sábado, 27 de outubro de 2018

O amanuense


Vejo muito bem que não faço nada de extraordinariamente importante quando me sento à secretária na repartição e me ponho a copiar minutas. E, no entanto, sinto-me vaidoso: trabalho, faço qualquer coisa de útil e faço-o pelo meu próprio esforço. E, além disso, há alguma coisa de mal no fato de eu não fazer outra coisa senão copiar? É porventura algum pecado? Ora! Não passo de um amanuense! Mas vamos lá a ver: que tem isso de desonroso? A minha letra é perfeitamente clara, legível, tanto que até parece letra de imprensa, e dá gosto ver uma página escrita por mim...Sua Excelência, o ministro, está muito satisfeito comigo. Quer sempre que seja eu quem lhe copie os documentos que levam a sua assinatura. Ora, tudo isto está muito bem; o que é pena é eu não redigir com elegância. De sobejo sei que não tenho estilo, que não domino a construção da prosa. Também sei isso perfeitamente e essa foi a razão por que eu não pude subir no emprego...
Sei tudo isto lindamente; mas, afinal, se todas as pessoas escrevessem de maneira original, diga-me, quem diabo havia de copiar as minutas?
                       


Dostoievski, Fiodor M. (1821-1881)


                        Pobre gente. Obra completa em quatro volumes. Tradução de Natália Nunes. Rio de Janeiro: Aguilar Editora,1963. V 1.

Meu trabalho é um modo de existência


Meu trabalho é fazer cinema. E a maneira pela qual eu o faço é um modo de existência e não somente um modo de expressão. Parece-me que neste tipo de extroversão, reconheço alguma coisa que me pertence de forma muito íntima, a tal ponto que fora do estúdio, fora das luzes da sala, da materialização de fantasias ou de sonhos, da maquiagem dos atores, da criação de uma ordem, fora da atmosfera de um set de filmagem, sinto-me um pouco vazio; sinto-me imediatamente no exílio. Sinto-me tão despreparado para aquilo que chamamos existência normal que tudo poderá me acontecer. Viver fazendo filmes é, para mim, a forma mais próxima de identidade na qual posso me encontrar. É no centro de minha história que me sinto no centro de minha existência. 

...como poderia ser desconfiado, cético, demasiado prudente com a profissão que tenho? Exerço uma profissão que me mostra sempre que sou louco! Imagino, sonho alguma coisa e depois a materializo e a mostro a milhões de pessoas. Como é que isso acontece? Como é possível que eu, ignorante, sem ter a proteção de nenhuma ideologia filosófica ou política, sem grandes paixões- no fundo fiquei adolescente, com as curiosidades, as maravilhas da adolescência- como pude realizar isso? Não falo aqui dos resultados estéticos, mas da operação em si. Então, como poderia eu acreditar em magia?
-Para o senhor, o artista é, pelo menos duas pessoas, como dizia Rimbaud: “eu é um outro” ?
-Sim. Revendo meus filmes, por acaso- porque não os revejo nunca por minha própria vontade- ou quando acontece de ver uma fotografia ou um trecho na televisão, me vem espontaneamente a pergunta: “Mas quem é esse que fez esse filme? Como é possível? Como pude impor minha vontade a milhares de pessoas para realizar isso? ” Fico estupefato, o que me faz imaginar que no momento em que faço meu trabalho, no momento em que me torno cineasta, sou habitado por um hóspede escuro, que não conheço, que toma a direção do barco e dirige em meu lugar. Eu coloco unicamente à sua disposição a minha voz, minha sensibilidade artesanal, minhas tentativas de sedução, de plagiador ou de autoridade. Entretanto, é um outro que age, um outro com quem vivo e que eu aprendo a conhecer pelo que escuto dizer dele....






Federico Fellini (1920-1993)


Eu sou um grande mentiroso, entrevista a Damien Pettigrew. Tradução de Fernanda Borges e Roberto Paulino. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.


