também teve de subtrair do trabalho produtivo uma enorme
massa de homens a fim de conseguir auxiliares[...]
A toda essa classe
doméstica, cuja grandeza indica o grau alcançado pela civilização capitalista,
deve-se acrescentar a numerosa classe dos infelizes dedicados exclusivamente à
satisfação dos gostos dispendiosos e fúteis das classes ricas, os lapidadores
de diamantes, bordadeiras, rendeiras, encadernadores de luxo, costureiras de
luxo, decoradoras das casas de veraneio etc.
Uma vez acocorada na
preguiça absoluta e desmoralizada pelo gozo forçado, a burguesia acomodou-se a
seu novo tipo de vida. E toda mudança ela encara com horror. A imagem das miseráveis
condições de existência, aceitas com resignação pela classe operária, e a da
degradação orgânica gerada pela paixão depravada do trabalho aumenta ainda mais
sua repulsa diante de toda imposição do trabalho e de qualquer restrição dos
prazeres.
Paul Lafargue (1842-1911)
O direito à preguiça.
Tradução de J. Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1999, p 90-94
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