quinta-feira, 19 de julho de 2018

Coragem extrema

É impossível realizar-se um estudo detalhado num grupo de pacientes, durante vários anos, sem que se comece a gostar dos doentes que pesquisamos; e isto é especialmente verdadeiro no que diz respeito aos pós-encefálicos que, enquanto exercitando uma fascinação científica sem fim, tornam-se, com o passar dos anos, cada vez mais e mais queridos a nós como pessoas. Este sentido de afeição nem é estranha ou sentimental. Estudando estes pacientes a gente começa a amá-los e, ao amá-los, passa-se a compreendê-los: a pesquisa, o amor, a compreensão são uma única coisa. Os neurologistas são, quase sempre, vistos como pessoas de sangue frio, descobrindo síndromes como se fossem problemas de palavras cruzadas. Os neurologistas praticamente não ousam reconhecer a emoção - mas ainda assim,  a emoção, o calor do sentimento resplandece através de todo trabalho genuíno. Os estudos dos pós-encefálicos realizados por Purdon Martin não são friamente precisos mas sim calorosa e compassivamente precisos. A emoção, que é mantida implícita no texto, torna-se explícita na dedicatória de seu livro: "Para os pacientes pós-encefálicos do Highlands Hospital que me auxiliaram ansiosamente, na esperança de que outras pessoas pudessem se beneficiar com suas vidas irregulares."
Após passar quinze anos de minha vida trabalhando intimamente com estes pacientes, considero-os as pessoas mais sofridas e, apesar disto, as mais nobres que jamais conheci. Suas vidas foram espatifadas e irreparavelmente danificadas. Mas estranhamente, durante todos esses anos, deparei-me com pouca amargura por parte deles; ao contrário, descobri de alguma forma e além de uma explicação, uma imensa afirmação. Nesses pacientes existe uma coragem extrema, que se aproxima do heroico, de vez que foram experimentados ao máximo e assim mesmo sobreviveram.


Sacks, Oliver ( 1933-2015)


Despertando. Rio de Janeiro: Imago, 1988. p 252






2 comentários:

  1. Leda, esse texto me remete muito ao livro do Luria "O homem com um mundo estilhaçado". Percebi no Luria esse mesmo amor e cuidado gentil com seu paciente ao longo dos anos

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