O atestado médico de 1446: o moedeiro enfermo dos peitos


O documento que serve de base a este trabalho é uma carta régia de D. Afonso V, confirmando um alvará do responsável pela Casa da Moeda do Porto. Segundo este alvará, redigido na cidade em 8 de Abril de 1446, o alcaide da moeda, João de Aragão, dá testemunho de um problema de saúde de um dos seus subordinados: o ferreiro João de Refojos, morador na margem sul do Douro, em Vila Nova, queixou-se-lhe de que sofria fortes dores de ciática e de asma; estas dores atormentavam-no especialmente quando trabalhava nos fornos, porque "o fumo do cobre e a grande quentura do fogo lhe entrava per os narizes e per a boca e lhe ia aa cabeça". Se a identificação dos males como ciática e asma nos pode despertar algum cepticismo, bem como o percurso dos maléficos fumos do nariz para a cabeça, parece por outro lado óbvio que os vapores exalados pela fusão do cobre e as temperaturas infernais não deviam dar saúde a ninguém.
João de Refojos recorreu aos físicos, que o teriam prevenido de que, se continuasse a trabalhar nos fornos da moeda, a "sua vida seria abreviada". O ferreiro, desejoso antes de a prolongar, começou por garantir alguém que o substituísse no posto de trabalho; e depois pediu ao alcaide da moeda que o deixasse passar à aposentação.
João de Aragão seguiu a rotina: solicitou a um médico judeu, mestre Meir, que por essa altura estava no Porto, que examinasse o moedeiro doente. Depois de devidamente ajuramentado sobre a Tora, o mestre corroborou os primeiros diagnósticos dos seus colegas: o infeliz padecia mesmo da dor da ciática e da dor da asma e, "segundo regra de física" corria perigo de vida se não abandonasse os fornos, "pello grande fogo e pello fumo de cobre que se lhe metia pellos narizes e pella boca, e que estando lavrando se podia afogar [...] pela enfermidade dos peitos". Mais, e pior: como o paciente era, ao que consta, enfezado ("de pequena compreissam"), o médico judeu sentenciava: nem moedeiro nem ferreiro; João de Refojos que "buscasse sua vida por outra parte".
Perante este atestado médico, o alcaide da moeda reuniu com os demais responsáveis da Casa e constatando que o serviço do rei estava a ser prejudicado, pois enquanto estivesse no activo o ferreiro tinha mesmo de trabalhar, o que manifestamente ele não estava em condições de fazer, concedeu-lhe a aposentação com todas as "honras" e "liberdades" incluídas nos privilégios da sua classe. João de Aragão passou este alvará em nome do rei de Portugal e dirigiu-o, em primeiro lugar, aos contadores do reino; o documento é redigido pelo escrivão da alcaidaria da moeda, e tem data de 8 de Abril de 1446, como já se disse. Só três anos e oito meses depois, a 22 de Dezembro de 1449, o moedeiro obteve confirmação régia do alvará; D. Afonso V, que acabara de assumir a plenitude das suas funções, garantiu-lhe a aposentação com todo o respeito e mordomias habituais de que usufruíam os moedeiros que se reformavam "por bem da hidade e serviços ou aleijõoes". Não tenho explicação para este intervalo de tempo; pelo seu teor, o alvará parecia suficiente para garantir a 'alforria' do ferreiro. Talvez mais tarde este sentisse necessidade do suplemento de segurança que uma carta régia, em pergaminho, proporcionava em relação ao alvará local em papel. Acredito que ele tenha largado os fornos logo em Abril de 1446, mas não posso passar de conjecturas. E acrescentar uma ou outra pergunta: por aquele tempo, a Casa da Moeda do Porto trabalhava essencialmente com cobre, ou acontecia apenas que este ferreiro tinha a desdita de "lavrar" nos fornos daquele metal? Passando à doença, percebe-se a relação da asma com as temperaturas muito elevadas, os fumos e os vapores; mas quanto à dor de ciática, que "regra de física" terá levado mestre Meir a acreditar que ela também derivava do fumo que "entrava pelos narizes" de João de Refojos e lhe "afogava os peitos"? Como conclusão provisória, deixaria esta: ainda na primeira metade do século XV, a Casa da Moeda do Porto tinha já um procedimento rotineiro que permitia aos respectivos trabalhadores darem baixa por incapacidade física.

