sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Não podemos conhecer nossos filhos

 _ Nós não temos tempo de conhecer os nossos filhos!

Sessão de um sindicato regional. Mulheres, homens, operários de todas as idades. Todas as cores. Todas as mentalidades. Conscientes. Inconscientes. Vendidos

Os que procuram na união o único meio de satisfazer as suas reivindicações imediatas. Os que são atraídos pela burocracia sindical. Os futuros homens da revolução. Revoltados. Anarquistas. Policiais.

Uma mesa, uma toalha velha. Uma moringa, copos. Uma campainha que falha. A diretoria.

Os policiais começam sabotando, interrompendo os oradores.

É um cozinheiro que fala. Tem a voz firme. Não vacila. Não procura palavras. Elas vêm. Os cabelos nos olhos bonitos. Camisa de meia suada, agita as mãos enérgicas. Estão manchadas pelas dezenas de cebolas picadas diariamente no restaurante rico onde trabalha.

_Nós não podemos conhecer os nossos filhos! Saímos de casa às seis horas da manhã.  Eles estão dormindo. Chegamos às dez horas. Eles estão dormindo. Não temos férias! Não temos descanso dominical.

[ ] Um operário da construção civil grita::

_ Nós construímos palácios e moramos pior que os cachorros dos burgueses. Quando ficamos desempregados, somos tratados como vagabundos. Se só temos um banco de rua  para morar, a polícia nos prende. E pergunta porque não vamos para o campo.. Estão  dispostos a nos fornecer  um passe  para morrer de chicotadas no "mate-laranjeira".



 Patrícia Galvão (Pagu) 1910-1962

Parque industrial. São Paulo: Companhia das Letras  

 


sábado, 23 de setembro de 2023

É preciso despertar

 Tu trabalhador desta multiempresa. 

Tu de gravata e paletó. 

Tu de macacão. 

Tu que mal sentes 

o sol em teu corpo.

Tu que trabalhas em 

grandes salas subterrâneas 

e não vê a luz do dia. 

Tu que mal sentes 

o cheiro do bife e 

do macarrão acebolados.

 Tu que vives entre birutas, 

máscaras, e extintores. 

Tu que te chocas 

quando ofendem o teu Senhor. 

Tu que trabalhas entre mesas,

 máquinas de calcular, clipes, 

lápis, canetas, parafusos, 

computadores, soldadoras, 

prensadoras, pregos, empilhadeiras, 

ventiladores, embaladoras. 

Não permitas que os gritos 

de teu chefe sejam mais altos 

que aqueles, desgraçadamente, 

emitidos por ti contra tua 

companheira, tua amante, 

teus filhos, e teus cachorros. 

Luta pela valorização 

de teu trabalho.

 Luta pelo respeito. 

Reivindica a recompensa 

digna de tua mão de obra. 

Não permitas que tua família 

se destrua depois de tua morte. 

Tu que engoles poeira, 

ácidos, gases tóxicos.  

Tu que tens 

teu corpo exposto 

às máquinas trituradoras,

às explosões, 

Para e pensa.


Celso de Alencar (1949-)

Opiniães – Revista dos Alunos de Literatura Brasileira. São Paulo, ano 12, n. 22, jan.-jun. 2023. 

 

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Motoboy

jovem
saudável
com iniciativa
prestativo
disposto 
expedito 
bem-humorado
veículo próprio
procura

superior
para lhe
dar ordens
ambíguas
o reprimir
explorar
humilhar
castigar

jovem
e necessitado
(a cidade
não é obstáculo)
pau pra toda obra
faz tudo

hora extra
trabalho sujo
carrega piano
dá a cara
pra bater.

Ruy Proença (1957-)

Caçambas. São Paulo: Editora 34. 2015. p  87-88.

 Em  Opiniães – Revista dos Alunos de Literatura Brasileira. São Paulo, ano 12, n. 22, jan.-jun. 2023

sábado, 5 de agosto de 2023

A mais importante das ocupações

Vi muita gente humilhada, (por isso) abre teu coração para os livros. Observei os forçados (à fadiga) dos trabalhos manuais: eis que nada é melhor do que (trabalhar com) livros, é como uma barca (deslizando) na água.

