Juan Carlos Castagnino (1908-1972) |
Coletânea de excertos sobre as várias faces do trabalho, escolhidos a partir de muitas e prazerosas leituras de textos literários e afins (com algumas ilustrações)
Braços caídos
Não mais as mãos nervosas das tecelãs
tocando os
teares,
pondo emendas no fio
Não mais o matraquear dos teares
batendo
num barulho monótono, ensurdecedor
Apenas braços caídos,
As operárias pensando nos filhos
com fome
Depois vieram os soldados,
fuzis embalados
Defender a propriedade dos donos da
fábrica
Mas também tinham filhos,
Mães, noivas, irmãs
A fome era a mesma nos seus lares
também
E as tecelãs os saudaram chamando-os de
irmãos
Agora na fábrica há braços erguidos
Aclamando
E há mãos se apertando.
Carlos Marighella (1911-1969)
Poemas: rondó da liberdade. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1994.
Descanso! Eu achava que conhecia o significado dessa palavra, mas estava enganado. Tinha descansado a vida toda e não sabia. Agora, porém, ficar sentado meia hora sem fazer nada, nem mesmo pensar, teria sido a coisa mais prazerosa do mundo. Por outro lado, é uma revelação. De agora em diante, poderei entender a vida dos trabalhadores. Eu não sonhava que o trabalho pudesser ser algo tão terrível. Das cinco e meia da manhã às dez da noite, sou escravo de todos e não tenho um único instante para mim, exceto quando consigo roubar um tempinho ao anoitecer, no término do segundo quarto de vigia. Se consigo parar um minuto para contemplar o oceano cintilante à luz do sol, ou para observar um marujo subir até a carangueja ou equilibrar-se no gurupés, sei que logo escutarei aquela voz abominável dizendo “Ei, Hump, não te faz de morto. Tô de olho”.
O Lobo do Mar; tradução Daniel Galera.
Rio de Janeiro: Zahar, 2015, p.80.
Era sobre uma pesquisa que tinha como objetivo entender a perspectiva
das crianças que viviam nas ruas da cidade [Brasília]. A equipe do projeto
teria entregue a cada menino e menina uma máquina fotográfica, dessas
feitas de lata, e pedira que eles registrassem aquilo que os oprimia. Como
era esperado, surgiram fotos de policiais, garçons e vendedores, figuras
responsáveis por enxotá-los dos lugares por onde costumam circular. Mas
um conjunto de imagens destoava de tudo isso – eram fotografias de uma
parede vazia, com um prego espetado no meio. Uma vez que as imagens
não faziam sentido para a equipe de pesquisadores, chamaram o menino
para conversar sobre o assunto. Ao contrário do que pensavam, ele havia
entendido o que queriam e explicou seu recorte: era engraxate, mas não
tinha autorização para trabalhar em qualquer lugar, por isso alugava
aquele espaço e o prego onde podia pendurar sua caixa. Era aquilo que o
oprimia, a exploração do trabalho.
Regina Dalcastagnè (1967-)
O prego e o rinoceronte. Porto Alegre: Zouk, 2021. p.15-16.
A curiosidade me levava a pedir minúcias.
_Ó Gaúcho, como é que você consegue destrancar
uma fechadura?
O paciente indivíduo não se espantava de
minha ignorância, mencionava a caneta, usava expressões técnicas obscuras. Aproximava-me
do rosto o indicador e o polegar, manejava delicadamente uma pinça imaginária,
introduzia-a num buraco, segurava com ela a ponta de uma chave, ia movendo a mão
- assim – para os lados, avançava depois os dedos para os meus olhos. Falava em
abundância e a palavra e o gesto davam-me ideia viva da operação: vencido o
obstáculo, a chave, impelida para diante, caía.
_Mas isso faz barulho, Gaúcho.
_Não senhor. Eu estiro um número do “Jornal
do Brasil” por baixo da porta. Puxo o jornal e trago a chave. Se ela não vier,
meto a gazua na fechadura.
Explicava a maneira de cortar uma vidraça,
com diamante. Dava um murro no vidro, que se deslocava, batia sem rumor em cima
do “Jornal do Brasil”.
_Ó Gaúcho, informei-me estranhando a repetição,
por que essa preferência? Outro jornal não serve?
O ladrão refletiu e esclareceu muito grave:
_Vossa mercê compreende: o “Jornal do Brasil”
tem mais páginas, é mais grosso.
