sábado, 4 de dezembro de 2021

Sobretrabalho operário e superconsumo burguês

Pelo fato de, em sua boa-fé simplória, a classe operária ter-se deixado doutrinar, pelo fato de, com sua impetuosidade inata, ter-se precipitado às cegas no trabalho e na abstinência, a classe capitalista viu-se condenada à preguiça e aos prazeres forçados, à improdutividade e aos superconsumismo. Mas se o sobretrabalho do operário amortalha sua carne e estraçalha seus nervos, também é fecundo em dores para o burguês.

A abstinência à qual se condena a classe produtora obriga os burgueses a se dedicarem ao superconsumo dos produtos manufaturados desordenadamente. No começo da produção capitalista, há um ou dois séculos, o burguês era um homem acomodado, de hábitos razoáveis e ordeiros, contentava-se com sua mulher, ou quase isso, bebia e comia na medida de sua sede e de sua fome. Deixava aos cortesãos as nobres virtudes da vida depravada. Hoje, não há filho de novo rico que não se sinta obrigado a desenvolver a prostituição e a mercurializar seu corpo a fim de dar um sentido ao labor que se impõem os operários das minas de mercúrio; não há burguês que não se empanturre de capão com trufas e de Lafitte a fim de encorajar os criadores de La Flèche e os vinicultores do Bordelais. Nessa atividade, o organismo depaupera-se rapidamente, os cabelos caem, os dentes desgastam-se, o tronco deforma-se, o ventre retorce-se, a respiração embaraça-se, os movimentos ficam pesados, as articulações emperram, as falanges endurecem. [...]

As mulheres “da sociedade” levam uma vida de mártires. Para provar e dar sentido às toaletes feéricas que os costureiros se matam fazendo, de manhã à noite elas mudam de vestido; durante horas entregam suas cabeças ocas aos artistas capilares que, a todo preço, querem dar largas a suas paixões pelos andaimes de falsos carrapitos. Encerradas em seus espartilhos, apertadas em suas botas, decotadas a ponto de fazer corar um frade de pedra, rodam noites inteiras em seus bailes de caridade a fim de juntar alguns centavos para os pobres. Santas almas!

A fim de desempenhar sua dupla função social de não produtor e superconsumidor, o burguês teve não apenas de violentar seus modestos gostos, perder seus hábitos laboriosos de há dois séculos e entregar-se ao luxo desenfreado, a indigestões e às depravações sifilíticas, como também teve de subtrair do trabalho produtivo uma enorme massa de homens a fim de conseguir auxiliares[...]

A toda essa classe doméstica, cuja grandeza indica o grau alcançado pela civilização capitalista, deve-se acrescentar a numerosa classe dos infelizes dedicados exclusivamente à satisfação dos gostos dispendiosos e fúteis das classes ricas, os lapidadores de diamantes, bordadeiras, rendeiras, encadernadores de luxo, costureiras de luxo, decoradoras das casas de veraneio etc.

Uma vez acocorada na preguiça absoluta e desmoralizada pelo gozo forçado, a burguesia acomodou-se a seu novo tipo de vida. E toda mudança ela encara com horror. A imagem das miseráveis condições de existência, aceitas com resignação pela classe operária, e a da degradação orgânica gerada pela paixão depravada do trabalho aumenta ainda mais sua repulsa diante de toda imposição do trabalho e de qualquer restrição dos prazeres.

 

 

Paul Lafargue (1842-1911)

 

 

O direito à preguiça. Tradução de J. Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1999, p 90-94

  

Nenhum comentário:

Postar um comentário