Lê o final do livro do Compêndio e encontrarás a seguinte sentença: “Um escriba, em qualquer cargo da Residência, jamais sofrerá padecimento nela, ao passo que se obedecer a ordem de outro não ficará satisfeito”. Não vejo uma profissão como a de escriba, a que se refere essa sentença.

Farei com que ames os livros mais do que à tua mãe, farei com que sua beleza chegue diante de ti. É a mais importante das ocupações, não há outra como ela no Egito.

[...] Mas vi o ferreiro trabalhar na boca de sua fornalha: seus dedos parecem garras de crocodilo e fedem mais que ova de peixe.

O marceneiro que maneja a enxó esfalfa-se mais que aquele que usa a enxada: seu campo é a madeira, sua enxada é (a enxó) de cobre. Seu trabalho nunca acaba. (Sempre) faz mais do que podem seus braços, e mesmo à noite seu lume (ainda) está aceso.

O joalheiro fura com seu cinzel em pedras duras de todo tipo. Ao terminar a incrustação do olho seus braços estão esgotados, ele está exausto. Sentando-se ao cair da tarde, os joelhos e as costas estão vergados.

O barbeiro trabalha até o anoitecer, mas levanta-se cedo, lamentando-se, e com sua bacia (já) na mão anda de rua em rua procurando alguém para barbear. Força seus braços para encher a barriga, como a abelha que (só) come quando trabalha.

O colhedor de papiro navega pelo Delta para obter hastes. Após fazer mais do que podem seus braços os mosquitos matam-no, as pulgas da areia devoram-no, ele fica destroçado.

O oleiro cobre-se de lama, embora ainda esteja entre os vivos. Chafurda na lama mais que um porco para queimar seus vasos. Suas roupas ficam duras de barro, sua tanga em farrapo. Quando entra ar em seu nariz vem direto do fogo da fornalha. De seus pés faz pilão e ele próprio se esmaga. Moureja no quintal de qualquer casa e entra (na terra) em (qualquer) lugar aberto.

Também descrevo para ti o pedreiro. (Sempre) doem-lhes os quadris. Fica exposto ao vento e faz tijolos sem roupa: seu cinto é uma corda enrolada no traseiro. Seus braços esgotam-se pelo esforço de misturar todo tipo de refugo. Come pão e lava os dedos ao mesmo tempo.

O carpinteiro padece muito ao trabalhar no teto (de uma) sala de dez por seis côvados. Leva um mês para colocar as vigas e estender o entrelaçamento: (só então) chega ao fim todo seu trabalho. Mas a comida que dá à sua família não basta para os filhos.

O hortelão leva uma canga e seus ombros curvam-se como se fosse um velho. Há um calo em seu pescoço que vira chaga. De manhã molha as verduras e pela tarde cuida das plantas aquáticas, enquanto ao meio-dia labuta no pomar. Até morrer ele trabalha mais que os de todas as demais ocupações.

O lavrador lamuria-se mais que galinha-d’angola e grita mais alto que o corvo. Seus dedos são inchados e fedem ao extremo. Ao ser recrutado para o trabalho nos pântanos (já) está em frangalho. Sente-se tão bem como um homem entre leões. O padecimento é seu quinhão, (pois) o trabalho árduo é com frequência triplicado. Por isso, quando sai dos pântanos, ao chegar em sua casa à noite, está exausto pela caminhada.

O tecelão na oficina é mais desventurado que uma mulher. Com os joelhos contra o ventre não pode respirar direito. Se ficar um dia sem tecer, leva cinquenta açoites. Tem de subornar o porteiro com comida para que este o deixe ver a luz do dia.

O que faz (pontas de) flechas padece muito quando vai para o deserto. Ele dá mais ao seu asno do que rende seu trabalho. Muito é (também) o que dá aos pastores para não perder-se (até a pedreira). Ao chegar em sua casa à noite, está exausto pela caminhada.

O mensageiro vai para fora (do país) legando (antes) seus bens para os filhos, com medo dos leões e dos asiáticos. Ele só se sente seguro quando está (de volta) no Egito. Ao chegas em sua casa à noite, está exausto pela caminhada. Seja sua casa de pano ou de tijolo, (sempre) retorna triste.