Vanderlino, na esteira próxima, divertia-se. E
Gaúcho, exposta essa utilidade nova da imprensa, estendia-se por um de seus
numerosos casos.
Graciliano Ramos (1892-1953)
Memórias do cárcere. volume 1. Rio de Janeiro: Record. p 96
Entrevistador: poderia o senhor dizer-nos, antes de mais nada, algo a respeito de sua maneira de trabalhar?
Aldous Huxley: trabalho com regularidade,
pela manhã e depois um pouquinho antes do jantar. À noite, prefiro ler. Em
geral, trabalho quatro ou cinco horas por dia. Trabalho tanto quanto posso, até
sentir que estou ficando rançoso. Às vezes, quando empaco, ponho-me a ler -
ficção, psicologia ou história, não importa muito o que – não para tomar
emprestados ideias ou materiais mas simplesmente para recomeçar de novo. Quase
qualquer coisa fará esse truque.
Entrevistador: reescreve muito as suas obras?
Aldous Huxley: em geral, escrevo tudo muitas
vezes. Todas as minhas ideias são derivadas. E corrijo muito cada página ou as
reescrevo, à medida que prossigo.
Aldous Huxley (1894-1963)
Escritores em ação. São Paulo: Paz e Terra,
p 216
Trabalhando o sal
É amor, o suor que me sai
Vou viver cantando
O dia tão quente que faz
Homem ver criança
Buscando conchinhas no mar
Trabalho o dia inteiro
Pra vida de gente levar.
Água vira sal lá na salina
Quem diminuiu água do mar
Água enfrenta o sol lá na salina
Sol que vai queimando até queimar
Trabalhando o sal
Pra ver a mulher se vestir
E ao chegar em casa
Encontrar a família a sorrir
Filho vir da escola
Problema maior, estudar
Que é pra não ter meu trabalho
E vida de gente levar.
Milton Nascimento ( 1942-)
Cantam Gal Costa e Milton Nascimento
Erano sposi. Lei s'alzava all'alba
prendeva il tram, correva al suo lavoro.
Lui faceva il turno che finisce all'alba
entrava in letto e lei n'era già fuori.
Soltanto un bacio in fretta posso darti
bere un caffè tenendoti per mano.
Il tuo cappotto è umido di nebbia.
Il nostro letto serba il tuo tepor.
Dopo il lavoro lei faceva spesa
buio era già - le scale risaliva.
Lui in cucina con la stufa accesa,
fanno da cena e poi già lui partiva.
Soltanto un bacio in fretta posso darti
bere un caffè tenendoti per mano.
Il tuo cappotto è umido di nebbia.
Il nostro letto serba il tuo tepor.
Mattina e sera i tram degli operai
portano gente dagli sguardi tetri;
fissar la nebbia non si stancan mai
cercando invano il sol, fuori dai vetri.
Soltanto un bacio in fretta posso darti
bere un caffè tenendoti per mano.
Il tuo cappotto è umido di nebbia.
Il nostro letto serba il tuo tepor.
la, la, la, la, la,
Il nostro letto serba il tuo tepor.
Canzone triste di Italo Calvino e musica di Sergio Liberovici (1961)
Ele empregava nada menos que dez moças, cuja tarefa era passar os corais por fios. Eram jovens e bonitas, com olhos firmes e mãos delicadas. Permaneciam sentadas junto a uma mesa comprida, com duas fileiras, e com delicadas agulhas pescavam os corais. Assim surgiam os lindos e bem proporcionados colares: nas extremidades se encontravam os corais menores; no meio, os médios; e no centro os maiores e os mais brilhantes. Enquanto trabalhavam, as moças cantavam em coro. Durante o verão, em dias quentes e ensolarados de céu azul, aquela mesa comprida, junto à qual as moças se sentavam para passar os corais pelos fios, era colocada no pátio e seus cânticos estivais eram ouvidos por toda a aldeia, sobrepondo-se ao das cotovias, que esvoaçavam pelo céu, e aos grilos nos jardins.