Duarte, Luís Miguel

O moedeiro “enfermo dos peitos” (uma doença profissional no Porto em meados do séc XV)



domingo, 21 de outubro de 2018

Preconceitos patronais


Até hoje não pude me convencer de que um trabalho que se repete seja prejudicial ao homem. Aos bem-falantes ouço dizer que o trabalho repetido inutiliza corpo e alma. Minhas pesquisas, entretanto, negam isso. Um homem que passava o dia acionando com o pé um pedal, encasquetou que aquele movimento lhe desenvolvia o corpo de um lado só. O exame médico não comprovou o mal, mas designamo-lhe outro trabalho que pusesse em desenvolvimento o grupo de músculos prejudicados. Depois de algumas semanas pediu ele volta ao antigo posto. Parece racional que da repetição dos mesmos movimentos por oito horas diárias resultem anormalidades físicas, mas não o pudemos comprovar até agora em um só caso. Quando nossos homens querem mudar de serviço, basta que o peçam e nós desejaríamos que essas mudanças fossem a regra. Mas os operários são inimigos de mudanças que eles próprios não proponham. Realmente há operações de tal forma monótonas que parece incrível que alguém se conforme em exercê-las por muito tempo. A mais monótona é a do homem que ergue uma engrenagem com o gancho, mergulha-a numa tina de óleo e a deixa cair num cesto. Os movimentos não variam nunca....


Ford, Henry (1863-1947)




Os princípios da prosperidade. Tradução de Monteiro Lobato. Rio de Janeiro: Biblioteca Freitas Bastos, 1967. p 82.




quarta-feira, 17 de outubro de 2018

O aproveitamento dos inválidos


Seria inteiramente contrário aos fins a que nos propusemos dar colocação a um aleijado porque é aleijado, pagando-lhe um salário reduzido e contentando-nos com um tipo baixo de produção. Seria um meio de o socorrer momentaneamente, mas não seria a melhor maneira. A melhor maneira é elevá-lo a um grau de produtividade igual ao dos sãos. A caridade do mundo, sob forma de esmola, em pouquíssimos casos, creio eu, encontra justificativa. É certo que não combinam bem negócio e caridade; o fim da fábrica é produzir e ela serviria mal se não consagrasse a isto toda a sua capacidade. Mas somos muito inclinados a crer, sem exame, que a plena posse de suas faculdades constitui a condição fundamental para o melhor rendimento de um homem em qualquer classe de trabalho. Com o intuito de formar juízo seguro, mandei classificar todas as diversas operações da fábrica, segundo a espécie da máquina e do trabalho, tomando em consideração se o trabalho físico era fácil, mediano ou pesado; se era trabalho em seco ou em úmido; se limpo ou sujo; se desempenhado em estufas ou fornalhas; se ocupava uma ou duas mãos; se conservava o operário de pé ou sentado; se barulhento ou silencioso; se exigia precisão; se em luz natural ou artificial; que número de peças era necessário tratar por hora, qual o peso do material manejado e o esforça exigido do operário. Além disso, os dados exatos sobre o esforço que o trabalho requeria da parte do operador. O estudo demonstrou que se executavam na fábrica 7.882 espécies distintas de operações, entre as quais 949 classificadas como trabalho pesado, exigiam homens robustos e de perfeita saúde; 3.338 espécies exigiam desenvolvimento físico comum e força média. Entre as 3.595 espécies restantes, nenhuma exigia força física superior à do homem mais fraco e débil, ou à das mulheres e meninos.
Os trabalhos mais fáceis foram por sua vez classificados, a fim de verificarmos quais exigiam o uso completo das faculdades; comprovou-se que 670 podiam ser feitos por homens privados das duas pernas; 2.637 por homens de uma só perna; em dois prescindiam-se os dois braços; em 715 casos de um braço e em 10 casos a operação podia ser feita por cegos. Das 7.882 espécies de trabalho, portanto, embora algumas exigissem força corporal, 4.034 não exigiam o uso completo das faculdades físicas.

Ford, Henry (1863-1947)




Os princípios da prosperidade. Tradução de Monteiro Lobato. Rio de Janeiro: Biblioteca Freitas Bastos, 1967. p83.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

O operário no mar


Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na sua blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, que nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza...  Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar-lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isto fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?

 

Drummond de Andrade, Carlos (1902 -1987)



Reunião, 10 livros de poesia. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1973.