O encarregado da fornalha tem seus dedos imundos e o seu cheiro é o de cadáveres. Seus olhos congestionam-se pelo excesso de fumaça e ele não consegue livrar-se de sua sujeira. Leva o dia a cortar juncos (para queimar) e suas roupas são repugnantes (até) para ele.

O sapateiro padece muito com suas cubas de verniz. Sente-se tão bem como um homem entre cadáveres. Seus dentes só cortam couros.

O lavadeiro lava na margem (do rio) com os crocodilos (muito) próximos. Quando o pai entra na correnteza na época da enchente, seu filho (sequer) pode aproximar-se dele. Esta não é uma boa ocupação para ti, não é (com certeza) a melhor das profissões. A comida do lavadeiro mistura-se a imundícies e seus braços e pernas (nunca) estão limpos. Dão-lhe até roupas de mulher menstruada (para lavar) e ele chora ao passar o dia batendo (roupa) na pedra. É alertado (toda hora): “Volta, limpador de sujeira, a margem afunda com teu peso!”

O passarinheiro padece muito ao procurar os habitantes do céu. Quando a revoada passa ele diz: “Se eu tivesse uma rede!” Mas o deus não deixa que isso aconteça e ele fica irado com sua sorte.

Também falarei sobre o pescador, (pois) tem a pior das ocupações. Eis que labuta no rio, misturado aos crocodilos. Na hora da contagem (do que pescou) enche-se de lamentações e sequer pode alegar que havia um crocodilo (à espreita). O medo torna-o cego, e na época da cheia do rio ele entrega-se ao poder do deus.

Eis que não há profissão sem chefe, exceto a do escriba: ele é o chefe. Por isso, se souberes escrever, esta será para ti melhor que as outras profissões que te descrevi em sua desdita.


Autor desconhecido, provavelmente da 12 dinastia do Egito Antigo (1985 a 1799 a. C.)

 

 

Araújo Emmanuel. Escrito para a eternidade, a literatura no Egito Faraônico. Sátira das profissões. Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2.000. p 219-222.


domingo, 21 de maio de 2023

O que ele chamava de trabalho

 O trabalho era o fundamento de sua ética, que ele sentia como um sacro dever, mas que compreendia num sentido mais amplo. Era trabalho tudo e apenas aquilo que traz lucros sem comprometer a atividades lícitas, igualmente, por exemplo, o contrabando, o furto, a trapaça (mas não o roubo: não era um violento). Considerava, todavia, censuráveis, porque humilhantes, todas as atividades que não comportavam iniciativa ou risco, ou que pressupunham uma disciplina e uma hierarquia: toda relação de trabalho, toda prestação de serviço, conquanto bem retribuída, ele a assimilava totalmente ao “trabalho servil”. Mas não era trabalho servil arar o próprio campo, ou vender falsas antiguidades no porto aos turistas.

Quanto às atividades mais elevadas do espírito, ao trabalho criativo, demorei a compreender que o grego se dividia. Tratava-se de opiniões delicadas, que mereciam análise caso a caso: era lícito, por exemplo, perseguir o sucesso em si mesmo, ainda que vendendo falsa pintura ou subliteratura, ou ainda que prejudicando o próximo; censurável obstinar-se em perseguir um ideal não lucrativo; pecaminoso retirar-se do mundo em contemplação; era lícito, todavia, aliás recomendável, o caminho de quem se dedica a meditar e adquire sabedoria, contanto que não considere obrigação receber gratuitamente o próprio pão da Sociedade Civil: a sabedoria é também uma mercadoria e pode e deve ser trocada. 

 

 

 Primo Levi (1919-1989)

 

A trégua. Tradução de Marco Lucchesi. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 43-44.

 

domingo, 30 de abril de 2023

The banana boat song


                                                               Harry Belafonte (1927-2023)


domingo, 9 de abril de 2023

Lutar com as palavras

São drummondianos estes versos, já outras vezes citados por nós:

Lutar com as palavras

é a luta mais vã.

Entanto lutamos

mal rompe a manhã.

