domingo, 19 de agosto de 2018

Sobre o escravismo


O emprego de escravos tende a afastar homens livres do trabalho, que é visto como ocupação indigna. Ao lado da classe superior, que não trabalha, proprietária de escravos, forma-se uma classe média que também não trabalha. Devido ao emprego de escravos, a sociedade é forçada a adotar uma estrutura de trabalho relativamente simples, servindo-se de técnicas que podem ser utilizadas pelos escravos e, que, por essa razão, tornam-se relativamente impermeáveis à mudança, ao melhoramento e à adaptação a novas situações. A reprodução do capital fica vinculada à reprodução dos escravos e, dessa maneira, direta ou indiretamente, ao sucesso de campanhas militares, à produção de reservas de escravos, e nunca é passível de cálculo no mesmo grau que numa sociedade na qual não é a pessoa inteira que se compra por toda a vida, mas serviços especiais de trabalho de indivíduos que, socialmente, são mais ou menos livres.
Só contra esse pano de fundo podemos compreender a importância, para todo o desenvolvimento da sociedade ocidental, do fato de que, durante o lento crescimento da população na Idade Média, os escravos estivessem ausentes ou desempenhassem apenas papel secundário. Desde o início, por conseguinte, a sociedade foi colocada em um curso diferente do que o adotado na Antiguidade romana. E ficou sujeita a regularidades diferentes. As revoluções urbanas dos séculos XI e XII, a gradual liberação de trabalhadores desalojados da terra – os burgueses- da submissão ao senhor feudal, constituíram as primeiras manifestações desses fatores. Daí em diante, ocorreu a gradual transformação do Ocidente numa sociedade onde um número sempre maior de pessoas podia ganhar a vida através de ocupações. O papel muito pequeno desempenhado pela importação de escravos e de mão de obra escrava dava aos trabalhadores, mesmo como classe inferior, um grande peso social. Quanto mais prosseguia a interdependência das pessoas e, por conseguinte, mais terra e sua produção eram incluídas na circulação do comércio e da moeda, mais dependentes as classes superiores, que não trabalhavam, os guerreiros, ou nobreza se tornavam das classes inferior e média, que trabalhavam, e mais estas últimas ganhavam em poder social. A ascensão das classes burguesas para a classe superior constituiu expressão desse modelo. De forma exatamente oposta àquela por que, na sociedade escravista antiga, homens livres da cidade eram expulsos da força de trabalho, na sociedade ocidental, como resultado de homens livres, a crescente interdependência de todos finalmente atraiu até mesmo membros das classes altas, que não trabalhavam, em números sempre maiores, para a divisão do trabalho. O próprio desenvolvimento do Ocidente, a evolução da moeda para aquela forma específica de “capital” que a caracteriza, pressupõem a ausência de trabalho escravo e o desenvolvimento do trabalho livre.


Elias, Norbert (1897-1990)


O processo civilizador. Formação do estado e civilização. Volume 2. Tradução da versão inglesa de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.p 56.


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