Foi em seguida, ao longo de várias semanas,
que aprendi a vida na linha de montagem. Neste primeiro dia, só fiz adivinhá-la:
através da tensão de um rosto, de um gesto de irritação, da ansiedade de um
olhar lançada na direção de uma carroçaria que vai chegando quando a precedente
ainda não está acabada. Agora, observando os operários, um depois do outro,
começo a notar uma certa diversidade naquilo que, à primeira vista,
assemelhava-se a uma mecânica humana homogênea: um, comedido e preciso, o
outro, nervoso e suando, os avanços, os atrasos, as minúsculas táticas de
posto, os que largam suas ferramentas entre cada carro e os que as conservam-na
mão, “os desligamentos”... E o perpétuo deslizar dos [carros] 2CV, lento e implacável,
que se constrói de minuto em minuto, a cada gesto, de uma operação a outra. O
furador. Os clarões. As brocas. O ferro queimado. [...]
Nos interstícios desse deslizar cinzento,
entrevejo uma guerra de usura da morte contra a vida e da vida contra a morte.
A morte: a engrenagem da linha de montagem, o imperturbável deslizar dos
carros, a repetição de gestos idênticos, a tarefa jamais terminada. Um carro
está pronto? O seguinte ainda não está e apresenta-se logo para ser soldado,
exatamente no lugar onde se acabou de soldar, rugoso exatamente onde se acabou
de polir. A solda está feita? Não, precisa ser feita. Feita definitivamente,
desta vez? Não, deve ser feita de novo, nunca está acabada- como se não
houvesse movimento, nem os gestos contassem, nem existissem mudanças, mas
apenas um simulacro absurdo de trabalho que se desfaz logo após terminado, sob
o efeito de uma maldição qualquer. E se nos dissermos que nada disso tem importância,
que basta habituar-se a fazer os mesmos gestos de uma maneira sempre idêntica,
num tempo sempre idêntico, aspirando unicamente à plácida perfeição da máquina?
Tentação da morte. Mas a vida revolta-se e resiste. O organismo resiste. Os músculos
resistem. Os nervos resistem. Alguma coisa, no corpo e na cabeças, defende-se
contra a repetição e o nada. A vida: um gesto mais rápido, um braço que cai
inoportunamente, um passo mais lento, um sopro de irregularidade, um movimento em
falso, o “avanço”, o “afundamento”, a tática do posto: tudo o que nesse irrisório
reduto de resistência contra o vazio eterno que é o posto de trabalho faz com
que ainda haja acontecimentos, embora minúsculos, que haja ainda um tempo,
mesmo se monstruosamente prolongado. Esta imperícia, este deslocamento supérfluo,
esta súbita aceleração, esta solda imperfeita, essa mão que a refaz duas vezes,
esta careta, este “desligamento”- é a vida que se aferra. Tudo o que, nos
homens da linha de montagem, grita silenciosamente: “eu não sou máquina”.
Linhart, Robert (1944- )
Greve na fábrica (L’établi). Tradução
de Miguel Arraes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. p 14-15
Nenhum comentário:
Postar um comentário