Existem mais tipos de corais do que imaginam
as pessoas que só conhecem os corais das vitrines das lojas. Há, primeiramente,
corais lapidados e corais brutos. Além disso, há corais com cortes retos nas
extremidades e outros, com cortes arredondados; corais em forma de espinhos ou
de bastonetes, que se parecem com arame farpado; corais amarelados e
reluzentes; corais de tonalidade vermelha e esbranquiçada, cuja cor se parece
com a das bordas superiores das pétalas de rosas chinesas; corais
rosa-amarelados, cor-de-rosa, cor de tijolo, cor de rubi, cor de azinhavre e,
por fim, corais que se parecem com gotas de sangue congeladas. Há corais esféricos
e semiesféricos; corais que se parecem com barris em miniatura e outros que se
parecem com minúsculos cilindros; há corais retos e tortos e até mesmo corais
corcundas. Há estrelas, espinhos, pontas, flores. Pois os corais são as mais
nobres plantas que existem nas profundezas dos oceanos, são rosas para as volúveis
deusas dos mares, tão abundantes em formas e cores quanto são diversos os
humores dessas deusas.
Joseph Roth (1894-1939)
O Leviatã. Edição Bilíngue português/alemão. Tradução Luis S. Krausz. São Paulo: Sesc Mojo, 2019. E-book
“Tenho cinquenta e dois anos e queria estar aposentado. Durante todo esse tempo vi muitos professores abandonarem o barco. Muitos ficaram pelo caminho, saltaram antes e foram fazer outra coisa da vida. Mas acontece que existe um certo tipo de professor, um tipo único: aquele que resolve, ou por ingenuidade ou por imbecilidade, pegar o touro à unha, permanecer na linha de frente. Anos a fio. Um tipo que se propõe a todos os dias pegar a vida pela gola e sacudi-la. Sei que o mais comum quando o barco começa a afundar é que as pessoas saltem fora, e isso é justo, mas, escutem, mesmo que o barco afunde, alguém tem de resistir. E foi o que eu fiz, por vinte anos. Porque alguém tem de ficar para apagar o quadro, desligar as luzes e fechar a porta”.
Jeferson Tenório (1977-)
O avesso da pele. São Paulo: Companhia das letras. 2020. E-book
Era filha natural de um sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fora. Perdeu o pai aos dez anos. Já então ralava coco e fazia não sei que outros trabalhos de doceira, compatíveis com a idade. Aos quinze ou dezesseis casou com um alfaiate, que morreu tísico algum tempo depois, deixando-lhe uma filha. Viúva e moça, ficaram a seu cargo a filha, com dois anos, e a mãe, cansada de trabalhar. Tinha de sustentar a três pessoas. Fazia doces, que era o seu ofício, mas cosia também, de dia e de noite, com afinco, para três ou quatro lojas e ensinava algumas crianças do bairro, a dez tostões por mês. Com isso, iam-se passando os anos, não a beleza, porque não a tivera nunca.
Machado de Assis (1839-1908)
Memórias póstuma de Brás Cubas. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018.- (Série prazer
de ler; n.13 e-book)
Cândido Portinari (1903-1962) |
De fato, ele estava escrevendo ou mais particularmente: traduzia para o “clássico” um grande artigo sobre “Ferimentos por arma de fogo”. O seu último truque intelectual era este do clássico. Buscava nisto uma distinção, uma separação intelectual desses meninos por aí que escrevem contos e romances nos jornais. Ele, um sábio, e sobretudo, um doutor, não podia escrever da mesma forma que eles. A sua sabedoria superior e o seu título “acadêmico” não podiam usar da mesma língua, dos mesmos modismos, da mesma sintaxe que esses poetastros e literatecos. Veio-lhe então a ideia do clássico. O processo era simples: escrevia do modo comum, com as palavras e o jeito de hoje, em seguida invertia as orações, picava o período com vírgulas e substituía incomodar por molestar, ao redor por derredor, isto por esto, quão grande ou tão grande por quamanho, sarapintava tudo de ao invés, empós, e assim obtinha o seu estilo clássico que começava a causar admiração aos seus pares e ao público em geral.
Gostava muito da expressão – às rebatinhas;
usava-a a todo o momento e, quando a punha no branco do papel, imaginava que
dera ao seu estilo uma força e um brilho pascalianos e às suas ideias uma
suficiência transcendente. De noite, lia o padre Vieira, mas logo às primeiras
linhas o sono lhe vinha e dormia sonhando-se “físico”, tratado de mestre, em
pleno Seiscentos, prescrevendo sangria e água quente, tal e qual o doutor
Sangrado.
Lima Barreto (1881-1922)
Triste fim de Policarpo Quaresma [recurso eletrônico]. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2017 .
