quinta-feira, 8 de julho de 2021

Doramar

 

Acordei muito cedo. O galo não cantou e eu estava em meu quarto de dormir, uma caixinha que chamam de quarto, quente como a brasa da fogueira. Levantei passando a mão no rosto, o terço no chão, deve ter caído enquanto dormia, minha mão pendia ao lado da cama e o calor me fez levantar. Abri a porta para que corresse algum vento no quartinho: “vem, vento, corre por aqui”, foi a primeira oração da manhã. Fui para o banheiro lavar o rosto, banheirinho de azulejos velhos e descorados de tanta lavagem, aquele banheiro que não fica longe da cozinha. Lavei meu rosto, vi minhas mãos ressequidas e fui preparar o café, acordada, mas com um sono dentro de mim. Na chaleira já havia água porque me lembro de tê-la enchido na noite anterior. Ah, noite tão curta foi essa noite entre os latidos dos cães de orelhas putrefatas e o morno do tempo em meu quarto de dormir. A maré de água agora ondulava solta em meu ouvido, escuto a maré, a maré que ondulava em minha casa quando eu era menina, a maré onde eu me banhava nos fins de tarde. Ah, tarde! Que saudade eu tenho da tarde quando ainda nem nasceu o dia, e sacudi a cabeça para que a lembrança da maré fosse morrer em outro canto, mas a maré continuava, ondulava estranha, mar, mar, e a água continuava a ondular viva em meus ouvidos. Cheguei perto do cobogó da área de serviço, vendo a rua entre os quadrados, e vi que todos dormiam ainda, a maré estava muito viva, e, como ela não parava com os marulhos, voltei ao fogão. Para que é essa chaleira, mesmo? Não consigo lembrar. Alguém pediu chá, não, não, é a água do café, mas de onde vem esse som de água que movimenta a maré no fundo de minha casa, mar, mar, no fundo de minha alma, e a porta do banheiro estava aberta, e a torneira estava aberta, fechei a torneira e o som da maré se fechou com ela. Havia esquecido a torneira aberta. Voltei para o fogão porque o dia está nascendo, a luz alcança a cozinha e a água vai chiando na chaleira. Pego o pote de café moído e me ponho a coar. Fecho a garrafa térmica. Daqui a pouco a dona e o senhor acordam...Os filhos... Olho para a folhinha na parede, é “Sexta-Feira da Paixão”, “louvado seja Nosso Senhor” minha mãe me diz, a voz de minha mãe por um minuto ocupa o lugar do som da maré, e eu me sento à mesa da cozinha, olho para a porta esperando que alguém chegue para pedir algo, pedem um copo d’água, pedem um prato e uma faca para cortar uma fruta, pedem para que eu lave o prato, pedem os sapatos que estão na área de serviço, pedem que eu diga onde está o casaco, pedem uma toalha de prato, pedem uma vela e uma reza, pedem que eu varra os farelos de algo no chão, pedem que eu passeie com o cão...Meus olhos estão voltados para a porta e minha mão alisa a toalha da mesa. Estou sentada e minha mão alcança um papel dobrado de duas notas de dinheiro. Olho o papel e as letras, olho para o dinheiro, lembro que a dona deixou o dinheiro e a nota para comprar os peixe e os temperos na feira para preparar o almoço. Vinte e muitos anos nesta casa. Ainda bem que não me esqueci. Preciso me apressar para que o almoço não fique pronto tarde e a dona não me chame a atenção.

 

Itamar Vieira Junior (1979-)

 

Doramar ou a odisseia: Histórias. São Paulo: Todavia, 2021, p 124-125.

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