sábado, 27 de outubro de 2018

O atestado médico de 1446: o moedeiro enfermo dos peitos


O documento que serve de base a este trabalho é uma carta régia de D. Afonso V, confirmando um alvará do responsável pela Casa da Moeda do Porto. Segundo este alvará, redigido na cidade em 8 de Abril de 1446, o alcaide da moeda, João de Aragão, dá testemunho de um problema de saúde de um dos seus subordinados: o ferreiro João de Refojos, morador na margem sul do Douro, em Vila Nova, queixou-se-lhe de que sofria fortes dores de ciática e de asma; estas dores atormentavam-no especialmente quando trabalhava nos fornos, porque "o fumo do cobre e a grande quentura do fogo lhe entrava per os narizes e per a boca e lhe ia aa cabeça". Se a identificação dos males como ciática e asma nos pode despertar algum cepticismo, bem como o percurso dos maléficos fumos do nariz para a cabeça, parece por outro lado óbvio que os vapores exalados pela fusão do cobre e as temperaturas infernais não deviam dar saúde a ninguém.
João de Refojos recorreu aos físicos, que o teriam prevenido de que, se continuasse a trabalhar nos fornos da moeda, a "sua vida seria abreviada". O ferreiro, desejoso antes de a prolongar, começou por garantir alguém que o substituísse no posto de trabalho; e depois pediu ao alcaide da moeda que o deixasse passar à aposentação.
João de Aragão seguiu a rotina: solicitou a um médico judeu, mestre Meir, que por essa altura estava no Porto, que examinasse o moedeiro doente. Depois de devidamente ajuramentado sobre a Tora, o mestre corroborou os primeiros diagnósticos dos seus colegas: o infeliz padecia mesmo da dor da ciática e da dor da asma e, "segundo regra de física" corria perigo de vida se não abandonasse os fornos, "pello grande fogo e pello fumo de cobre que se lhe metia pellos narizes e pella boca, e que estando lavrando se podia afogar [...] pela enfermidade dos peitos". Mais, e pior: como o paciente era, ao que consta, enfezado ("de pequena compreissam"), o médico judeu sentenciava: nem moedeiro nem ferreiro; João de Refojos que "buscasse sua vida por outra parte".
Perante este atestado médico, o alcaide da moeda reuniu com os demais responsáveis da Casa e constatando que o serviço do rei estava a ser prejudicado, pois enquanto estivesse no activo o ferreiro tinha mesmo de trabalhar, o que manifestamente ele não estava em condições de fazer, concedeu-lhe a aposentação com todas as "honras" e "liberdades" incluídas nos privilégios da sua classe. João de Aragão passou este alvará em nome do rei de Portugal e dirigiu-o, em primeiro lugar, aos contadores do reino; o documento é redigido pelo escrivão da alcaidaria da moeda, e tem data de 8 de Abril de 1446, como já se disse. Só três anos e oito meses depois, a 22 de Dezembro de 1449, o moedeiro obteve confirmação régia do alvará; D. Afonso V, que acabara de assumir a plenitude das suas funções, garantiu-lhe a aposentação com todo o respeito e mordomias habituais de que usufruíam os moedeiros que se reformavam "por bem da hidade e serviços ou aleijõoes". Não tenho explicação para este intervalo de tempo; pelo seu teor, o alvará parecia suficiente para garantir a 'alforria' do ferreiro. Talvez mais tarde este sentisse necessidade do suplemento de segurança que uma carta régia, em pergaminho, proporcionava em relação ao alvará local em papel. Acredito que ele tenha largado os fornos logo em Abril de 1446, mas não posso passar de conjecturas. E acrescentar uma ou outra pergunta: por aquele tempo, a Casa da Moeda do Porto trabalhava essencialmente com cobre, ou acontecia apenas que este ferreiro tinha a desdita de "lavrar" nos fornos daquele metal? Passando à doença, percebe-se a relação da asma com as temperaturas muito elevadas, os fumos e os vapores; mas quanto à dor de ciática, que "regra de física" terá levado mestre Meir a acreditar que ela também derivava do fumo que "entrava pelos narizes" de João de Refojos e lhe "afogava os peitos"? Como conclusão provisória, deixaria esta: ainda na primeira metade do século XV, a Casa da Moeda do Porto tinha já um procedimento rotineiro que permitia aos respectivos trabalhadores darem baixa por incapacidade física.

Duarte, Luís Miguel

O moedeiro “enfermo dos peitos” (uma doença profissional no Porto em meados do séc XV)



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