Engenho

Ficava a fábrica bem perto da casa grande. Um enorme edifício de telhado baixo, com quatro biqueiras e em bueiro branco, a boca cortada em diagonal. Não sei porque os meninos gostam tanto das máquinas. Minha atenção inteira foi para o mecanismo do engenho. Não reparei mais em nada. Voltei-me inteiro para a máquina, para as duas bolas giratórias do regulador. Depois comecei a ver os picadeiros atulhados de feixes de cana, o pessoal da casa das caldeiras. Tio Juca começou a me mostrar como se fazia o açúcar. O Mestre Cândido com uma cuia de água de cal deitando nas tachas e as tachas fervendo, o cocho com o caldo frio e uma fumaça cheirosa entrando pela boca da gente.
-É aqui onde se cozinha o açúcar. Vamos agora para a casa de purgar.
Dois homens levavam caçambas com mel batido para as formas estendidas em andaimes com furos. Ali mandava o purgador, um preto, com as mãos metidas na lama suja que cobria a boca das fôrmas. Meu tio explicava como aquele barro preto fazia o açúcar branco. E os tanques de mel de furo, com sapos ressequidos por cima de uma borra amarela, me deixaram uma impressão de nojo.

                        Lins do Rego, José (1901-1957)



                        Menino de engenho. 47 edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p. 12-13

domingo, 14 de outubro de 2018

O poeta e o mundo: discurso do Nobel de 1996.


[...] A inspiração não é privilégio exclusivo dos poetas ou dos artistas em geral. Existe, existiu e sempre existirá um grupo de pessoas a quem a inspiração visita. São todos aqueles que escolhem conscientemente seu trabalho e o fazem com amor e imaginação. Existem médicos, pedagogos, jardineiros e centenas de outros profissionais assim. Seu trabalho pode ser uma constante aventura desde que consigam ver nele sempre novos desafios. Apesar das dificuldades e fracassos, sua curiosidade não arrefece. A cada problema resolvido segue-se um enxame de novas perguntas. A inspiração, seja ela o que for, nasce de um incessante “não sei”.
Não há muitas pessoas assim. A maioria dos habitantes da Terra trabalha para se sustentar, trabalha porque precisa. Não são eles que escolhem o trabalho por paixão, são as circunstâncias da vida que o escolhem por eles. Um trabalho detestado, um trabalho monótono, valorizado somente porque nem mesmo este tipo está disponível para todos, esse é um dos maiores infortúnios humanos. E não há indícios de que os próximos séculos trarão uma mudança para melhor.
Posso então dizer que, embora negue aos poetas o monopólio da inspiração, mesmo assim coloco-os no grupo seleto dos escolhidos da sorte.
Aqui, entretanto, podem surgir dúvidas nos ouvintes. Diversos torturadores, ditadores, fanáticos, demagogos lutando pelo poder com a ajuda de quaisquer palavras de ordem bradadas bem alto também gostam de seu trabalho e também o executam com fervorosa inventividade. Sim, mas eles “sabem”. Sabem, e aquilo que sabem lhes basta de uma vez por todas. Não querem saber de nada mais, pois isso poderia diminuir a força de seus argumentos. E todo conhecimento que não gera em si novas perguntas logo se torna morto. Perde a temperatura que sustém a vida. Nos casos mais extremos, que conhecemos bem da história antiga e contemporânea, pode até ser um perigo mortal para as sociedades.
Por isso valorizo tanto estas duas pequenas palavras: “não sei”. Pequenas, mas de asas poderosas que expandem nossa vida por espaços contidos em nós mesmos e espaços nos quais está suspensa nossa minúscula Terra. Se Isaac Newton nunca tivesse dito a si mesmo “não sei”, as maçãs do pomar poderiam ter caído como granizo diante de seus olhos e ele, na melhor das hipóteses, teria se abaixado para apanhar uma e comido com apetite. Se minha conterrânea Maria Sklodowska-Curie não tivesse dito a si mesma “não sei”, provavelmente teria se tornado professora de química numa escola para moças de boa família e nesse emprego – aliás, perfeitamente respeitável – teria passado sua vida. No entanto, repetiu para si mesma “não sei” e assim essas duas palavras a trouxeram, não uma, mas duas vezes, para Estocolmo, onde pessoas de espírito inquieto e eternamente inquiridor são agraciadas com o prêmio Nobel.
Também o poeta, se é um poeta de verdade, deve repetir constantemente para si mesmo: “não sei”. Cada poema seu é uma tentativa de resposta, mas assim que ele coloca o ponto final, já o espreita a dúvida, já começa a se dar conta de que aquela é uma reposta temporária e totalmente insuficiente. E assim tenta mais uma vez, e mais outra e depois os historiadores da literatura juntam com um grande clipe essas sucessivas provas de sua insatisfação consigo mesmo e chamam-nas de sua “obra”...


