Precisavam de alguém que
datilografasse rápido; foi assim que emprestei as minhas mãos. O filme, um
longa com mais de duas horas de duração, era sobre a vida de Jack Kerouac, as
viagens que ele fez pelos Estados Unidos no fim dos anos 1940 e como escreveu o
livro em que elas são contadas. Além de ter atravessado o território americano
de costa a costa, você sabe, e descido até o México, sozinho ou na companhia de
Neal Cassady, Kerouac ficou famoso por ter datilografado On the road em apenas três semanas, em um único rolo de papel,
durante uma espécie de transe. “Estamos atrás de uma batida ágil, frenética “, disse
o produtor ao me entrevistar, “uma batida que dê conta da vibração do Kerouac,
do ritmo feroz e ao mesmo tempo maleável que só as mãos dele conseguiam ter.” A
conversa foi no escritório da produtora. Fiquei olhando para o sujeito, sem
entender bem o alcance daquela descrição. Na época -estávamos em 2000- eu não
tinha lido quase nada de Kerouac, mas fiquei animado de cara. Eles acertaram em
cheio. Minhas mãos estavam prontas para isso. Minhas mãos, até então
desperdiçadas, com seus seiscentos toques por minuto.
[...] Nas primeira vezes em que
gravei, o diretor me interrompia a todo instante. “Nunca vi nada igual”, dizia,
invadindo a cena. “Mas rapidez aqui não basta. Seus dedos estão duros demais,
calibrados demais, você está parecendo um soldado...Tem que amolecer esse punho,
rapaz.” Então chamava o assistente, pedia uma cópia do texto e fazia ali mesmo
umas marcações, onde eu devia mudar de ritmo. ”Você tem de criar uma oscilação,
uma melodia”. E balançava os dedos no ar, simulando o andamento.
[...] Dizem que Kerouac, nos
melhores dias, chegava a bater quinze mil palavras, trabalhando durante seis
horas, o que dá mais ou menos trezentos toques por minuto. Imagino que ele
pudesse alcançar os quinhentos toques, bem menos do que eu era capaz, mas, como
eu estava meio enferrujado, a gente acabava ficando no mesmo nível. Eu gravava
uma música dos anos 1950, de alguém que Kerouac ouvia, Duke Ellington ou George
Shearing, por exemplo, botava para tocar no walkman, mergulhava naquele som. Kerouac
considerava Shearing um deus. Hoje, vendo o modo como Shearing deslizava os
dedos de cego pelo piano, estou certo que Kerouac se inspirava nele para bater à
máquina, tentando injetar nas tônicas a batida do jazz.
Castro, Marcílio França ( 1967- )
Histórias naturais: ficções.
São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p 13-15
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