Como só continuaríamos a viagem três dias depois, [o fotógrafo] convidou-me a visitar com ele uma charqueada onde estavam trabalhando vários grupos de prisioneiros paraguaios: queria fotografá-los.
Conseguimos cavalos
com um jovem oficial brasileiro e seguimos pouco mais de três léguas para
nordeste, até as margens do Arroio Touro Passo. A charqueada era imensa e produzia
carne para suprir o Exército estacionado no Paraguai. Havia mais de mil e
quinhentos homens trabalhando ali; grandes currais abrigavam os animais
trazidos para o abate, comprados ou capturados em toda a região do pampa -
desde Santa Maria até Santana do Livramento. Matava-se dia e noite. Os tanques
de salmoura estavam sempre cheios de mantas de carne e os varais estendiam-se
por centenas e centenas de metros. A maioria dos trabalhadores era constituída
de prisioneiros de guerra e negros escravos. Oficiais do Exército e alguns
franceses dirigiam os trabalhos. Havia um penetrante e enjoativo cheiro de
sangue no ar.
Kuhn colocava a câmara
sobre o tripé e pedia aos homens para fazerem pose, mas sempre como se
estivessem trabalhando; todos atendiam de boa vontade. Era impossível perceber
naqueles homens quaisquer sinais de que fossem prisioneiros. O que mais me
surpreendeu foi ouvi-los, quase todos, conversando em guarani; não imaginava
que o Exército paraguaio tivesse recrutado tantos índios assim. Não havia
uniformes para os prisioneiros; cada qual se vestia com o que tinha à mão. Como
fazia muito calor, era comum vê-los usando apenas um pano enrolado entre as
pernas e na cintura; lembravam velhas gravuras indianas.
Murilo Carvalho (1949
-)
O rastro do Jaguar. São Paulo: Leya, 2009. p 323-324.
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