Como só continuaríamos a viagem três dias depois, [o fotógrafo] convidou-me a visitar com ele uma charqueada onde estavam trabalhando vários grupos de prisioneiros paraguaios: queria fotografá-los.
Conseguimos cavalos
com um jovem oficial brasileiro e seguimos pouco mais de três léguas para
nordeste, até as margens do Arroio Touro Passo. A charqueada era imensa e produzia
carne para suprir o Exército estacionado no Paraguai. Havia mais de mil e
quinhentos homens trabalhando ali; grandes currais abrigavam os animais
trazidos para o abate, comprados ou capturados em toda a região do pampa -
desde Santa Maria até Santana do Livramento. Matava-se dia e noite. Os tanques
de salmoura estavam sempre cheios de mantas de carne e os varais estendiam-se
por centenas e centenas de metros. A maioria dos trabalhadores era constituída
de prisioneiros de guerra e negros escravos. Oficiais do Exército e alguns
franceses dirigiam os trabalhos. Havia um penetrante e enjoativo cheiro de
sangue no ar.
Kuhn colocava a câmara
sobre o tripé e pedia aos homens para fazerem pose, mas sempre como se
estivessem trabalhando; todos atendiam de boa vontade. Era impossível perceber
naqueles homens quaisquer sinais de que fossem prisioneiros. O que mais me
surpreendeu foi ouvi-los, quase todos, conversando em guarani; não imaginava
que o Exército paraguaio tivesse recrutado tantos índios assim. Não havia
uniformes para os prisioneiros; cada qual se vestia com o que tinha à mão. Como
fazia muito calor, era comum vê-los usando apenas um pano enrolado entre as
pernas e na cintura; lembravam velhas gravuras indianas.
Murilo Carvalho (1949
-)
O rastro do Jaguar. São Paulo: Leya, 2009. p 323-324.
[Em meados do séc.18], já é tempo de dizermos alguma coisa da grande habilidade e aptidão dos índios da América para todas as artes e ofícios...nas missões e casa dos brancos, em que aprendem todos os ofícios que lhes mandam ensinar, com tanta facilidade, destreza e perfeição como os melhores mestres, de sorte que podem competir com os mais insignes do ofício; a muitos bastam verem trabalhar algum oficial na sua mecânica para o imitarem com perfeição...Em uma vila de portugueses havia um índio ferreiro e serralheiro tão insigne, que os mesmos portugueses do mesmo ofício lhe davam não só as primazias, mas também os votos para ser juiz do ofício...No colégio dos padres da Companhia na cidade do Pará estão uns dois grandes anjos por tocheiros com tal perfeição que servem de admiração aos europeus e são a primeira obra que fez um índio daquele ofício.
João Daniel (1722-1776)
In Antonio Porro. Dicionário etno-histórico
da Amazônia colonial. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 2007, p.171
Famílias como a da
Dra. Maria Carolina de Jesus, bem como a minha e de milhares de brasileiras/os são
marcadas pela exclusão social e econômica, pela exclusão do conhecimento e dos
saberes, mesmo sendo trabalhadoras/es, gerando riquezas, mas apenas ficando
imerso na pobreza e na miséria, em muitos casos, íntimas da fome, excluídas e
indesejadas socialmente. [...] É um definhamento psicológico dormir sem saber
que amanhã pode não haver comida para alimentar os filhos, dinheiro para pagar
as contas, roupas para se aquecer. Vocês não sabem o que é isso? Procurem
ajudar quem infelizmente sabe.
Famílias
caracterizadas pela falta de uma cidade para morar, não desejadas nem no
interior, nas suas cidades natal e muito menos na cidade grande, na cidade as
quais foram obrigadas a morar. Vivendo numa espécie de limbo geográfico, sem
assistência do estado, sem cidadania, com o estado tratando as famílias como
rejeitos sociais, através do qual se tornam problemas caracterizados por serem
indesejáveis. Imaginem sobreviver nessas condições, afastados de seus
familiares, longe e expulso do lugar que chamava de lar, agora em terreno hostil,
também indesejado, com vizinhos novos e a forte presença do medo.
A cidade e seus
senhores nobres e poderosos são, ao seu entender, os legítimos moradores, os
que detém a propriedade da terra, grandes extensões de terras. Estes nascem
herdeiros de propriedades, com o futuro pré-definido, de privilégios e exploração,
naturalizando dessa forma a riqueza e a pobreza. Colocando a riqueza como sua
conquista, através de seus esforços e Inteligências, aqueles que sabem
aproveitar as oportunidades e assim, culpando os pobres pela pobreza, lhes
relacionando a ignorância, preguiça, falta de vontade, mesmo sendo as/os
trabalhadoras/es pobres a produzirem as riquezas.