Szymborska, Wislawa (1923-2012)



Um amor feliz. Seleção, tradução e prefacio de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras. 2016. p 324-326


[...] inspiration is not the exclusive privilege of poets or artists generally. There is, has been, and will always be a certain group of people whom inspiration visits. It’s made up of all those who’ve consciously chosen their calling and do their job with love and imagination. It may include doctors, teachers, gardeners – and I could list a hundred more professions. Their work becomes one continuous adventure as long as they manage to keep discovering new challenges in it. Difficulties and setbacks never quell their curiosity. A swarm of new questions emerges from every problem they solve. Whatever inspiration is, it’s born from a continuous “I don’t know.”

There aren’t many such people. Most of the earth’s inhabitants work to get by. They work because they have to. They didn’t pick this or that kind of job out of passion; the circumstances of their lives did the choosing for them. Loveless work, boring work, work valued only because others haven’t got even that much, however loveless and boring – this is one of the harshest human miseries. And there’s no sign that coming centuries will produce any changes for the better as far as this goes.

And so, though I may deny poets their monopoly on inspiration, I still place them in a select group of Fortune’s darlings.

At this point, though, certain doubts may arise in my audience. All sorts of torturers, dictators, fanatics, and demagogues struggling for power by way of a few loudly shouted slogans also enjoy their jobs, and they too perform their duties with inventive fervor. Well, yes, but they “know.” They know, and whatever they know is enough for them once and for all. They don’t want to find out about anything else, since that might diminish their arguments’ force. And any knowledge that doesn’t lead to new questions quickly dies out: it fails to maintain the temperature required for sustaining life. In the most extreme cases, cases well known from ancient and modern history, it even poses a lethal threat to society.

This is why I value that little phrase “I don’t know” so highly. It’s small, but it flies on mighty wings. It expands our lives to include the spaces within us as well as those outer expanses in which our tiny Earth hangs suspended. If Isaac Newton had never said to himself “I don’t know,” the apples in his little orchard might have dropped to the ground like hailstones and at best he would have stooped to pick them up and gobble them with gusto. Had my compatriot Marie Sklodowska-Curie never said to herself “I don’t know”, she probably would have wound up teaching chemistry at some private high school for young ladies from good families, and would have ended her days performing this otherwise perfectly respectable job. But she kept on saying “I don’t know,” and these words led her, not just once but twice, to Stockholm, where restless, questing spirits are occasionally rewarded with the Nobel Prize.

Poets, if they’re genuine, must also keep repeating “I don’t know.” Each poem marks an effort to answer this statement, but as soon as the final period hits the page, the poet begins to hesitate, starts to realize that this particular answer was pure makeshift that’s absolutely inadequate to boot. So the poets keep on trying, and sooner or later the consecutive results of their self-dissatisfaction are clipped together with a giant paperclip by literary historians and called their “oeuvre” …






Três perguntas


Do pano de fundo da reflexão que trago, feita nos últimos anos, brotam três questões sobre o trabalho, perguntas genuínas que não podem ser respondidas numa única frase e que dizem respeito a experiências realizadas na Europa a partir dos anos 1990:
  1. Como é possível que operários cujos avós precisavam quase ser espancados para ir ao trabalho na segunda-feira suportam hoje uma greve de fome de cem dias de duração para conservar um empreguinho miserável?
  2. Como é possível que o trabalho tenha se transformado no único registro de organização social? E como se explica que o trabalho não dispõe mais de nenhuma instância contrária que possa ser levada a sério?
  3. Como se explica que uma sociedade que apostou tudo, mas tudo mesmo, na carta trabalho, agora se veja obrigada a rasgar esta única carta, a única carta do seu jogo, e assim fazer com que o trabalho e, por conseguinte, a identidade sejam desvalorizados?


 Kamper, Dietmar (1936-2001)


O trabalho como vida. [org.] Cleide Riva Campello. Tradução de Peter Naumann e Norval Baitello Junior. São Paulo: Annablume, 1997, p 13.