Lutam com as palavras os escritores, os Drummonds, aceitando-lhes as definições correntes ou, no seu direito de artistas, modificando- lhes o sentido, ou criando novos, ou novas palavras; e lutam, igualmente, os dicionaristas, redefinindo-as, acrescentando-lhes significados, ou introduzindo-as no léxico, após enfrentar a tarefa, tantas vezes penosa, de captar- lhes a essência, desentranhar- lhes o sentido, infundir alma num corpo. Uns e outros se empenham na luta – e sempre com a esperança de que não seja vã. Em nossos casos particulares – o do Poeta e desse aprendiz de lexicografia – há uma diferença (deixem passar a confissão): a do aprendiz, ordinariamente, vai até de manhã.

 

 

Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1910-1989)

 

Novo dicionário da língua portuguesa. Prefácio. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1975.

quarta-feira, 29 de março de 2023

Quebradeiras de coco babaçu


                                                            Comissão Pastoral da Terra

segunda-feira, 6 de março de 2023

Os homens do nitrato


Eu estava no salitre, com os heróis obscuros,

 com o que cava neve fertilizante e fina

 na casca dura do planeta, 

e apertei com orgulho suas mãos de terra. 


Me disseram; “Olha, 

irmão, como vivemos

 aqui em `Humberstone', aqui em `Mapocho',

 em `Ricaventura', em `Paloma',

em `Pan de Azúcar', em `Piojillo' “.


E me mostraram suas rações

 de miseráveis alimentos, 

seu piso de terra nas casas, 

o sol, o pó, os percevejos,

 e a solidão imensa.


 Vi o trabalho dos raspadores, 

que deixam afundada, no cabo

 da madeira da pá, 

a marca toda de suas mãos.


 Escutei uma voz que vinha

 do fundo estreito da escarpa, 

como de um útero infernal, 

e depois assomar em cima

 uma criatura sem rosto, 

uma máscara poeirenta 

de suor, de sangue e pó. 


E este me disse: “Aonde fores, 

fala destes tormentos, 

fala tu, irmão, de teu irmão 

que vive embaixo, no inferno”.


 

Pablo  Neruda (1904-1973)

.Canto geral. Tradução de Paulo Mendes Campos. São Paulo: Círculo do Livro

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Divisão do trabalho

Sócrates: Uma pessoa fará melhor em trabalhar sozinho em muitos ofícios, ou, quando for só um a executar um?

Adimanto: Quando for só um a executar um.

Sócrates: Mas julgo eu que é também evidente que, se alguém deixar fugir a oportunidade de fazer uma coisa, perde-a.

Adimanto: É evidente.

Sócrates: É que, creio eu, a obra não espera pelo lazer do obreiro, mas força é que o obreiro acompanhe o seu trabalho, sem ser à maneira de um passatempo.

Adimanto: É forçoso.

Sócrates: Por conseguinte, o resultado é mais rico, mais belo e mais fácil, quando cada pessoa fizer uma só coisa, de acordo com a sua natureza e na ocasião própria, deixando em paz as outras.

Adimanto: Absolutamente.

 

Platão (427 aC-347aC)

 

A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. 370a

 

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

“Nunca visto” x “sempre assim”


Abro aqui um parêntese: um dos grandes problemas dos sociólogos é evitar cair em uma ou outra das duas ilusões simétricas, a ilusão “nunca visto” (há sociólogos que adoram isso, fica muito chique, sobretudo na televisão, anunciar fenômenos inauditos, revoluções) e a do “sempre assim” (que é antes do feitio dos sociólogos conservadores: “nada de novo sob o sol, haverá sempre dominantes e dominados, ricos e pobres...”). O risco é sempre muito grande, tanto maior quanto a comparação entre épocas é extremamente difícil: apenas se pode comparar de estrutura a estrutura e sempre se corre o risco de se enganar e descrever como algo de inaudito algo banal, simplesmente por incultura. Essa é uma das razões que fazem com que jornalistas sejam por vezes perigosos: nem sempre sendo muito cultos, surpreendem-se com coisas não muito surpreendentes e não se surpreendem com coisas espantosas... A história é indispensável para nós, sociólogos.

 

 

Pierre Bourdieu (1930-2002)

 

 

Sobre a televisão. Tradução de Maria Lucia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1997. p 61.

 

Esquecer metodologias

 Nenhuma das obras clássicas das ciências sociais é explicável por suas virtudes metodológicas. Muito ao contrário. Tudo que se produziu com extremo rigor metódico, fazendo corresponder à cada afirmação a base empírica em que se assenta e tudo quantificado e comprovado estatisticamente resultou medíocre. O cientista aparentemente só necessita aprender métodos e estudar metodologia para esquecê-los depois. Esquecê-los, sobretudo, na operação de construção artística da obra em que deverá comunicar aos seus leitores, tão persuasoriamentente quanto possível, o que ele sabe.