A pobreza não é gerada
pelos pobres e sim pela exploração e não distribuição da riqueza, ocorrida por várias
gerações, desde o Brasil colonial. Com o passar do tempo, foi-se passando
também por herança, tanto a pobreza quanto a riqueza, sem nunca sequer haver
discussão sobre distribuição das riquezas, sendo difícil até mesmo discutir a
taxação das fortunas. A acumulação de riquezas por um lado nas mãos de poucos,
gera a pobreza e a miséria para muitos. Não haveria pobres se não houvessem
ricos, pobres são pobres somente quando há comparação com os ricos.
Ricos não gostam de
malocas, por isso as querem longe, se esforçam para as destruir. Os (nós)
maloqueiros também não gostamos de viver em malocas, também temos sonhos,
desejos, ensejamos por uma vida melhor. Esta vida poderia vir não com a
destruição dos ricos, mas sim de seus privilégios e distribuição de riquezas,
as quais realmente poderiam acabar com as malocas e melhorar nossas vidas. Ninguém
mora em malocas porque quer, são forçados a morar bem como são forçados a
saírem, sendo que estas forças vêm principalmente das instituições do estado e
privadas. Além do mais, os ricos gozam como se seus privilégios lhes fosse um
direito natural, se aproveitam dessas situações.
Não gostam de malocas
mas gostam do trabalho que elas produzem, se aproveitam da situação de exclusão
extrema para explorar ainda mais as/os trabalhadoras/es, estas/es que em sua
maioria nem sequer conseguem concorrer por vagas de trabalho no mercado formal,
que têm que vender sua força de trabalho conforme seu “valor e necessidade”,
mas sim conforme o “cliente” quiser pagar, logo se você não se sujeitas a
trabalhar nas condições que estão lhe sendo “ofertadas” outro trabalhará em seu
lugar. É quase uma luta, como uma grande competição entre os explorados para
saber quem poderá ter o privilégio de ser contratado/explorado.
Não gostam das/os catadoras/es
mas gostam da reciclagem, querem que seus resíduos saiam da frente de seus
olhos e sejam reciclados, não gostam de pobreza mas pagam pouco e exploram
muito seus/uas empregados/as e muito menos ainda pelos serviços domésticos. Um
pedreiro, servente da construção civil da maloca custa um terço em relação a
outros pedreiros ditos profissionais na realização do mesmo serviço e assim
funciona com os eletricistas, porteiros e domésticas, profissões marcantes da
cidade das malocas. É uma exploração travestida de apoio onde o explorado não
pode reclamar e ainda é obrigado a agradecer.
Alexandro Cardoso (1980 )
Do Lixo a Bixo: a
cultura dos estudos e o tripé de sustentação da vida. Belo Horizonte: Editora
Dialética, 2021.p 59-61
1.300° à sombra dos telheiros retos
12.000
cavalos invisíveis pensando
40.000
toneladas de níquel amarelo
Para
sair do nível das águas esponjosas
E
uma estrada de ferro nascendo do solo
Os
fornos entroncados
Dão
o gusa e a escória
A
refinação planta barras
E
lá embaixo os operários
Forjam
as primeiras lascas de aço
Oswald de Andrade (1890-1954)
Cada um de nós vê a vida segundo sua atividade, segundo seu lugar na vida ou nos acontecimentos de que participa. Podemos pressupor que a enfermeira viu uma guerra, a padeira viu outra, a paraquedista uma terceira e a piloto viu uma quarta, a comandante de um pelotão de atiradores de fuzil uma quinta... Cada uma delas esteve na guerra que existia em seu raio de visão: a de uma era a mesa de cirurgia: “Vi tantos braços e pernas amputados... Já nem acreditava que em algum lugar havia um homem inteiro. Parecia que todos estavam feridos ou mortos...” (A. D., primeiro-sargento, enfermeira); de outra, os caldeirões da cozinha de campanha: “Depois de um combate às vezes não sobrava ninguém... Você cozinhava caldeirões de mingau, caldeirões de sopa, e não havia a quem dar...” (I. Z., soldado, cozinheira); a da terceira era a cabine de piloto; “Nosso acampamento ficava na floresta. Cheguei de voo e decidi entrar na floresta; já estávamos no meio do verão, os morangos estavam no ponto. Passava por uma trilha quando vi um alemão no chão... Ele já estava escuro... Me deu medo. Até aquele momento ainda não tinha visto mortos, e já combatia na guerra havia um ano. Lá no alto era diferente... Quando você está voando, só pensa em uma coisa: encontrar o alvo, bombardear e voltar. Não chegávamos a ver os mortos. Não tínhamos esse medo...” (A. B., tenente da guarda, piloto). E a guerra dos partisans até hoje está associada ao cheiro da fogueira acesa: “Fazíamos tudo na fogueira –assávamos o pão, cozinhávamos a comida; no carvão que sobrava colocávamos as camisas e as botas de feltro para secar. À noite, nos aquecíamos...”E. V.)
