Vi muita gente humilhada, (por isso) abre teu coração para os livros. Observei os forçados (à fadiga) dos trabalhos manuais: eis que nada é melhor do que (trabalhar com) livros, é como uma barca (deslizando) na água.
Lê o final do livro do Compêndio e encontrarás a seguinte sentença: “Um escriba, em qualquer cargo da Residência, jamais sofrerá padecimento nela, ao passo que se obedecer a ordem de outro não ficará satisfeito”. Não vejo uma profissão como a de escriba, a que se refere essa sentença.
Farei com que ames os livros mais do que à
tua mãe, farei com que sua beleza chegue diante de ti. É a mais importante das
ocupações, não há outra como ela no Egito.
[...] Mas vi o ferreiro trabalhar na boca de sua fornalha: seus dedos parecem
garras de crocodilo e fedem mais que ova de peixe.
O marceneiro
que maneja a enxó esfalfa-se mais que aquele que usa a enxada: seu campo é a
madeira, sua enxada é (a enxó) de cobre. Seu trabalho nunca acaba. (Sempre) faz
mais do que podem seus braços, e mesmo à noite seu lume (ainda) está aceso.
O joalheiro
fura com seu cinzel em pedras duras de todo tipo. Ao terminar a incrustação do
olho seus braços estão esgotados, ele está exausto. Sentando-se ao cair da
tarde, os joelhos e as costas estão vergados.
O barbeiro
trabalha até o anoitecer, mas levanta-se cedo, lamentando-se, e com sua bacia
(já) na mão anda de rua em rua procurando alguém para barbear. Força seus
braços para encher a barriga, como a abelha que (só) come quando trabalha.
O colhedor
de papiro navega pelo Delta para obter hastes. Após fazer mais do que podem
seus braços os mosquitos matam-no, as pulgas da areia devoram-no, ele fica destroçado.
O oleiro
cobre-se de lama, embora ainda esteja entre os vivos. Chafurda na lama mais
que um porco para queimar seus vasos. Suas roupas ficam duras de barro, sua
tanga em farrapo. Quando entra ar em seu nariz vem direto do fogo da fornalha.
De seus pés faz pilão e ele próprio se esmaga. Moureja no quintal de qualquer
casa e entra (na terra) em (qualquer) lugar aberto.
Também descrevo para ti o pedreiro. (Sempre) doem-lhes os quadris.
Fica exposto ao vento e faz tijolos sem roupa: seu cinto é uma corda enrolada
no traseiro. Seus braços esgotam-se pelo esforço de misturar todo tipo de refugo.
Come pão e lava os dedos ao mesmo tempo.
O carpinteiro
padece muito ao trabalhar no teto (de uma) sala de dez por seis côvados. Leva
um mês para colocar as vigas e estender o entrelaçamento: (só então) chega ao
fim todo seu trabalho. Mas a comida que dá à sua família não basta para os
filhos.
O hortelão
leva uma canga e seus ombros curvam-se como se fosse um velho. Há um calo em
seu pescoço que vira chaga. De manhã molha as verduras e pela tarde cuida das
plantas aquáticas, enquanto ao meio-dia labuta no pomar. Até morrer ele
trabalha mais que os de todas as demais ocupações.
O lavrador
lamuria-se mais que galinha-d’angola e grita mais alto que o corvo. Seus dedos
são inchados e fedem ao extremo. Ao ser recrutado para o trabalho nos pântanos
(já) está em frangalho. Sente-se tão bem como um homem entre leões. O
padecimento é seu quinhão, (pois) o trabalho árduo é com frequência triplicado.
Por isso, quando sai dos pântanos, ao chegar em sua casa à noite, está exausto
pela caminhada.
O tecelão
na oficina é mais desventurado que uma mulher. Com os joelhos contra o
ventre não pode respirar direito. Se ficar um dia sem tecer, leva cinquenta açoites.
Tem de subornar o porteiro com comida para que este o deixe ver a luz do dia.
O
que faz (pontas de) flechas padece muito quando vai para o deserto. Ele dá
mais ao seu asno do que rende seu trabalho. Muito é (também) o que dá aos
pastores para não perder-se (até a pedreira). Ao chegar em sua casa à noite,
está exausto pela caminhada.
O mensageiro
vai para fora (do país) legando (antes) seus bens para os filhos, com medo dos
leões e dos asiáticos. Ele só se sente seguro quando está (de volta) no Egito.
Ao chegas em sua casa à noite, está exausto pela caminhada. Seja sua casa de
pano ou de tijolo, (sempre) retorna triste.
O encarregado
da fornalha tem seus dedos imundos e o seu cheiro é o de cadáveres. Seus
olhos congestionam-se pelo excesso de fumaça e ele não consegue livrar-se de
sua sujeira. Leva o dia a cortar juncos (para queimar) e suas roupas são repugnantes
(até) para ele.
O sapateiro
padece muito com suas cubas de verniz. Sente-se tão bem como um homem entre
cadáveres. Seus dentes só cortam couros.
O lavadeiro
lava na margem (do rio) com os crocodilos (muito) próximos. Quando o pai entra
na correnteza na época da enchente, seu filho (sequer) pode aproximar-se dele.
Esta não é uma boa ocupação para ti, não é (com certeza) a melhor das
profissões. A comida do lavadeiro mistura-se a imundícies e seus braços e
pernas (nunca) estão limpos. Dão-lhe até roupas de mulher menstruada (para
lavar) e ele chora ao passar o dia batendo (roupa) na pedra. É alertado (toda hora):
“Volta, limpador de sujeira, a margem afunda com teu peso!”
O passarinheiro
padece muito ao procurar os habitantes do céu. Quando a revoada passa ele diz: “Se
eu tivesse uma rede!” Mas o deus não deixa que isso aconteça e ele fica irado
com sua sorte.
Também falarei sobre o pescador, (pois) tem a pior das
ocupações. Eis que labuta no rio, misturado aos crocodilos. Na hora da contagem
(do que pescou) enche-se de lamentações e sequer pode alegar que havia um
crocodilo (à espreita). O medo torna-o cego, e na época da cheia do rio ele
entrega-se ao poder do deus.
Eis que não há profissão sem chefe,
exceto a do escriba: ele é o chefe.
Por isso, se souberes escrever, esta será para ti melhor que as outras
profissões que te descrevi em sua desdita.
Autor desconhecido, provavelmente da 12◦ dinastia do Egito Antigo (1985 a 1799 a. C.)
Araújo Emmanuel. Escrito para a eternidade, a literatura no
Egito Faraônico. Sátira das profissões. Brasília: Editora Universidade de
Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2.000. p 219-222.
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