 

 

Darcy Ribeiro (1922-1997) 

 

Gentidades, Coleção L&PM Pocket.

  

Falar é agir

 Falar é agir; uma coisa nomeada não é mais inteiramente a mesma, perdeu a sua inocência. Nomeando a conduta de um indivíduo, nós a revelamos a ele; ele se vê. E como ao mesmo tempo a nomeamos para todos os outros, no momento em que ele se vê, sabe que está sendo visto; seu gesto furtivo, que dele passava despercebido, passa a existir enormemente, a existir para todos, integra-se no espírito objetivo, assume dimensões novas, é recuperado. Depois disso, como se pode querer que ele continue agindo da mesma maneira? Ou irá perseverar na sua conduta por obstinação, e com conhecimento de causa, ou irá abandoná-la. Assim, ao falar, eu desvendo a situação por meu próprio projeto de mudá-la; desvendo-a a mim mesmo e aos outros, para mudá-la; atinjo-a em pleno coração, transpasso-a e fixo-a sob todos os olhares; passo a dispor dela; a cada palavra que digo, engajo-me um pouco mais no mundo e, ao memso tempo, passo a emergir dele um pouco mais, já que o ultrapasso na direção do porvir.

 

 

Jean-Paul Sartre (1905-1980)

 

Que é a literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Editora Ática, 1989. p.20.

 

Editando ‘O Capital’

Deixar o Livro Segundo de O Capital pronto para ser impresso, e isso de modo tal que fosse, por um lado, obra coerente e o mais possível acabada, mas também, por outro lado, obra exclusiva do Autor e não do editor, não foi trabalho fácil. O grande número de elaborações existentes, na maioria fragmentárias, dificultou a tarefa. No máximo uma única (Manuscrito IV) estava, até onde se estendia, inteiramente redigida para ser impressa; em compensação, no entanto, a maior parte era obsoleta, devido a redações posteriores. A massa principal do material, embora completado no que tange ao conteúdo, não o estava quanto à forma; estava redigida na linguagem em que Marx costumava fazer seus resumos; estilo descuidado, expressões coloquiais, em geral de rude humor, termos técnicos ingleses e franceses, frequentemente frases inteiras e até mesmo páginas, em inglês; é o registro gráfico dos pensamentos na forma em que se desenvolviam na cabeça do Autor. Ao lado de certas partes isoladas, expostas pormenorizadamente, outras, igualmente importantes, apenas esboçadas; o material de fatos ilustrativos coletado estava, quando muito, agrupado, mas longe de ser elaborado; ao final dos capítulos, no afã de chegar ao seguinte, frequentemente apenas um par de frases soltas como marcos da exposição, deixada aí incompleta; por fim, a letra, reconhecidamente ilegível às vezes até para o próprio Autor.

 

 

 

Friedrich Engels (1820-1895)

 

 

Prefácio ao Livro Segundo O Processo de Circulação d’O Capital, de Karl Marx. O Capital, Crítica da Economia Política, volume II. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Sócrates e o bem fazer


 

Perguntou-lhe [a Sócrates] alguém qual era, a seu ver, a mais bela ocupação do homem:

Bem fazer, respondeu.

Ajuntou-se:

Haverá processo para bem fazer as coisas?

Não disse. Acho que fortuna e ação são coisas opostas. Tropeçar com o fortúnio sem procurá-lo, eis o que chamo de sorte. Alcançar o sucesso pelo próprio mérito e diligência, eis o que chamo haver-se às direitas, e vitoriosos me parecem os que assim procedem. Estimáveis e caros aos deuses dizia os lavradores que bem trabalham a terra, os médicos que bem exercem a medicina, os homens de Estado que bem dirigem a política. E inúteis aos homens e malqueridos dos deuses os que nada fazem bem.

 

 

Xenofonte (430 a.C.-354 a.C.)

 

 

Xenofonte. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. Tradução de Líbero Rangel de Andrade. São Paulo: Abril Cultural, 1985, p 118.