sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Destrancar uma fechadura

 A curiosidade me levava a pedir minúcias.

_Ó Gaúcho, como é que você consegue destrancar uma fechadura?

O paciente indivíduo não se espantava de minha ignorância, mencionava a caneta, usava expressões técnicas obscuras. Aproximava-me do rosto o indicador e o polegar, manejava delicadamente uma pinça imaginária, introduzia-a num buraco, segurava com ela a ponta de uma chave, ia movendo a mão - assim – para os lados, avançava depois os dedos para os meus olhos. Falava em abundância e a palavra e o gesto davam-me ideia viva da operação: vencido o obstáculo, a chave, impelida para diante, caía.

_Mas isso faz barulho, Gaúcho.

_Não senhor. Eu estiro um número do “Jornal do Brasil” por baixo da porta. Puxo o jornal e trago a chave. Se ela não vier, meto a gazua na fechadura.

Explicava a maneira de cortar uma vidraça, com diamante. Dava um murro no vidro, que se deslocava, batia sem rumor em cima do “Jornal do Brasil”.

_Ó Gaúcho, informei-me estranhando a repetição, por que essa preferência? Outro jornal não serve?

O ladrão refletiu e esclareceu muito grave:

_Vossa mercê compreende: o “Jornal do Brasil” tem mais páginas, é mais grosso.

Vanderlino, na esteira próxima, divertia-se. E Gaúcho, exposta essa utilidade nova da imprensa, estendia-se por um de seus numerosos casos.

 

 

Graciliano Ramos (1892-1953)

 

Memórias do cárcere. volume 1. Rio de Janeiro: Record. p 96

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