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

A parábola de Saint-Simon


Suponhamos que a França perca subitamente seus cinquenta melhores físicos, seus cinquenta melhores químicos, seus cinquenta melhores fisiologistas, seus cinquenta melhores matemáticos, seus cinquenta melhores poetas, seus cinquenta melhores pintores, seus cinquenta melhores escultores, seus cinquenta melhores literatos;
seus cinquenta melhores mecânicos, seus cinquenta melhores engenheiros civis e militares, seus cinquenta melhores soldados de artilharia, seus cinquenta melhores arquitetos, seus cinquenta melhores médicos, seus cinquenta melhores cirurgiões, seus cinquenta melhores farmacêuticos, seus cinquenta melhores marinheiros, seus cinquenta melhores relojoeiros;
seus cinquenta melhores banqueiros, seus duzentos melhores negociantes, seus seiscentos melhores agricultores, seus cinquenta melhores mestres de forja, seus cinquenta melhores fabricantes de armas, seus cinquenta melhores curtidores, seus cinquenta melhores tintureiros, seus cinquenta melhores mineiros, seus cinquenta melhores tecelões, seus cinquenta melhores fabricantes de algodão, seus cinquenta melhores fabricantes de seda, seus cinquenta melhores fabricantes de linho, seus cinquenta melhores fabricantes de utensílios de ferro, seus cinquenta melhores fabricantes de louças e porcelanas, seus cinquenta melhores fabricantes de cristais e vidros, seus cinquenta melhores armadores, seus cinquenta melhores transportadores, seus cinquenta melhores impressores,  seus cinquenta melhores gravadores, seus cinquenta melhores ourives e outros trabalhadores em metais;
seus cinquenta melhores pedreiros, seus cinquenta melhores carpinteiros, seus cinquenta melhores marceneiros, seus cinquenta melhores ferreiros, seus cinquenta melhores serralheiros, seus cinquenta melhores cutileiros, seus cinquenta melhores fundidores, e cem melhores pessoas de diversas atividades não citadas, as mais capazes, nas belas-artes e nas artes e ofícios, somando ao todo os três mil melhores sábios e artesãos da França.
Como esses homens são os franceses mais essencialmente produtivos, os que oferecem os produtos mais importantes, os que dirigem os trabalhos mais uteis à nação e que a tornam produtiva nas ciências, nas belas artes e nas artes e ofícios, eles são, de todos os franceses, os mais úteis a seu país. [...] A nação tornar-se–ia um corpo sem alma no instante em que os perdesse. [...] Seria preciso pelo menos uma geração para que a França pudesse reparar essa infelicidade. [...]
Passemos a uma outra suposição. Admitamos que a França[...] tenha a infelicidade de perder, no mesmo dia, o senhor irmão do rei, o duque de Angoulême, o duque de Berry, o duque de Orleans, o duque de Bourbon, a duquesa de Angoulême, a duquesa de Berry, a duquesa de Orleans, a duquesa de Bourbon e a senhorita de Condé, que perdesse ao mesmo tempo todos os grandes oficiais da coroa, todos os ministros de Estado, todos os conselheiros de Estado, todos os notários, todos os seus marechais, todos os seus cardeais, arcebispos, bispos, vigários e cônegos, todos os prefeitos e subprefeitos, todos os funcionários nos ministérios, e além disso, os dez mil proprietários mais ricos entre os que vivem aristocraticamente.
Este acidente afligiria certamente os franceses, que são generosos, que não saberiam ver com indiferença o súbito desaparecimento de um número tão grande de seus compatriotas. Mas essa perda dos trinta mil indivíduos reputados os mais importantes do Estado não lhes causaria tristeza senão de um ponto de vista puramente sentimental, porque daí não resultaria nenhum mal para o Estado[...] porque seria muito fácil substituir os lugares que houvessem se tornado vagos.
[...] Essas suposições colocam em evidência o fato mais importante da política atual. Provam claramente, ainda que de maneira indireta, que a organização social está pouco aperfeiçoada[...] pois os sábios, os artistas e os artesãos, que são os únicos homens cujas atividades são de utilidade positiva para a sociedade, e que não custam quase nada, são subalternizados pelos príncipes e por outros governantes, que não passam de indivíduos rotineiros mais ou menos incapazes.


Saint-Simon, Henry (1760-1825)

Utópicos, heréticos e malditos: os precursores do pensamento social de nossa época/ [org.] Aloísio Teixeira. Tradução de Ana Paula Ornellas Mauriel et al. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 57-59

O trabalho é uma atividade forçada


O trabalho é uma atividade forçada. Não é nem a simples resposta do organismo às excitações do momento nem a resposta do sujeito às solicitações do instinto. Seu objeto permanece estranho a nossas necessidades, pelo menos as imediatas, e ele consiste na realização de tarefas que não necessariamente estão de acordo com o jogo espontâneo das funções físicas ou mentais. É, aliás, seu grau crescente de especialização e abstração que torna urgente regulamentar sua execução de acordo com as possibilidades biológicas ou psíquicas do indivíduo.

