quinta-feira, 16 de agosto de 2018

A composição de uma poesia


Todos os poetas conheceram o tormento, o espanto e o gozo. A admiração diante de uma página grandiosa de poesia nunca se dirige à sua espantosa habilidade, mas à novidade da descoberta que contém. Mesmo ao sentirmos um alvoroço de alegria ao encontrarmos ligados com propriedade um adjetivo e um substantivo que antes nunca foram vistos juntos, o que nos comove não é o espanto pela elegância da coisa, pela prontidão do engenho, pela habilidade técnica do poeta, e sim a admiração pela nova realidade trazida à luz.



Quanto a mim, a composição de uma poesia acontece de um modo que eu nunca acreditaria – se a experiência não me fizesse vê-la. Movendo-me em torno de uma situação sugestiva informe, vou bramindo de mim para mim um pensamento, encarnado num ritmo aberto, sempre o mesmo. As palavras diferentes e as diferentes ligações vão colorindo e caracterizando a nova concentração musical. E o mais difícil está feito. Só falta agora voltar a esses dois, três, quatro versos, já nesse estágio quase sempre definitivos e iniciais e atormentá-los, interrogá-los, ajeitar-lhes os numerosos desdobramentos, até alcançar um que fique bem. Nesse núcleo de que falei, está a poesia toda por ser extraída. E cada verso que se acrescenta vai determinando sempre melhor este núcleo e exclui um número sempre maior de enganos da fantasia. Até o ponto em que todas as possibilidades intrínsecas do ponto de partida se acham caracterizadas e desenvolvidas na medida das minhas forças; aos poucos, ao correr da pena, passaram a formar-se novos núcleos rítmicos identificáveis nas varias ‘imagens’ individuais da narrativa; e é de má vontade, pois o interesse já está no fim, que chego ao último dos versos conclusivos, verso quase sempre descontraído, descansado, ligado ao início e a recapitular, por alusão, os vários núcleos. Seria a cristalização de Stendhal? Tenho diante de mim um conjunto rítmico – cheio de cores, de mudanças, de impulsos e descontração –onde os vários momentos de descoberta, de avanço – os núcleos, enfim- se alternam de lugar, se iluminam, ativados perenemente pelo sangue rítmico que flui por toda parte. Depois, fico fumando e tento pensar em outra coisa, mas, estimulado pelo segredo, acabo por sorrir.


Pavese, Cesar (1908 -1950)


O ofício de viver, diário de 1935-1950. Tradução de Homero Freitas de Andrade. Editora Bertrand Brasil S.A., 1988.




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