Na loja, os fregueses faziam a alegria dele e
de minha mãe ao falar do prazer que sentiam em ver como o garotinho para quem
costumavam trazer doces [...] se transformara diante de seus olhos num jovem
educado e bem-falante que moía a carne para eles, que espalhava e varria a
serragem no chão, que arrancva zelosamente as penas que ainda restavam dos
pescoços das galinhas, penduradas por ganchos à parede quando seu pai lhe
dizia: “Markie, capricha aí em duas galinhas para a senhora fulana de tal”. Nos
sete meses anteriores à minha entrada na universidade, ele me deu mais do que
carne para moer e galinhas para aprontar. Ensinou-me a pegar uma costela de
cordeiro e separar as costeletas, talhando cada uma e, ao atingir o fundo, usar
o cutelo para afastá-las do resto. E me ensinava sempre da forma mais
tranquila. “É só não acertar sua mão com o cutelo e tudo bem”, dizia.
Ensinou-me a ser paciente com os fregueses mais exigentes, em especial com
aqueles que precisavam ver a carne de todos os ângulos antes de comprá-la, com
aqueles para os quais eu tinha de erguer a galinha para que literalmente
olhassem o cu da ave a fim de se certificarem de que estava limpo. “Você não
acredita o que algumas dessas mulheres te obrigam a fazer antes de comprar uma
galinha”, ele explicava. E aí as imitava: “Vira ela. Não, pro outro lado. Deixa
eu ver a parte de trás.” Cabia-me não apenas depenar as galinhas mas também eviscerá-las.
Faz-se um corte para abrir um pouco a cloaca, enfia-se a mão e agarram-se as
vísceras puxando-as para fora. Eu odiava essa parte. Nauseabunda e repugnante,
mas tinha de ser feita. Foi isso que aprendi com meu pai e o que adorei
aprender com ele: que a gente faz o que tem de fazer.
Roth, Philip (1933-2018)
Indignação. Tradução de Jorio Dauster.
São Paulo: Companhia de Bolso, 2017. p 13.
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