Wallon, Henri (1879-1962)

Principes de psychologie appliquée. Paris: A Collin, 1930 .(Tradução minha)

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

A aventura de um esposo e uma esposa


O operário Arturo Massolari fazia o turno da noite, aquele que termina às seis. Para voltar para casa percorria um longo trajeto, de bicicleta na estação boa, de bonde nos meses chuvosos e frios. Chegava entre as seis e quarenta e cinco e as sete, ou seja, às vezes um pouco antes às vezes um pouco depois de tocar o despertador da mulher, Elide.
Frequentemente os dois ruídos, o toque do despertador e o passo dele entrando, se superpunham na mente de Elide, alcançando-a no fundo do sono, o sono compacto da manhãzinha que ela ainda tentava espremer por alguns segundos com o rosto enfiado no travesseiro. Depois pulava fora da cama de uma vez e já ia metendo os braços às cegas no roupão, com os cabelos por cima dos olhos. Aparecia assim para ele, na cozinha, onde Arturo tirava os recipientes vazios da bolsa que levava consigo para o trabalho – a marmita, a garrafa térmica – e os punha em cima da pia. Já havia acendido o fogão e posto o café no fogo. Mal ele a olhava, Elide sentia vontade de passar a mão pelos cabelos, de arregalar à força os olhos, como se a cada vez se envergonhasse um pouco dessa primeira imagem que o marido tinha dela ao entrar em casa, sempre assim desarrumada, com a cara meio adormecida. Quando dois dormem juntos é outra coisa, encontram-se de manhã a emergirem juntos do mesmo sono, estão em pé de igualdade.
Já às vezes era ele que entrava no quarto para despertá-la, com uma xicarazinha de café, um minuto antes que tocasse o despertador; então tudo era mais natural, a careta para sair do sono ganhava uma espécie de suavidade preguiçosa, os braços que se erguiam para se estirar, nus, acabavam cingindo o pescoço dele. Abraçavam-se. Arturo trazia no corpo a jaqueta impermeável; sentindo-o próximo, ela percebia o tempo que estava fazendo: se chovia ou havia bruma ou neve, dependendo de como ele estava úmido e frio. Mas assim mesmo dizia: “Que tempo está fazendo? ”, e ele iniciava seu costumeiro resmungo meio irônico, passando em revista os incômodos que tinha atravessado, começando pelo fim: o percurso de bicicleta, o tempo que encontrara ao sair da fábrica, diferente daquele de quando lá entrara na noite anterior, e as encrencas no serviço, os boatos que corriam na seção, e assim por diante.
Àquela hora, a casa estava sempre pouco aquecida, mas Elide se despia toda, um pouco arrepiada, e se lavava no pequeno banheiro. Atrás vinha ele, com mais calma, também se despia e se lavava, lentamente, tirava de cima a poeira e a graxa da oficina. Assim, estando ambos em torno da mesma pia, meio nus, um pouco enregelados, de vez em quando se dando esbarrões, tirando um da mão do outro o sabonete, o dentifrício, e continuando a dizer as coisas que tinham para se dizer, era o momento da intimidade, e às vezes, acontecendo de se ajudarem mutuamente a esfregar as costas, insinuava-se uma carícia, e se encontravam abraçados.
Mas de repente Elide: “Meu Deus! Que horas já são! ”, e corria para meter as ligas, a saia, tudo com pressa, em pé, escovava os cabelos para cima e para baixo, e debruçava o rosto para o espelho da cômoda, com os grampos seguros entre os lábios. Arturo vinha atrás dela, havia acendido um cigarro, e olhava para ela em pé, fumando, e a cada vez parecia um pouco embaraçado, de ter que ficar ali sem poder fazer nada. Elide estava pronta, enfiava o casaco no corredor, davam-se um beijo, abria a porta e já se ouviam seus passos que desciam a escada correndo.
Arturo ficava sozinho. Acompanhava o ruído dos saltos de Elide degraus abaixo, e quando não a ouvia mais continuava a acompanhá-la em pensamento, aquele passo miúdo, rápido pelo pátio, o portão, a calçada. Até o ponto do bonde. Já o bonde se ouvia bem: guinchar, parar, e o bater do estribo a cada pessoa que subia. “Pronto, tomou”, pensava, e via a mulher se segurando no meio da multidão de operários e operárias no “Onze” que a levava para a fábrica como todos os dias. Apagava o cigarro, fechava os postigos das janelas, ficava escuro, metia-se na cama.
