domingo, 14 de outubro de 2018

O poeta e o mundo: discurso do Nobel de 1996.


[...] A inspiração não é privilégio exclusivo dos poetas ou dos artistas em geral. Existe, existiu e sempre existirá um grupo de pessoas a quem a inspiração visita. São todos aqueles que escolhem conscientemente seu trabalho e o fazem com amor e imaginação. Existem médicos, pedagogos, jardineiros e centenas de outros profissionais assim. Seu trabalho pode ser uma constante aventura desde que consigam ver nele sempre novos desafios. Apesar das dificuldades e fracassos, sua curiosidade não arrefece. A cada problema resolvido segue-se um enxame de novas perguntas. A inspiração, seja ela o que for, nasce de um incessante “não sei”.
Não há muitas pessoas assim. A maioria dos habitantes da Terra trabalha para se sustentar, trabalha porque precisa. Não são eles que escolhem o trabalho por paixão, são as circunstâncias da vida que o escolhem por eles. Um trabalho detestado, um trabalho monótono, valorizado somente porque nem mesmo este tipo está disponível para todos, esse é um dos maiores infortúnios humanos. E não há indícios de que os próximos séculos trarão uma mudança para melhor.
Posso então dizer que, embora negue aos poetas o monopólio da inspiração, mesmo assim coloco-os no grupo seleto dos escolhidos da sorte.
Aqui, entretanto, podem surgir dúvidas nos ouvintes. Diversos torturadores, ditadores, fanáticos, demagogos lutando pelo poder com a ajuda de quaisquer palavras de ordem bradadas bem alto também gostam de seu trabalho e também o executam com fervorosa inventividade. Sim, mas eles “sabem”. Sabem, e aquilo que sabem lhes basta de uma vez por todas. Não querem saber de nada mais, pois isso poderia diminuir a força de seus argumentos. E todo conhecimento que não gera em si novas perguntas logo se torna morto. Perde a temperatura que sustém a vida. Nos casos mais extremos, que conhecemos bem da história antiga e contemporânea, pode até ser um perigo mortal para as sociedades.
Por isso valorizo tanto estas duas pequenas palavras: “não sei”. Pequenas, mas de asas poderosas que expandem nossa vida por espaços contidos em nós mesmos e espaços nos quais está suspensa nossa minúscula Terra. Se Isaac Newton nunca tivesse dito a si mesmo “não sei”, as maçãs do pomar poderiam ter caído como granizo diante de seus olhos e ele, na melhor das hipóteses, teria se abaixado para apanhar uma e comido com apetite. Se minha conterrânea Maria Sklodowska-Curie não tivesse dito a si mesma “não sei”, provavelmente teria se tornado professora de química numa escola para moças de boa família e nesse emprego – aliás, perfeitamente respeitável – teria passado sua vida. No entanto, repetiu para si mesma “não sei” e assim essas duas palavras a trouxeram, não uma, mas duas vezes, para Estocolmo, onde pessoas de espírito inquieto e eternamente inquiridor são agraciadas com o prêmio Nobel.
Também o poeta, se é um poeta de verdade, deve repetir constantemente para si mesmo: “não sei”. Cada poema seu é uma tentativa de resposta, mas assim que ele coloca o ponto final, já o espreita a dúvida, já começa a se dar conta de que aquela é uma reposta temporária e totalmente insuficiente. E assim tenta mais uma vez, e mais outra e depois os historiadores da literatura juntam com um grande clipe essas sucessivas provas de sua insatisfação consigo mesmo e chamam-nas de sua “obra”...


Szymborska, Wislawa (1923-2012)



Um amor feliz. Seleção, tradução e prefacio de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras. 2016. p 324-326


[...] inspiration is not the exclusive privilege of poets or artists generally. There is, has been, and will always be a certain group of people whom inspiration visits. It’s made up of all those who’ve consciously chosen their calling and do their job with love and imagination. It may include doctors, teachers, gardeners – and I could list a hundred more professions. Their work becomes one continuous adventure as long as they manage to keep discovering new challenges in it. Difficulties and setbacks never quell their curiosity. A swarm of new questions emerges from every problem they solve. Whatever inspiration is, it’s born from a continuous “I don’t know.”

There aren’t many such people. Most of the earth’s inhabitants work to get by. They work because they have to. They didn’t pick this or that kind of job out of passion; the circumstances of their lives did the choosing for them. Loveless work, boring work, work valued only because others haven’t got even that much, however loveless and boring – this is one of the harshest human miseries. And there’s no sign that coming centuries will produce any changes for the better as far as this goes.

And so, though I may deny poets their monopoly on inspiration, I still place them in a select group of Fortune’s darlings.

At this point, though, certain doubts may arise in my audience. All sorts of torturers, dictators, fanatics, and demagogues struggling for power by way of a few loudly shouted slogans also enjoy their jobs, and they too perform their duties with inventive fervor. Well, yes, but they “know.” They know, and whatever they know is enough for them once and for all. They don’t want to find out about anything else, since that might diminish their arguments’ force. And any knowledge that doesn’t lead to new questions quickly dies out: it fails to maintain the temperature required for sustaining life. In the most extreme cases, cases well known from ancient and modern history, it even poses a lethal threat to society.

This is why I value that little phrase “I don’t know” so highly. It’s small, but it flies on mighty wings. It expands our lives to include the spaces within us as well as those outer expanses in which our tiny Earth hangs suspended. If Isaac Newton had never said to himself “I don’t know,” the apples in his little orchard might have dropped to the ground like hailstones and at best he would have stooped to pick them up and gobble them with gusto. Had my compatriot Marie Sklodowska-Curie never said to herself “I don’t know”, she probably would have wound up teaching chemistry at some private high school for young ladies from good families, and would have ended her days performing this otherwise perfectly respectable job. But she kept on saying “I don’t know,” and these words led her, not just once but twice, to Stockholm, where restless, questing spirits are occasionally rewarded with the Nobel Prize.

Poets, if they’re genuine, must also keep repeating “I don’t know.” Each poem marks an effort to answer this statement, but as soon as the final period hits the page, the poet begins to hesitate, starts to realize that this particular answer was pure makeshift that’s absolutely inadequate to boot. So the poets keep on trying, and sooner or later the consecutive results of their self-dissatisfaction are clipped together with a giant paperclip by literary historians and called their “oeuvre” …






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