sábado, 27 de outubro de 2018

Meu trabalho é um modo de existência


Meu trabalho é fazer cinema. E a maneira pela qual eu o faço é um modo de existência e não somente um modo de expressão. Parece-me que neste tipo de extroversão, reconheço alguma coisa que me pertence de forma muito íntima, a tal ponto que fora do estúdio, fora das luzes da sala, da materialização de fantasias ou de sonhos, da maquiagem dos atores, da criação de uma ordem, fora da atmosfera de um set de filmagem, sinto-me um pouco vazio; sinto-me imediatamente no exílio. Sinto-me tão despreparado para aquilo que chamamos existência normal que tudo poderá me acontecer. Viver fazendo filmes é, para mim, a forma mais próxima de identidade na qual posso me encontrar. É no centro de minha história que me sinto no centro de minha existência. 

...como poderia ser desconfiado, cético, demasiado prudente com a profissão que tenho? Exerço uma profissão que me mostra sempre que sou louco! Imagino, sonho alguma coisa e depois a materializo e a mostro a milhões de pessoas. Como é que isso acontece? Como é possível que eu, ignorante, sem ter a proteção de nenhuma ideologia filosófica ou política, sem grandes paixões- no fundo fiquei adolescente, com as curiosidades, as maravilhas da adolescência- como pude realizar isso? Não falo aqui dos resultados estéticos, mas da operação em si. Então, como poderia eu acreditar em magia?
-Para o senhor, o artista é, pelo menos duas pessoas, como dizia Rimbaud: “eu é um outro” ?
-Sim. Revendo meus filmes, por acaso- porque não os revejo nunca por minha própria vontade- ou quando acontece de ver uma fotografia ou um trecho na televisão, me vem espontaneamente a pergunta: “Mas quem é esse que fez esse filme? Como é possível? Como pude impor minha vontade a milhares de pessoas para realizar isso? ” Fico estupefato, o que me faz imaginar que no momento em que faço meu trabalho, no momento em que me torno cineasta, sou habitado por um hóspede escuro, que não conheço, que toma a direção do barco e dirige em meu lugar. Eu coloco unicamente à sua disposição a minha voz, minha sensibilidade artesanal, minhas tentativas de sedução, de plagiador ou de autoridade. Entretanto, é um outro que age, um outro com quem vivo e que eu aprendo a conhecer pelo que escuto dizer dele....






Federico Fellini (1920-1993)


Eu sou um grande mentiroso, entrevista a Damien Pettigrew. Tradução de Fernanda Borges e Roberto Paulino. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.


Nenhum comentário:

Postar um comentário