Svetlana Aleksiévitch (1948- )
Consultor: 1.Pessoa cujo
trabalho é reconhecido em uma determinada área de atuação e é trazida à
empresa, como funcionário terceirizado, para oferecer novas perspectivas sobre
o funcionamento dela. Em geral, essa pessoa exibe um currículo que enumera vários clientes
altamente conceituados para quem ela já prestou seus serviços; é habilíssima na
utilização de grossos marcadores ou canetas hidrográficas e grandes blocos de
papel montados sobre cavaletes. Tais pessoas também gostam muito de falar sobre
suas vidas itinerantes e sobre os quartos de hotéis em que vivem - os quais
costumam ser melhores do que o apartamento em que você vive – à custa das
empresas que atendem. Elas podem se apresentar como “familiares”, muito amigáveis
e com grandes preocupações concernentes ao bem-estar social dos trabalhadores,
para ganhar sua confiança e honestidade. Todavia, é importante lembrar-se de
que essas pessoas não estarão do seu lado, pois, em última análise, não é você
quem paga o salário delas. 2. Uma pessoa trazida de fora da empresa para fazer
o trabalho sujo. Se há consultores rondando pela empresa em que você trabalha –
especialmente se forem representantes de grandes companhias -, é melhor você tirar
o pó do seu currículo, porque, em
breve, cabeças irão rolar. Como se fossem androides, os consultores chegam a
uma empresa para avaliar e organizar os procedimentos
operacionais e sua eficiência, e, então, dizem aos diretores quem eles devem
demitir. Consultores podem se aproximar de você para discutir seus
procedimentos com eles, mas o que estarão fazendo, na verdade, é determinar se
você é dispensável. 3. Indivíduos extremamente bem remunerados porque fazem
duas coisas que os executivos lhes abrem todos os caminhos para que sejam
feitas: dar feedback negativo a
outros executivos de alto escalão e demitir pessoas. Verdadeiros catedráticos
na arte de proferir besteiras corporativas, excelentes no ato de agregar valor e especialistas em gerenciamento de mudanças.
Lois Beckwith
Dicionário de
besteiras corporativas: um glossário de A a Z dos termos sem sentido, irritantes
e francamente estúpidos utilizados na conversação empresarial. Tradução Drago.
São Paulo: Matrix, 2009. p.63.
Já mencionei que minha profissão era de engenheira especializada em projetos de pontes? Construí pontes na Síria e na Líbia, e também na Polônia, perto de Elblag, e duas em Podláquia. Aquela ponte na Síria era estranha – ligava as margens de um rio que aparecia apenas sazonalmente -, a água fluía no leito por dois ou três meses, depois a terra quente a absorvia e o leito se transformava em algo como uma pista de bobsled por onde corriam cães selvagens do deserto.
O que me dava mais
prazer era transformar uma ideia em números - deles surgia uma imagem concreta,
depois um esboço, e então um projeto. Os números juntavam-se em minha folha de
papel e lá se ajeitavam de uma forma compreensível. Gostava muito daquilo. Meu
talento em álgebra foi útil na época em que era preciso fazer todas as contas
com uma régua de cálculo para elaborar um mapa astral. Hoje em dia é desnecessário;
há programas de computador só para isso. Quem ainda se lembraria da régua
quando o remédio para qualquer sede de conhecimento está apenas a um clique?
Olga Tokarczuk (1962-)
Sobre os ossos dos
mortos. Tradução de Olga Baginska-Shinzato. São Paulo: Todavia, 2019. p 108.