A cama estava como Elide a deixara ao levantar, mas do lado dele, Arturo, estava quase intacta, como se tivesse sido arrumada naquele momento. Ele se deitava de seu próprio lado, como devia, mas depois esticava uma perna para lá, onde havia ficado o calor da mulher, em seguida esticava também a outra perna, e assim pouco a pouco se deslocava todo para o lado de Elide, naquele nicho de tepidez que ainda conservava a forma do corpo dela, e afundava o rosto em seu travesseiro, em seu perfume, e adormecia.
Quando Elide voltava, à noite, Arturo já havia um tempo rodava pela casa: tinha acendido a estufa, posto alguma coisa para cozinhar. Certos trabalhos ele é que fazia, naquelas horas antes do jantar, como arrumar a cama, limpar um pouco a casa, até por de molho as roupas para lavar. Elide depois achava tudo mal feito, mas ele para dizer a verdade não se empenhava muito: o que fazia era apenas uma espécie de ritual para esperar por ela, quase um vir a seu encontro permanecendo entre as paredes da casa, enquanto lá fora se acendiam as luzes e ela passava pelas vendas no meio daquele movimento fora de hora dos bairros onde há tantas mulheres que fazem compras à noite. Afinal ouvia o passo pela escada, bem diferente daquele da manhã, agora mais pesado, pois Elide subia cansada do dia de trabalho e carregada de compras. Arturo saia no patamar, tirava da mão dela a sacola, entravam conversando. Ela se jogava numa cadeira na cozinha, sem tirar o casaco, enquanto ele ia tirando as coisas da sacola. Depois: “Coragem, um pouco de ordem”, ela dizia, e se erguia, tirava o casaco, punha uma roupa de casa. Começavam a preparar a comida: jantar para os dois, depois a marmita que ele levava para a fábrica para o intervalo da uma da madrugada, o lanche que ela devia levar para a fábrica no dia seguinte, e o que era para deixar pronto quando ele acordasse no dia seguinte.
Ela um pouco se atarefava, um pouco se sentava na cadeirinha de palha e dizia a ele o que tinha de fazer. Já ele, era a hora em que estava descansado, agitava-se, aliás, queria fazer tudo, mas sempre um pouco distraído, com a cabeça já em outra coisa. Naqueles momentos ali, chegavam por vezes a ponto de se magoarem, de se dizerem palavras pesadas, porque ela queria que ele estivesse mais atento ao que estava fazendo, que se empenhasse mais, ou então que fosse mais ligado a ela, ficasse mais perto, que a consolasse mais. Enquanto ele, passado o primeiro entusiasmo da volta dela, já estava com a cabeça fora de casa, fixado no pensamento de fazer tudo com pressa porque tinha que ir. Arrumada a mesa, postas todas as coisas prontas ao alcance da mão para não precisarem mais se levantar, então era o momento da angústia que tomava conta dos dois por terem tão pouco tempo para estarem juntos, e quase não conseguiam levar a colher à boca, da vontade que sentiam de ficar ali segurando a mão um do outro.
Mas o café ainda não havia acabado de passar e já ele estava atrás da bicicleta vendo se estava tudo em ordem. Abraçavam-se. Arturo parecia que só então reparava como era macia e tépida sua esposa. Mas punha no ombro o quadro da bicicleta e descia atento as escadas.
Elide lavava os pratos, examinava a casa de cima a baixo, as coisas que o marido tinha feito, sacudindo a cabeça. Agora ele estava correndo pelas ruas escuras, entre os raros faróis, talvez já estivesse depois do gasômetro. Elide ia para a cama. Apagava a luz. De seu próprio lado, deitava, espichava um pé em direção ao lugar do marido, para procurar o calor dele, mas toda vez reparava que onde ele dormia era mais quente, sinal de que Arturo também havia dormido ali, e isso despertava nela uma grande ternura.

Calvino, Italo (1923-1985)


Os amores difíceis. Tradução de Raquel Ramalhete. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p 117-121

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Construção

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado

Por esse pão pra comer, por esse chão prá dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir,
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,
Deus lhe pague Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
Deus lhe pague.

 Chico Buarque de Holanda (1944-  )

https://www.vagalume.com.br/chico-buarque/construcao.html