O documento que serve de base a este trabalho é uma carta régia de
D. Afonso V, confirmando um alvará do responsável pela Casa da Moeda do Porto.
Segundo este alvará, redigido na cidade em 8 de Abril de 1446, o alcaide da
moeda, João de Aragão, dá testemunho de um problema de saúde de um dos seus
subordinados: o ferreiro João de Refojos, morador na margem sul do Douro, em
Vila Nova, queixou-se-lhe de que sofria fortes dores de ciática e de asma;
estas dores atormentavam-no especialmente quando trabalhava nos fornos, porque
"o fumo do cobre e a grande quentura do fogo lhe entrava per os narizes e
per a boca e lhe ia aa cabeça". Se a identificação dos males como ciática
e asma nos pode despertar algum cepticismo, bem como o percurso dos maléficos
fumos do nariz para a cabeça, parece por outro lado óbvio que os vapores
exalados pela fusão do cobre e as temperaturas infernais não deviam dar saúde a
ninguém.
João de Refojos recorreu aos físicos, que o teriam prevenido de
que, se continuasse a trabalhar nos fornos da moeda, a "sua vida seria
abreviada". O ferreiro, desejoso antes de a prolongar, começou por
garantir alguém que o substituísse no posto de trabalho; e depois pediu ao
alcaide da moeda que o deixasse passar à aposentação.
João de Aragão seguiu a rotina: solicitou a um médico judeu, mestre
Meir, que por essa altura estava no Porto, que examinasse o moedeiro doente.
Depois de devidamente ajuramentado sobre a Tora, o mestre corroborou os
primeiros diagnósticos dos seus colegas: o infeliz padecia mesmo da dor da
ciática e da dor da asma e, "segundo regra de física" corria perigo
de vida se não abandonasse os fornos, "pello grande fogo e pello fumo de
cobre que se lhe metia pellos narizes e pella boca, e que estando lavrando se
podia afogar [...] pela enfermidade dos peitos". Mais, e pior: como o
paciente era, ao que consta, enfezado ("de pequena compreissam"), o
médico judeu sentenciava: nem moedeiro nem ferreiro; João de Refojos que
"buscasse sua vida por outra parte".
Perante este atestado médico, o alcaide da moeda reuniu com os
demais responsáveis da Casa e constatando que o serviço do rei estava a ser
prejudicado, pois enquanto estivesse no activo o ferreiro tinha mesmo de
trabalhar, o que manifestamente ele não estava em condições de fazer,
concedeu-lhe a aposentação com todas as "honras" e
"liberdades" incluídas nos privilégios da sua classe. João de Aragão
passou este alvará em nome do rei de Portugal e dirigiu-o, em primeiro lugar,
aos contadores do reino; o documento é redigido pelo escrivão da alcaidaria da
moeda, e tem data de 8 de Abril de 1446, como já se disse. Só três anos e oito
meses depois, a 22 de Dezembro de 1449, o moedeiro obteve confirmação régia do
alvará; D. Afonso V, que acabara de assumir a plenitude das suas funções,
garantiu-lhe a aposentação com todo o respeito e mordomias habituais de que
usufruíam os moedeiros que se reformavam "por bem da hidade e serviços ou
aleijõoes". Não tenho explicação para este intervalo de tempo; pelo seu
teor, o alvará parecia suficiente para garantir a 'alforria' do ferreiro.
Talvez mais tarde este sentisse necessidade do suplemento de segurança que uma
carta régia, em pergaminho, proporcionava em relação ao alvará local em papel.
Acredito que ele tenha largado os fornos logo em Abril de 1446, mas não posso
passar de conjecturas. E acrescentar uma ou outra pergunta: por aquele tempo, a
Casa da Moeda do Porto trabalhava essencialmente com cobre, ou acontecia apenas
que este ferreiro tinha a desdita de "lavrar" nos fornos daquele
metal? Passando à doença, percebe-se a relação da asma com as temperaturas
muito elevadas, os fumos e os vapores; mas quanto à dor de ciática, que
"regra de física" terá levado mestre Meir a acreditar que ela também
derivava do fumo que "entrava pelos narizes" de João de Refojos e lhe
"afogava os peitos"? Como conclusão provisória, deixaria esta: ainda
na primeira metade do século XV, a Casa da Moeda do Porto tinha já um
procedimento rotineiro que permitia aos respectivos trabalhadores darem baixa
por incapacidade física.
Duarte, Luís Miguel
O moedeiro “enfermo dos peitos”
(uma doença profissional no Porto em meados do séc XV)
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